terça-feira, 17 de julho de 2007

Imposturas sobre uma imprensa muito mais impostora do que você pensa


Henri Rousseau, 1903




Life has a practice of living you, if you don't live it.
Philip Larkin
Desistiria de ler jornal. Se fosse possível, desistiria. Mas então não haveria vida. E de retinas tão fatigadas há anos dispensei o Jornal Nacional. A vida é melhor sem ele. Experimente. Até me desinteressei de escrever para jornal depois que fiquei sabendo mais das coisas. De algumas. A vida tem o costume de te viver, se você não a vive.

Agora, ainda assisto – e muito – futebol. Inclusive jogos da seleção. Mas desde a Copa de 98 que a voz de Galvão Bueno não entra aqui em casa. Se a Globo monopoliza a transmissão, retiro o som. De início, ficava incomodado. Só a imagem. Cinema mudo. Mas, como diz Bresson, "o cinema sonoro inventou o silêncio". E, percebi: é uma ótima estratégia para começar a “ler” de novo uma partida. A sentir com maior precisão movimento e gesto. A tática, o lance de dados. E, confesso, até o modo como se faz a direção de imagens. Mas não prescindo do som. Se não se é posto à prova do ridículo por Galvão Bueno, pela Rede Globo.

Gosto de mesas-redondas sobre futebol. Gosto é eufemismo. As favoritas são as da Espn-Brasil. Assisto tanto que, outro dia, ouvi uma menção ao Odorico Leal, escritor aqui de Fortaleza, feita pelo Flávio Gomes. E, se bem me lembro, o Odorico reclamava da imperícia de Dunga para definir a zona de sintonia fina entre o jogador e o espaço a ser ocupado. Não, não era bem isso. Mas acho que o Flávio Gomes não concordou com o comentário. E lembro que a mensagem do Odorico estava cheia de advérbios. E tinha um travo, algo, antigo, como às vezes o texto dele ousa ser.

Discutir futebol está para o Brasil como discutir filosofia para a Alemanha. E, se duvidar, é até mais importante a nossa conversa. E mais saborosa. Pois entre o futebol e a filosofia, é claro que fico com o primeiro. Gosto tanto de futebol, que acredito que seja a única instância da vida brasileira onde a gente se lembra que o país tem memória – uma história lapseada por quadriênios – e ainda alguma via para inteligência e originalidade de pensamento. Via cada vez mais estreita.

Cheguei a escrever um artigo sobre o jargão das transmissões de futebol na televisão. O artigo incluía também algumas considerações sobre a cobertura dos jornais, inclusive estrangeiros, lidos na incipiente internet. Foi em 1998, durante a Copa. Perdi esse artigo antes de publicar, numa dessas reconfigurações da informática vida. Artigo acadêmico, com notas de rodapé, bibliografia, volúveis abnt's, tudo de direito. Acho que em parte estou escrevendo isto porque me lembrei desse artigo e sei que não vou poder recuperá-lo. E que ele me rendeu um trabalho danado. Dias tomando notas diante da tv. Me impedindo de simplesmente assistir os jogos. A gente pode ser tão sério com as coisas.



Anotei, então, inúmeros chavões. Os verbos, em gerúndios, indeterminando-se. Sínqueses. As expressões que só podem ser ditas, ou só funcionam num contexto de uma transmissão. Cheguei a uma conclusão: quem melhor escreve sobre futebol são argentinos e espanhóis, nesta ordem. Os argentinos passionais até a medula. Um sentido do trágico e da hipérbole, que neles ocorre como respirar. O texto humaniza-se, e fica pleno de humour.


Mas se eles escrevem bem, falamos melhor. E falar vem antes de escrever. Pelo menos acreditava-se nisto até Derrida achar de dizer que inventamos o passado. E isso de inventar o passado já estava em Santo Agostinho de forma mais graciosa, para a angústia de Derrrida e de Bloom e de Ricouer. E de quem mais? Sei lá, quem só fica lendo filosofia em casa é poste. Bom, voltando ao artigo, também esquematizei uma tipologia, à Weber, dos narradores na televisão. Um seria autoritário; o outro, contemporizador. O exemplo do primeiro era Galvão Bueno. O do segundo, Cléber Machado.


Não ilustraria mais assim nem que a vaca. Até porque não suportaria a transmissão. Especialmente a de Bueno.


