Eduardo Paolozzi, 1971
A TV e Eu no Escuro do Cinema
De início era sair bocejando diante da TV, à noite, e invocar a frase de Flann O'Brien: “mais um dia se foi, e nenhuma piada”. Depois de uns tempos, no entanto, se podia pensar quase com o ator Stephen Fry: “é fácil zombar de algumas coisas... Mas, de outro modo, sempre acho difícil satirizar algo de valor”.
Para minha geração, aí pelo final dos 80 e início dos 90, assistir programas cômicos como TV Pirata ou o começo mesmo de Casseta & Planeta – aí à altura em que eles mantinham um jornal impresso ou pouco depois disso – era uma espécie de vingança sobre a própria idiotia da televisão. Havia muito neles – em sua comicidade cheia de referências, citações – do deboche esgrimido pelo grupo inglês Monty Python. O próprio sucedâneo deles em carne e osso, na vida real, que levava o nome de “Circo Voador” – e movia-se de uma a outra cidade brasileira, promovendo performances de teatro e, sobretudo, de música – era uma expressa homenagem ao grupo inglês, cujo nome completo é Monty Python Flying Circus.
Estiveram, ambos, TV Pirata e Cassete & Planeta, entre os primeiros programas cujo eixo girava em torno de um deboche explícito e incessante da linguagem das telenovelas, dos telejornais, dos anúncios. Do comportamento padrão da TV. O problema é que num estalar de dedos a televisão absorveu esse senso de auto-deboche. Chupou-o como um daqueles fios de macarrão rebeldes para dentro de sua boca onívora. Passou a língua sobre os lábios untados de extrato de tomate. E seguiu adiante sem usar guardanapo. O tempo na TV é ouro. É federal.
Ou seja, o deboche em si estava longe de arranhar a linguagem televisiva. Do contrário. Rapidamente se foi constituindo em apenas mais um estratagema do qual ela podia, eventualmente, lançar mão. Especialmente quando sua credibilidade era posta em xeque. Um tanto como se lança mão de uma boa piada - uma protocolar, uma de português - para, em tese, desanuviar um ambiente tenso. De rescaldo, esse deboche que, de início soava saudável, tornou-se apenas mais um forte alimento de idiotia na TV, vazando para "a vida real". Foi mais ou menos por essa época que lancei mão de meu controle-remoto. E apaguei a televisão da minha "vida real".
Não foi um ato heróico. Foi apenas uma tentativa de sobrevivência.
Tive mais tempo para ler e instrospectar. Para aprender a ser menos espectador. Embora não creia que a televisão tenha me passado algo intrinsecamente mau. De qualquer modo, cedo me vacinei contra os excessos do consumo e da piada pronta. Embora reconheça as boas coisas que a TV me ofertou. E entre as quais, não incluira nenhum desses dois programas de humor mais "irônico" ou auto-referencial.
Novelas como Saramandaia, o Bem Amado ou Gabriela. Especiais como Quincas Berro d'Água ou O Caso do Zé Bigorna. Alguns filmes de antologia, como o Love Streams de Cassavetes, vistos, de início, na TV. Programas humorísticos como Chico City ou Os Trapalhões. O primeiro Sítio do Pica-Pau Amarelo ou a versão brasileira de Vila Sésamo. E, falando em versão brasileira, a imensa admiração (e gratidão) que tenho pelos dubladores dos maravilhosos desenhos animados e de algumas grandes séries norte-americanas vistos na infância e na adolescência. Penso-me como tradutor, tentando achar a voz que esses dubladores achavam com espantosa verissimilitude e talento.
Mas sobretudo sinto falta de um sentido gregário, análogo ao do cinema, que a televisão detinha mais ao seu início. O de congregar até mesmo os vizinhos do quarteirão para assisti-la. O de juntar a família, os amigos. E, claro, há o futebol. E as longas noites solitárias de uma insônia precoce que me assalta desde os quinze anos e foi, em parte, minorada pela TV.
Por esses bons serviços prestados, só posso ser grato à televisão, apesar de ter rompido com ela faz tempo. Há pelo menos uma década não acompanho telenovelas, por exemplo. Ou assisto programas regulares, à exceção de, volta e meia, mesas redondas sobre futebol. Embora não deboche desses programas regulares. Das telenovelas, por exemplo. E sobretudo do que as pessoas fazem deles. Apenas sinto que não tenho mais estômago. E que eles ficaram piores em vários aspectos. A TV aberta da década de 70, com todas as objeções possíveis de serem feitas a ela, era uma televisão mais refinada. E, sejamos sinceros, por, de início, ser quase uma televisão para uma elite.
Fenômeno análogo ocorreu com o canal de filmes Telecine, por exemplo. Que em seu início possuía uma grade de programação danada de interessante. Mas aí já são outras praias, distantes do imenso poder hipnótico que a TV aberta detinha nos anos 70. Quando, no início da década, ela sequer era 24hs. E ficávamos babando pela abertura da programação, às onze da manhã, quando, ao som de "Catavento" (Milton Nascimento), a retransmissora local da Globo destacava toda a programação do dia. Era uma TV com hora marcada para começar. E para acabar. Saía do ar por volta das duas da manhã.
