segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O que há por trás de certos nomes?


David Bomberg, 1919



Quem sair por último, apaga a luz


Por pressões de grupos diversos, hoje em dia é cada vez mais comum – a tendência é que seja a norma – encontrar nos livros em inglês as siglas: BCE e ACE. Elas são as abreviações de “before the common era” e “after the common era” [respectivamente, antes e depois da “era comum”]. Por pressões de outros grupos religiosos não cristãos, especialmente judaicos, islâmicos e também dos defensores de um laicismo mais radical, essas abreviaturas pretendem substituir as tradicionais BC e AC (ou seja, antes e depois de Cristo [em português a.C. e d.C.]). Quer dizer, mesmo com esse negócio de "era comum", Cristo ainda está na base da datação, mas não deve ser mencionado – para não aborrecer a fé alheia ou passar por cima dos direitos de expressão dos outros: judeus, islâmicos, militantes laicos e ateus.

Ora, tudo parece simples, claro. E democrático. Mas não é tão simples. Nem tão claro assim.

Imagine que você seja judeu. E, como judeu tenha consciência de o quanto os judeus sofreram perseguições numa Europa cristã. E que, por ser cristã, paradoxalmente, também tinha algo de judia, já que a Bíblia cristã – ao contrário do Corão, p. ex. – incorpora os livros sagrados judaicos. Durante séculos e séculos, escritores, artistas, estudiosos, poetas, cientistas e filósofos judeus, como você, grafaram antes e depois de Cristo para datar a história. O próprio Marx fez isso, assim como Freud ou Simmel. E, de repente, por um golpe de politicorretismo, se tivesse que abolir isso. Em nome de um capricho de duvidosa tendência...

Vamos pensar algo análogo. Mas mais concreto. Vamos imaginar que além de judeu, você fosse de Belém do Pará. Que, como você sabe, tem esse nome em homenagem à outra Belém (Bethlehem), na Palestina, cidade natal de Jesus. E que, portanto, a cidade, por ser fundada por cristãos, recebeu este nome. Mas, então, para não achacar a população não cristã – os muçulmanos, umbandistas, judeus, agnósticos e ateus – de Belém se resolvesse trocar o nome da cidade. Afinal, é um nome expressamente cristão. Será que você, mesmo sendo judeu – e mesmo não qualquer judeu, mas um judeu ortodoxo – concordaria com a mudança de nome da sua cidade? Será que o nome não tem nenhuma importância simbólica para você, é mera convenção?

E que tal imaginar Belém sem a festa do Círio. Que convenhamos é expressamente cristã, embora, por razões óbvias seja mais do que cristã. Seja uma festa de Belém. Será que você, judeu, gostaria que se extinguissem festa, procissão e tradição do Círio?

Ora, chegamos ao ponto. As palavras só tem força se esteadas na história. Retire a história debaixo delas, e você lhes retira o próprio alicerce. O perigo, aqui, é o de surgirem propostas reformistas análogas às de Hitler ou de Stálin. Ah, vamos mudar o nome das cidades. São Petersburgo, por exemplo, agora será Leningrado. Ou seja, se retira um nome de santo e se põe o de um carniceiro.

De fato, por alguns anos foi Leningrado. Veja que nome tem hoje Leningrado? O povo russo é apegadíssimo às suas tradições. Não poderia ser diferente com a quantidade de escritores estupendos que produziram: de Pushkin a Brodsky passando por Pasternak, Akhmatova, Maiakóvski , Tchekov, Tolstói, Dostoiévski...

Pense se você sentir-se-ia ou não confortável se sua cidade mudasse de nome. Em vez de São Paulo – como se chama desde a origem, há quase cinco séculos, porque foi fundada por jesuítas – que mudasse, então, por um decreto da Câmara de Vereadores, digamos, para Lulópolis.

Ora, isso aconteceu a três por quatro com os Bairros de Fortaleza. Por exemplo, um bairro chamado Água Fria mudou por decreto de vereadores boçais para Edson Queiroz. O problema é que um nome de lugar, um topônimo, um marco, tem uma história atrás de si. A Cidade dos Funcionários, por exemplo, tem esse nome porque originalmente foi um local onde muitos funcionários do Banco do Brasil compraram terrenos e construíram suas casas.

Do outro lado da cidade, a oeste, o Terminal Rodoviário de Antônio Bezerra é conhecido por todos os fortalezenses, numa decisiva e unânime informalidade, como Rodoviária dos Pobres. O nome indica a origem modesta do povoado de Antônio Bezerra, depois assimilado pela expansão urbana de Fortaleza. Ainda que o Brasil se torne um país riquíssimo e, digamos, por uma ironia histórica dessas para valer, o Bairro de Antônio Bezerra se converta num afluente centro de finanças e serviços, ainda assim seria interessante indicar a origem do bairro pelo peculiar nome de seu terminal rodoviário.

Mas parece que tem gente que não gosta dessas coisas de história, memória, nomes... Ou de lembrá-las.

Quem sair por último, apaga a luz!




Nenhum comentário:

Postar um comentário