quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Atemporais, duráveis


John Cassavetes, Shadows, 1959





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5 algos sobre imagens

1.
As ideias pouco se revelam apenas pelo contato direto com os fenômenos vivos. […] Em resumo, o mundo se mostra àquele que se volta diretamente para ele na forma de uma “figura”. É necessário enxergar essa figura, como se vista pela primeira vez para se poder alcançar certas essências – as mesmas negadas hoje em dia por boa parte das teorias ditas pós-modernas. Renovando o resumo: é preciso revelar o invisível sem violar a visibilidade das coisas. O que equivale dizer: enxergar algo do único modo em que esse algo refrata uma chispa de verdade.

2.
Não se deve aproximar de imagens e fenômenos no instante de seu florescimento, é preferível buscá-las no passado. O caso é que, privadas de sua vida mais urgente, essas imagens se tornam transparentes. Como se vistas pela primeira vez. Como se vistas por olhos descalços. Como seixos são vistos no leito de um rio quando a água está transparente por conta do excesso de chuvas, água que cai do céu. Essa imagem transparente, para buscar um equivalente teológico, deve ser como um maná para os olhos. Há aqui um paradoxo a ruína revela o instante de florescimento com mais intensidade e imediaticidade que o instante mesmo do florescer.

3.
O conhecimento, em imagem, nasce da sensibilidade que se tem diante das ruínas. E do amor por aquilo que é frágil. Tudo isso vem da compreensão da efemeridade do tempo, da rápida degradação das coisas. Quem é capaz de sentir a vida pulsando na matéria morta das ruínas, redime fragmentos de passado. E, dessa forma, é capaz de mostrar aos outros imagens que retêm uma pertinácia, uma coerência, uma beleza que valem não só para o presente imediato, mas para qualquer tempo. Essas imagens de ruínas são atemporais, duráveis. Possuem força, substância. Não se rendem ao imediatismo do que é considerado “belo” num instante determinado. Porque o “belo” imediato e presente, tutelado pelo efêmero ciclo da moda, da publicidade ou da teoria acadêmica em voga esgota fácil. Ou seja, uma imagem só se torna verdadeiramente bela quando possui a força de ao amarelecer, ao chegar à sua própria condição de ruína, como a folha de um velho livro, permanecer bela. Isso acontece também no reino dos objetos: o velho gravador de fitas k-7 ou a pequena máquina de escrever portátil, deslocados de sua função imediata de utilidade, adquirem um novo e estável estatuto de beleza.

4.
Todas essas concepções de imagem como resgate da ruína ou amor pela fragilidade têm muito a ver com gente como Benjamin, Bazin, Bresson, no Ocidente. Mas também não é à toa que um realizador como Ozu tanto privilegie a natureza morta (still life) em seus filmes. Um jarro de flores a um canto, por exemplo. E o belo modo como o faz: captando com fixidez, sem nenhum movimento de câmera ou aproximações óticas desnecessários, extravagantes: panorâmicas, zooms, travellings. Quanto mais antigo o objeto mais nele o senso de ruína e história estão fixados. Eis porque ao contrário do lustro e do brilho ocidentais, os orientais acham muito mais belo um jogo de chá, em aço, que já chegou a agregar à sua superfície uma pátina de pó. E provavelmente uma dona-de-casa japonesa ralharia com uma criada que o polisse, removendo a opacidade que tanto lhes agrada justo por indicar a passagem do tempo.

5.
Fortaleza é uma cidade que fez de tudo, especialmente no plano arquitetônico, para espanar e polir ao máximo essa pátina de pó. O paroxismo desse lustroso brilho são os shopping-centers. E há amigos que crêem que esse foi o caminho acertado. Amigos arquitetos, inclusive, como Juca Santabaia. Mas, até aqui nada de espantar, pois o modo como, de fato, enxergam a cidade, através de observações outras e analogias, acaba revelando que esse ponto de vista é um logro inconsciente. Quando mais jovem cria que o cinema devia sobretudo entreter. E recordo disso como uma das discussões mais acaloradas com Alexandre Veras. E que, em parte, essa ênfase que depunha no entretenimento se dava a partir de meu apreço pelo cinema norte-americano (e pelo western em particular). Mas Veras, que possui uma visão muito lúcida da questão, talvez obnubilada apenas por um excessivo fetiche pela “vanguarda”, me disse, à ocasião, algo interessante: “sim, um entretenimento. Mas um entretenimento para o espírito”.