Mas, Cléber Machado não fica muito atrás. Vem contemporizando tanto que, hoje, chega a ser irritantemente autoritário. Ou seja, chato. Relativo demais. Não há mais nenhum valor, nehum conceito absoluto na pós-mediocridade. E mesmo que você acredite, fique calado. Ou então, fale besteira, como os outros. Todos. Pois se tudo é relativo por que a opinião dos outros tem relevo? Ou então, escreva despoesia para não-leitores. Ah, parnasianismo da gota. O chavão é o mesmo: “cada qual com sua opinião”. Não há nada de muito mais autoral em Cléber Machado -- por razões opostas às de Galvão Bueno. Nada de mais original, incisivo, opinioso. Pois não há mais também conclusão alguma. Ainda que parcial. Antes havia. Revisada, palinódica, se o argumento do outro era melhor. Mas havia.


Já Galvão Bueno é um um caso mais sério. Nele só há conclusões. Sabemos disto há muito tempo. Tratou de grudar sua imagem à seleção – como, antes, já havia feito em relação a Senna. Loteou a seleção entre si et caterva. Bueno quer atribuir tanta infalibilidade à sua transmissão que chega a paroxismos. Por equívoco, narrou todo um primeiro tempo entre duas seleções européias invertendo as escalações. Ele narrava a partir de imagens geradas, e àquela altura não havia Google. Sequer fax. Ele deve ter recebido as escalações por telex. Ou comprado La Gazzetta dello Sport de dois dias antes, numa banca da Av. Atlântica. O fato se deu em um torneio de 74. Alguém, provavelmente um austríaco ou um alemão oriental de passagem pelo Brasilien, percebeu o logro. A emenda chegou a Bueno por telefone, no intervalo do jogo. Mas, claro, ele não quis consertar o soneto. Ao receber a informação de que atribuía, digamos, à Áustria o que era da Alemanha Oriental, Bueno simplesmente desinverteu os nomes dos jogadores para o correto, consultando a escalação impressa. E, sem nenhuma satisfação ao espectador, seguiu com a segunda etapa. Como se nada. E o Fritz virou Walter.


Eram tempos heróicos, e ainda havia Alemanhas Orientais.


Quem sabe do que estou falando, sabe do que estou falando. E pode até lembrar do trecho de Kundera em que ele nos diz de certo enternecimento ao deparar-se com uma foto de Hitler. Não por ser Hitler. Por ser sua juventude, mesmo que ele não quisesse. Ou seja, não desejasse que o verdor dos anos houvesse sido conspurcado pela insanidade do ditador alemão e tudo que dela sobreveio. E, ainda assim, a foto de Hitler - depois de muito tempo sem ser vista - era, querendo ele ou não, um ícone de sua juventude. Viva a sua vida, cara, mesmo quando uma foto de FHC lhe despertar ternura. Senão a vida vem e te vive. E nunca vi rasto de cobra. E se correr é pior.


Pensando bem, não há nada de mais nisso. Quer dizer, na falácia de Bueno. E o episódio todo é até bem divertido. Quer dizer, se fosse avulso. Pois há algo de errado, sim: a recusa em reconhecer o erro uma vez na vida ao longo de tantas transmissões. Ou no fazê-lo com contrariedade, desassossego desmesurados. Supondo que a própria autoridade está tendo prejuízo ou que o espectador, comprando fiado uma vez, vai acabar virando um desconfiado. E, então, Bueno nunca aprendeu a funcionar sem as ironiazinhas torpes, rasas, destiladas contra repórteres, comentaristas ou ainda contra um Arnaldo César Coelho que está sempre na linha de tiro ao modo de um Sancho. Não, de um maninelo mecânico fumando um narguilé. A narração de Bueno Kid pode esgotar a cisterna do prazer mais límpido: ganhar da Argentina com um time inferior.


A vontade de precisão de Bueno – me recuso a usar o familiar ‘Galvão’ para falar de um tipo assim –, sua sede de ser factível, preciso, infalível lembram o papel do 'informador' diante do 'narrador', no ensaio, célebre, de Benjamin ["O Narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov"].


Ah, bordões infames.


