segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Ver, ser visto: Ruas de Fortaleza


Nigel Henderson, 1950

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Desterro, Medo e Rua em Fortaleza
–impressões apressadas após uma caminhada lenta

Estar na rua em Fortaleza, num bairro predominantemente residencial, é estar entregue à própria sorte. É viver o exílio e correr risco. Comprar um bilhete para Babilônia. Começar a escrever as Lamentações de Jeremias. Especialmente neste quadrante de final de ano, quando a sensação de ressaca coletiva se inercia pela tarde afora. E muita gente está fora da cidade. Em viagens longas anuais, ou em balneários das circunvizinhanças.
É inevitável que cada um se examine um pouco mais ao final do ano. Não só porque é o final do ano e, logo, é quase automático fazer revisões. Mas também porque se tem mais tempo para essas revisões. Para esses reexames de consciência. E é muito mais isso o que as pessoas temem do que a atmosfera e a decoração natalinas ou o raso fato de mais um ano se ter passado e a morte ficar mais próxima. Dimensionável. Ou coisa parecida.
Os muros cresceram. Às vezes se pode percorrer quadras inteiras sem topar com vivalma. Sobre os muros há cercas elétricas ou de arame farpado. Atrás deles, quase mais nada. Em certos casos, é impossível ver as casas que restaram, entre os vistosos condomínios que as sitiam. Mas ao que parece, elas ainda estão lá. Não foram reduzidas a uma abstração pela violência que seus próprios donos, ao abandonar as ruas, fizeram questão de sancionar. E as janelas que ainda se enxergam são precedidas por grades.
Se todas as grades que protegem e aprisionam os lares de Fortaleza fossem retiradas ao mesmo tempo e exportadas para a China, seria um negócio da China: algumas divisas a mais para o país e um paranóia a menos para todos nós. Toneladas de ferro e medo indo embora. E, então seria necessário só rebaixar os muros, para se ter casas de novo abrindo-se para fora. Para receber. Tê-las mais belas de novo. E de novo essa interação entre casa e rua - que as varandas antigas, que os antigos alpendres de casas rurais insinuam em tempos que se perdem muito além da Volta da Jurema. Mas que foram fruídos por gente como você ou eu. E, alguns, até parecidos conosco, porque tios-avós, bisavós, etc.
O divisável, aqui, é que, se não reocuparmos a rua, não a enxergarmos desde casa, se a abandonarmos à sua própria sorte, ela sempre se prestará melhor a ser via expressa para o crime, desde que não a vivenciamos em cotidiano, coletividade. Não a ocupamos, como espaço social. Desistir da rua, é assumir que se quer viver com medo. Que o saudável controle feito pelos próprios moradores, ao estar mais presentes nelas, passando por elas – dizendo “Bom dia”, “Boa tarde”, “Como vai” – se converte apenas em mais um caso de polícia. Não podemos nos eximir de também sermos responsáveis por elas. Porque por mais que não queiramos temos um pouco – ou muito – de polícia ou controle: ao observar e cuidar das crianças, por exemplo. Porque elas não sabem, num certo sentido o que fazem. Embora, em outros, claro, saibam muito mais que nós.
E, de resto, nunca se vê muito dos condomínios acorcundados em andares sobre andares. Quando se caminha pelas ruas, você segue excessivamente colado a eles para vê-los. Você é apenas um ponto ao pé do muro alto, com a invariável guarita encarapitada, se são mais recentes. Se tivesse de vê-los, de fato, teria de andar olhando para cima. Seria mais fácil levar vários tombos. E, lá de cima, você é visto como pouco mais que um ponto – com se vê um boneco de Forte Apache – que passa na calçada. Sequer se adivinha se você segue enxofrado ou alegre. Seu rosto é indivisável.
Mas ainda assim, você é visto. Em vislumbre passando abaixo de ficus, jambeiros, oitizeiros e acácias. E um dos problemas mora aqui. Você é visto, mas não vê quem te vê. É um problema por quê? Porque gera ainda mais predisposição à assistibilidade. Quem te vê através da vidraça da janela, vê como se vê alguém dentro da tela de plasma de uma TV. Alguém que sabe que está vendo, mas não é visto. É o olhar de quem consome imagens. As devora, em vez de incorporá-las à experiência sensível e à memória afetiva, por meio de interações interpessoais. As únicas que te possibilitam sentir o gesto, a hesitação, a euforia, a tristeza das pessoas. Especialmente no instante, em que a partir do que essas imagens sugerem, se é capaz de editar novas imagens. E não imagens quaisquer, cheias de dignidade, forma, sentidos.
O ponto, aqui é que os condomínios, como os shoppings, sempre se voltaram para dentro de si mesmos. E este é seu princípio básico. Um princípio tumular. Cova que se abre para consumo. Do mesmo feitio como teu corpo um dia será consumido pelos vermes. Ainda que, ao contrário dos sepulcros caiados do Evangelho, alguns dos shoppings possam ser horrendos, vistos de fora. Como o Iguatemi, por exemplo. Pense num único shopping em Fortaleza que se abra generosamente para a rua. Ou em cujo terraço, debruçado sobre a rua, se possa tomar um café apreciando o movimento das pessoas, a pulsação de uma cidade. O modo como as pessoas caminham, se esquivam umas das outras, se escoram nos muros e paredes nas paradas dos ônibus, com seus tédios, sonhos, irritações, pertinácias. O princípio do grande condomínio privado é o mesmo dos shoppings. Não enxergar as pessoas. Aprisionar a vida na gaiola do consumo. Eles nos protegem da violência mas também da poesia da ruas.