Verdade que, às vezes, em doces sonhos, ainda a levo ao cinema. E sempre escolho uma daquelas cadeiras mais altas ao fundo – pois só freqüentamos multiplex. E, com um saco de pipocas do tamanho do Maracanã na mão esquerda, ponho a direita em seu ombro – cada vez mais delgado – e ficamos, como dois namorados, mais entretidos um com o outro do que com o que segue na tela. Quando menos se espera, há pipocas no chão. Mas a TV é emotiva e chora muito nos filmes. Mesmo nos de ação ou naqueles documentários sobre as migrações do ganzo cinza para o Alasca. Então, tenho sempre de levar um lenço branco, pristino, recém-engomado no bolso.
Isso de lenço, no entanto, é cena dos próximos capítulos.
Nota – uma das melhores cenas que já vi na TV foi circunstância de sua precariedade e incipiência. Havia um garoto-propaganda, na TV Ceará, no início dos 70, que era conhecido simplesmente como Toinho. Toinho era, na verdade, o anti-garoto-propaganda: baixinho, gordinho, cara de povão reforçada por um indefectível bigode escovinha. Mas era falante, exaltado, um truão nato. Daquela mesma escola do Rádio que ainda hoje encontra descendentes em gente como Sebastião Belmino ou a turma de Nas Garras da Patrulha. Pode-se até imaginar como Toinho começou na TV: "o comercial da Sapataria Esmeralda precisa ir ao ar! Como? Não tem ninguém? Chama aquele controlador de áudio metido a engraçado". Ora, àquela altura do circo, alguns comerciais eram feitos ao vivo. Ao anunciar uma marca de sandálias do tipo Havaianas, nos moldes de então – não soltam as tiras, não tem cheiro – Toinho pareceu crer tanto em sua afirmativa que mandou ver no repuxo das tiras. Resultado: elas se soltaram. Imediatamente, o câmera, atento à situação, rapidamente moveu o plano americano de um Toninho atônito, com as sandálias esfoladas nas mãos, e buscou o assoalho do estúdio. E houve alguns segundos de silêncio pontuado por rumores tácitos fora de campo e aquele assoalho mal varrido. E também algo parecido com alguém tentando abafar a gargalhada. E então se passou para o anúncio seguinte. Foi um lindo momento. Mais didático e pós-moderno que todas as momices, trocadilhos e gags dos programas cômicos posteriores. Ou do que as teorias lidas sobre comunicação de massas por ocasião do mestrado. E, dizem, nunca se venderam tantos pares de sandálias em Fortaleza quanto por aqueles dias.
Para minha geração, aí pelo final dos 80 e início dos 90, assistir programas cômicos como TV Pirata ou o começo mesmo de Casseta & Planeta – aí à altura em que eles mantinham um jornal impresso ou pouco depois disso – era uma espécie de vingança sobre a própria idiotia da televisão. Havia muito neles – em sua comicidade cheia de referências, citações – do deboche esgrimido pelo grupo inglês Monty Python. O próprio sucedâneo deles em carne e osso, na vida real, que levava o nome de “Circo Voador” – e movia-se de uma a outra cidade brasileira, promovendo performances de teatro e, sobretudo, de música – era uma expressa homenagem ao grupo inglês, cujo nome completo é Monty Python Flying Circus.
Estiveram, ambos, TV Pirata e Cassete & Planeta, entre os primeiros programas cujo eixo girava em torno de um deboche explícito e incessante da linguagem das telenovelas, dos telejornais, dos anúncios. Do comportamento padrão da TV. O problema é que num estalar de dedos a televisão absorveu esse senso de auto-deboche. Chupou-o como um daqueles fios de macarrão rebeldes para dentro de sua boca onívora. Passou a língua sobre os lábios untados de extrato de tomate. E seguiu adiante sem usar guardanapo. O tempo na TV é ouro. É federal.
Ou seja, o deboche em si estava longe de arranhar a linguagem televisiva. Do contrário. Rapidamente se foi constituindo em apenas mais um estratagema do qual ela podia, eventualmente, lançar mão. Especialmente quando sua credibilidade era posta em xeque. Um tanto como se lança mão de uma boa piada - uma protocolar, uma de português - para, em tese, desanuviar um ambiente tenso. De rescaldo, esse deboche que, de início soava saudável, tornou-se apenas mais um forte alimento de idiotia na TV, vazando para "a vida real". Foi mais ou menos por essa época que lancei mão de meu controle-remoto. E apaguei a televisão da minha "vida real".
Não foi um ato heróico. Foi apenas uma tentativa de sobrevivência.
Tive mais tempo para ler e instrospectar. Para aprender a ser menos espectador. Embora não creia que a televisão tenha me passado algo intrinsecamente mau. De qualquer modo, cedo me vacinei contra os excessos do consumo e da piada pronta. Embora reconheça as boas coisas que a TV me ofertou. E entre as quais, não incluira nenhum desses dois programas de humor mais "irônico" ou auto-referencial.