E nada de bem amigos.


domingo, 1 de julho de 2007

De uma terra salpicada quase do outro lado do Atlântico


Paul Klee, Sacred Islands, 1926




De uma luz em Cabo Verde
-A celebração dos cem anos da geração Claridade pode ser bom prefácio para o conhecimento da cultura caboverdeana. Alguns dentre os escritores que compuseram o movimento atingiriam um século de existência em 2007. Comemorações estão em curso, especialmente em Cabo Verde e Portugal.


Sinal aberto. Em 1936, jovens escritores de Cabo Verde acharam uma forma de essa terra auscultar-se. E publicaram seus desassossegos em uma revista: Claridade. Um dos aportes literários que os auxiliaram nessa tarefa veio do Brasil: a estilística dos regionalistas de 30, com sua ênfase etnográfica, sede de paisagem. Humana, inclusive. No momento em que Cabo Verde e os países de língua portuguesa comemoram os cem anos dos mentores de Claridade: hora de aprender.
Há sempre um travo de banalidade, de rito laico e postiço, um mal-cheiro oficialesco, nisso de efemérides. Os escritores de Claridade já morreram, em datas diversas, ao longo de seu século. Então, melhor efeméride para os “claridosos”: seus livros seguirem vivos, reeditados, vetores de memória e testemunho desse pequeno grande país.
Guardadas as proporções – e a escala é conceito importante, aqui – a geração da revista Claridade está para Cabo Verde como a da Semana de Arte para o Brasil. Mas, melhor é pensar que ambas são para o mundo. Para lugar qualquer e seguir por aí.
A Espanha entrava em noite escura. A Alemanha armava o pior. Os Estados Unidos esperneavam para reemergir de depressão e lama. Um travo de abrasivo ódio rondava o mundo. Brasil, deitado em berço esplêndido, sob o tacão do Estado Novo. Salazar e tantos outros azares em Portugal. 1936.
Numa esquina daquele e deste mundo, jovens escritores sem dinheiro, sonhando um jornal numa colônia remota, onde se falava um português mascavo. Esquina ou dobradiça? Placa giratória? Encruzilhada no meio do Atlântico? Mar que abraça, desterra? Nossa história começa no Mindelo. Estavam em São Vicente. Sabor de vidro e corte. E Mindelo era o centro do mundo.
Jornal não veio. Era caro. Sujeito ao controle da morosa burocracia colonial. Depósitos, licenças. O novo gesto expandiu-se em revista. Mais que esporádica, escassa: nove números no vau de décadas. Claridade. Cabo Verde. Morabeza. Cem e mais anos de clarividente solidão globalizada. E alguma imaginação à barlavento.
Jovens escritores que decidiram: Cabo Verde existiria. Precisava existir. E, então, pisaram o solo gris. Solo de larva de vulcão da Ilha do Fogo. Passo lunar antecipado em três décadas. E, de repente, era possível escrever eximindo-se do bolor da metrópole. De puídas convenções literárias. Era possível imaginar algo além de Lisboa. Algo da planura áspera da Boa Vista, do Maio, do Sal. Das águas de São Nicolau. Da paisagem ocre esculpida à sol e sal. De fomes seculares e paludismos. De mínguas e mortes muitas. Da fantasmática Ribeira Grande – onde, no Quinhentos, fidalgos portugueses amealharam seu cabedal traficando escravos da Guiné e iludindo o cabido. Das estiagens pairando sobre o mundo. Da chuva braba caindo, muito esporádica. Da inevitável diáspora. E tudo era arquipélago. Fragmento. Puzzle. Como caco de quebra-cabeça é cada caboverdeano que migrou para terras outras portando o timbre de uma ilha respectiva, de um acento crioulo. E, reza a estatística, há mais deles fora que em seu próprio país.
Os claridosos buscaram sugestão em escritores de outras terras, mesmo mar. Terras igualmente ásperas. E, prosseguiram, em estado de conversa. Com Nordestinos. Lins do Rego, Graciliano, Manuel Bandeira foram tomados como sugestão. Mote Para Cabo Verde tornar-se também, pelas hábeis mãos desses moços, pequeno pedaço de Brasil atirado ao mar, perto da costa africana.