No caso dos shoppings, é algo que começa no estacionamento. Que tanto pode sugerir uma vasta planície, um cemitério, se a céu aberto. Ou uma catacumba romana, se subterrâneo ou empoleirado. O certo é que shopping rima com carro não com pedestres ou mesmo ciclistas. Eis porque, como comandam - não é de hoje - o comércio de varejo nos bairros mais afluentes, também decretam que o carro é o meio de transporte em Fortaleza. Sem concessões a pedestres ou ciclistas.
A base de tudo, então, no condomínio – como no shopping – assenta-se num dobrar-se para dentro do consumo e do prazer. Em tese, do vigésimo terceiro andar, pode-se ver muito mais cidade do que lá embaixo, andando pela rua. Mas essa paisagem é vista à distância. A uma distância segura de quem está sob o ar-condicionado, assistindo um blockbuster, navegando pelas virtualidades, ouvindo música, lendo algo, comendo sushi. Ou mesmo fazendo isso tudo ao mesmo tempo. Quem terá tempo para observar sua cidade? Para conhecer a fundo os entornos de sua morada? Para dizer um bom-dia? Para andar pelas ruas em gratuidade? Não para levar o cão para passear ou só para manter a forma. Numa situação dessas, de consumo e segurança, abastança e auto-suficiência privadas, o que sobra para ruas? Ser anti-ruas, muros, conveniência asfaltada para passar o carro por cima? Andar por Fortaleza durante os feriados de fim-de-ano é bom para quem gosta de estar sozinho. E, claro, a necessidade de solidão nem sempre é má. Muito ao contrário. Mas, por igual, isso não deveria ser norma para os demais dias do ano. Que são muitos. A maioria.
A rua é o local público por excelência. É o espaço da palavra, da convivência. A beleza, a sensualidade e a tolerância a atravessam de uma ponta a outra. Isso vale para uma aldeia siciliana tanto quanto para um interior qualquer do Ceará. O convívio social medra melhor nesses espaços. Não nos espaços dos shoppings, que, do íntimo de sua uterinidade, lhes são alérgicos. Pois, como sabemos, a lógica do shopping é dar lucro. Ponto.
Em sua antípoda, a rua, quando bem tratada, estende um tapete vermelho para o bem-estar público ou salubridade de memória. Ao contrário do Shopping, seu equivalente a céu-aberto, uma praça – quase não as temos – ou mesmo um parque, nada mais são que uma rua alargada. Eis porque o nome "largo" ser sinônimo de "praça". Sem conversa e gesto ou rua, uma cidade se torna amorfa. Apenas uma coleção de fragmentos rejuntados pela pressa do carro. A praça, rua alargada, é bom espaço para se estar consigo em meio aos outros pelo que resguarda de saudável e eventual. Pelo que rasga para a memória de sonhos, devaneios e frustrações passadas. Ao contrário do shopping - espaço encontrável e padronizado por todo planeta - tem horizonte e alma. Gera lembranças. Aquelas lembranças vívidas, fundas, que só surgem da convivialidade. Do decurso dos tempos longos. Da feira, que esteve na raiz de tantas cidades, pelo Ceará e pelo Nordeste afora. Uma encruzilhada aprazível, onde as reminiscências te dizem: "Bom dia"! As que precisam ser engatadas a outras, relacionadas, para que tenhamos a dimensão real de onde estamos pisando, de como somos. De onde viemos. De como sentimos. Do que queremos. De que estofo são feitos nossos sonhos. 
E, claro, a vida também se faz de encontros. Especialmente dos que ocorrem na casualidade das esquinas. Entre gente de diferentes opiniões, classes, visões políticas, orientações sexuais, etnias, culturas, jargões, idiomas, etc. 
Das interseções dessas ruas, que ora seguem vazias.

28.12.08



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