Novelas como Saramandaia, o Bem Amado ou Gabriela. Especiais como Quincas Berro d'Água ou O Caso do Zé Bigorna. Alguns filmes de antologia, como o Love Streams de Cassavetes, vistos, de início, na TV. Programas humorísticos como Chico City ou Os Trapalhões. O primeiro Sítio do Pica-Pau Amarelo ou a versão brasileira de Vila Sésamo. E, falando em versão brasileira, a imensa admiração (e gratidão) que tenho pelos dubladores dos maravilhosos desenhos animados e de algumas grandes séries norte-americanas vistos na infância e na adolescência. Penso-me como tradutor, tentando achar a voz que esses dubladores achavam com espantosa verissimilitude e talento.
Mas sobretudo sinto falta de um sentido gregário, análogo ao do cinema, que a televisão detinha mais ao seu início. O de congregar até mesmo os vizinhos do quarteirão para assisti-la. O de juntar a família, os amigos. E, claro, há o futebol. E as longas noites solitárias de uma insônia precoce que me assalta desde os quinze anos e foi, em parte, minorada pela TV.
Por esses bons serviços prestados, só posso ser grato à televisão, apesar de ter rompido com ela faz tempo. Há pelo menos uma década não acompanho telenovelas, por exemplo. Ou assisto programas regulares, à exceção de, volta e meia, mesas redondas sobre futebol. Embora não deboche desses programas regulares. Das telenovelas, por exemplo. E sobretudo do que as pessoas fazem deles. Apenas sinto que não tenho mais estômago. E que eles ficaram piores em vários aspectos. A TV aberta da década de 70, com todas as objeções possíveis de serem feitas a ela, era uma televisão mais refinada. E, sejamos sinceros, por, de início, ser quase uma televisão para uma elite.
Fenômeno análogo ocorreu com o canal de filmes Telecine, por exemplo. Que em seu início possuía uma grade de programação danada de interessante. Mas aí já são outras praias, distantes do imenso poder hipnótico que a TV aberta detinha nos anos 70. Quando, no início da década, ela sequer era 24hs. E ficávamos babando pela abertura da programação, às onze da manhã, quando, ao som de "Catavento" (Milton Nascimento), a retransmissora local da Globo destacava toda a programação do dia. Era uma TV com hora marcada para começar. E para acabar. Saía do ar por volta das duas da manhã.
Verdade que, às vezes, em doces sonhos, ainda a levo ao cinema. E sempre escolho uma daquelas cadeiras mais altas ao fundo – pois só freqüentamos multiplex. E, com um saco de pipocas do tamanho do Maracanã na mão esquerda, ponho a direita em seu ombro – cada vez mais delgado – e ficamos, como dois namorados, mais entretidos um com o outro do que com o que segue na tela. Quando menos se espera, há pipocas no chão. Mas a TV é emotiva e chora muito nos filmes. Mesmo nos de ação ou naqueles documentários sobre as migrações do ganzo cinza para o Alasca. Então, tenho sempre de levar um lenço branco, pristino, recém-engomado no bolso.
Isso de lenço, no entanto, é cena dos próximos capítulos.
Nota – uma das melhores cenas que já vi na TV foi circunstância de sua precariedade e incipiência. Havia um garoto-propaganda, na TV Ceará, no início dos 70, que era conhecido simplesmente como Toinho. Toinho era, na verdade, o anti-garoto-propaganda: baixinho, gordinho, cara de povão reforçada por um indefectível bigode escovinha. Mas era falante, exaltado, um truão nato. Daquela mesma escola do Rádio que ainda hoje encontra descendentes em gente como Sebastião Belmino ou a turma de Nas Garras da Patrulha. Pode-se até imaginar como Toinho começou na TV: "o comercial da Sapataria Esmeralda precisa ir ao ar! Como? Não tem ninguém? Chama aquele controlador de áudio metido a engraçado". Ora, àquela altura do circo, alguns comerciais eram feitos ao vivo. Ao anunciar uma marca de sandálias do tipo Havaianas, nos moldes de então – não soltam as tiras, não tem cheiro – Toinho pareceu crer tanto em sua afirmativa que mandou ver no repuxo das tiras. Resultado: elas se soltaram. Imediatamente, o câmera, atento à situação, rapidamente moveu o plano americano de um Toninho atônito, com as sandálias esfoladas nas mãos, e buscou o assoalho do estúdio. E houve alguns segundos de silêncio pontuado por rumores tácitos fora de campo e aquele assoalho mal varrido. E também algo parecido com alguém tentando abafar a gargalhada. E então se passou para o anúncio seguinte. Foi um lindo momento. Mais didático e pós-moderno que todas as momices, trocadilhos e gags dos programas cômicos posteriores. Ou do que as teorias lidas sobre comunicação de massas por ocasião do mestrado. E, dizem, nunca se venderam tantos pares de sandálias em Fortaleza quanto por aqueles dias.
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