domingo, 7 de dezembro de 2008

De latitudes e cores


[s/i/c]



Digressão sobre a cor em Fortaleza

Saí para comprar cigarros. Eram duas e vinte da tarde. Ainda nessa hora em que o sol mais castiga, o que impressiona, para além da brisa que sopra, é a absurda luz que derrama-se sobre gentes e coisas num devassamento à prova de qualquer toldo. Um outro planeta.

Recordo, certa feita, em Londres, tendo de resolver algo em Marylebone, perto do Regent's Park, no entrecho de um inverno rigoroso. Tudo era tão frio quanto o inverno. A luz mortiça. A cor neutra que envelopava o mundo. As pessoas, voltadas para dentro de si, eram murmúrios. Caminhavam com a alma dobrada sobre os casacos. Rimavam com o opaco redbrick e gris na frontaria dos prédios. Era um outro planeta.

Em Fortaleza, as coisas gritam duas da tarde. Há tanta luz e cor no mundo que você duvida que possa haver cegos na cidade. Porque, certamente essa luz é mais visível, mesmo para quem perdeu os rumos da luz e da retina. Ou que, então, se possa sonhar, sem que a luz invada o sonho para iluminá-lo com uma descarga de Watts que não se encontra em outras latitudes. Ainda quando o sonho se revela um pesadelo, deve ser, no mínimo, filtrado por essa luz. E, logo, o mais escabroso pesadelo segue projetado em um a praia ou no alto de uma serra sem longas sombras de árvores por perto. Em Fortaleza até os pesadelos são profusamente iluminados.

Agora, a questão é que os efeitos da luz também passam para a voz. Fala-se sempre três tons acima do necessário para se fazer ouvir. No posto de gasolina, da esquina da Barão de Aracati com Heráclito Graça, onde geralmente compro os maços de Marlboros e, ocasionalmente, a cerveja que alimentam a tarde de escritura: como se fala alto! Quase sempre se grita. Isso deve tornar as pessoas menos ranzinzas, querendo ou não. Talvez excessivamente não ranzinzas. Pois a cor, além da voz, passa também para o gesto, jeito de pôr o corpo no mundo. Ao modo do sujeito, até bem vestido, que vi sentado, acomodado com grande pachorra, desfaçatez, sobre um pneu, enquanto proseava com o borracheiro que trabalhava remendando o furo entre os sulcos da superfície emborrachada. Seus sapatos imaculadamente lustrados. O terno pendurado na alavanca do macaco.

Enquanto isso, um cidadão, presumível torcedor do Ceará Sporting, atazanava um dos frentistas a propósito da recém-escapada da Terceira Divisão – pela pele que separa um dente da gengiva – do Fortaleza Esporte Clube. O diálogo entre os dois, poderia ser auscultado a duas quadras de distância naquele inverno em Marylebone. O planeta é outro, porque assim quis luz, cor.

Essas latitudes estranhas.



2 comentários:

  1. luz
    lu
    l
    lucíola
    lúcio
    luc
    lu
    l
    lucas
    luca
    luc
    lu
    luz, lucíola, lúcio, lucas:
    pessoas comuns, apóstolo;
    todos iluminados
    pela mesma
    luz
    lu
    l...

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  2. opa, manoel,

    obrigado pela leitura. e pelo poema.

    abs.

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