Outro brasileiro lido foi o poeta paulista Rui Ribeiro Couto. Gilberto Freyre esteve entre eles. Visitou essa esquina do mundo. E houve controvérsia. Não se esperaria menos. Os “claridosos” entendiam mestiça sua cultura, acreditando-a um tanto européia. Freyre achou-a africana. A verdade, ao que parece, estava com ambos. A verdade quase nunca é fácil.
Baltazar Lopes aclimatou, filtrou, a seu modo, o que de bom há no lusotropicalismo de Freyre – porque há um mundo de bom em Freyre, alheio às emendas pueris feitas nas apressadas, protocolares teses de pós-graudação dos dias de hoje. Ou ao fato da obra de Freyre haver sido “apropriada” pela ditadura salazarista. Mas a casa é grande, e transcende apropriações espúrias se a senzala é maior.
Jorge Barbosa, o mais ressonante poeta da geração Claridade, diz de seu amor pelo Brasil [ver, abaixo, trecho inicial do poema]. E é perspicaz o suficiente para ir direto a uma questão de escala que chega a ser poética fulcral: “Eu bem sei que você é um mundão/ e que a minha terra são dez ilhas perdidas no Atlântico,/ sem nenhuma importância no mapa”.
Na mosca, o Brasil é majestoso e substantivo (“mundão”). Mas as ilhas de Cabo Verde, ao rimarem com o substantivo Brasil conjugam o verbo mais essencial da língua: ser. E, de mais a mapas, mapas não são mais importantes que o mapeado. Não queriam o mar português. Queriam o mar, que não é de Portugal ou de Espanha ou de Holanda, mas das gaivotas, etc. Mar que não se dobra em mapas. Mar de todo mundo.
E Baltasar Lopes escreveu Chiquinho. Manuel Lopes ouviu O Galo que Cantou na Baía. Jorge Barbosa decidiu que “nessa hora inicial/ começou a cumprir-se/ esse destino ainda de todos nós”. É bom ouvir este ‘ainda’. É uma senha. Habitamos a mesma diversa língua. Grito e alarme nesses tempos de espaços sonegados em que vivemos. Ou vice-versa: nesses espaços de tempos sonegados. Desmapas.
Parte importante do que temos de aprender com Cabo Verde vem da geração de Claridade. É como se eles nos devolvessem nossos escritores recém-desembarcados. Ou seus temas transfigurados, deslocados. Ou a língua portuguesa posta entre parênteses de hastes feitas por uma fibra que desconhecemos. Algo de maresias, enjôos. Mas só de leve. Pois tudo volta para nos encontrar em semi-espelho. Revigorado de alguma forma. Ondas batendo em cascos.
Pensar nesses caras dá um entorce na alma. Algumas pequenas ilhas a mais no próprio corpo. Insulados numa esquina do mundo. Que fazer quando o barco-de-papel é, na verdade, a terra em que se pisa? Essa fragilidade forte, badio. E tornar essas esquinas o centro do mundo. E navegar esses barcos.
Qual a sua ilha? Há sobras de tragédia na Ribeira Grande entre as histórias muitas de Santiago. Há um pelourinho e fantasmas rondando campas de velhas famílias brasoadas. Há os vizinhos, suas “encomendas”. O fantasma de Eugênio Tavares regendo uma banda na Brava. E as crioulas do Maio. Mas, depois de um gole de grogue, sigo para Santo Antão. Em boa hora.



Você, Brasil

Eu gosto de você, Brasil,
porque você é parecido com a minha terra.
Eu bem sei que você é um mundão
e que a minha terra são
dez ilhas perdidas no Atlântico,
sem nenhuma importância no mapa.

E o seu povo parece com o meu,
que todos eles vieram de escravos
com o cruzamento depois de lusitanos e estrangeiros.
E o seu falar português que se parece com o nosso falar,
ambos cheios de um sotaque vagaroso,
de sílabas pisadas na ponta da língua,
de alongamentos timbrados nos lábios
e de expressões terníssimas e desconcertantes.
É a alma de nossa gente humilde que reflete
a alma de sua gente simples.

Nós também temos a nossa cachaça,
o grog de cana que é bebida rija.
Temos também o nosso café da Ilha do Fogo
que é pena se pouco,
mas - você não fica zangado -
é melhor que o seu.

Você, Brasil, é parecido com a minha terra,
as secas do Ceará são as nossas estiagens,
com a mesma intensidade de dramas e renúncias.
mas há no entanto uma diferença: é que os seus retirantes
têm léguas sem conta para fugir dos flagelos,
ao passo que aqui nem chega a haver os que fogem
porque seria para se afogarem no mar. [...]

Jorge Barbosa