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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Uma devastadora influência


Lionel Feininger, Wahlkreis Essen, 1905




O mais confiável dos brasileiros

Recentemente um renomado instituto de pesquisa revelou que o brasileiro com maior grau de credibilidade junto à população não é Lula da Silva. Apesar do carisma, da popularidade e da habilidade de interlocução do presidente. A despeito de sua imensa capacidade de, como animal político, saber traduzir tão bem, numa linguagem acessível, atraente, simples – e simples nem sempre quer dizer fácil – muito do que um largo contingente de brasileiros “quer” ouvir, uma vez que uma das principais tarefas de um líder político é ser capaz de legar confiança à população e instigar auto-estima nos que vivem sob sua administração.

Há também, sem dúvida, analistas políticos que, não sem razão, tem apontado para o quanto o PT, partido de Lula, tem infiltrado-se, com tanta intensidade nos meandros da sociedade civil. O fenômeno gera preocupação. E, de outro modo, porque a preferida de Lula para a sucessão, Dilma Rousseff, possui não só um estilo mais autoritário, mas um passado um tanto mais truculento. Sem embargo, o Estado tem investido maciçamente em publicidade.

Poder-se-ia argumentar que há um processo, de resto, análogo ao que sucede com Chávez, na Venezuela. Tão-só deflagrado e urdido de um modo extremamente mais sutil. Essa “ubiquidade” petista segue dos sindicatos aos movimentos sociais supostamente não estatais [as ditas ONG’s], com um firme estribo no meio universitário e na classe artística.

Mas todas essas questões acima fogem um tanto quanto dos propósitos de nosso argumento presente. E demandariam muito mais tempo, nuanças e espaço do que dispomos de momento.

Voltando ao instituto e à pesquisa, constatou-se que o brasileiro com maior credibilidade junto à população trata-se de William Bonner.

Bonner, 46 anos, é o apresentador e âncora do principal telenoticioso brasileiro, o Jornal Nacional, veiculado desde 1969, pela Rede Globo de Televisão, às oito e quinze da noite.

Não é tão surpreendente que assim seja. Numa população que, em predominância ainda lê muito pouco, mesmo com o advento da internet, e da vertiginosa e sobressalente difusão da imprensa eletrônica no país, a televisão ainda é uma potência, cuja ascendência sobre a formação de opinião é devastadora, para dizer o de menos. E, em especial, porque no Brasil se passou do semi-analfabetismo para a difusão televisiva sem a consolidação de meios impressos que pudessem suavizar essa devastadora influência, que, no plano do entretenimento, vaza pelo folhetim eletrônico (a telenovela, como é aqui conhecida); e, na esfera jornalística, pelos telenoticiosos. Assim que os “telejornalistas” da rede hegemônica de TV, a Globo, são tão – ou em certos casos – mais populares que os “astros” das telenovelas.

É o caso de Bonner. Ele congrega dezenas de milhares de seguidores na rede Twitter de comunicação.

Bonner conjuga a aparência de um galã com a firmeza e a seriedade de um doutrinador. Sua aparente imparcialidade e ponderação, só fazem concessões a uma ou outra rara emotividade plasmada em certas notícias veiculadas a portar o selo da importância mesma da qual a realidade interna do próprio mundo televisivo revestiu-se no país. E principalmente após a fundação da TV Globo, com capitais provindos de grupos de comunicação norte-americanos em meados dos anos 60.

O que Bonner diz soa como a verdade. Porque sua dicção, postura, imagem e firmeza em tudo contribuem para que assim seja. Uma imagem de seriedade. De falta de resvalos, hesitações, equívocos. Em Bonner não há espaço para revisões ou palinódias.

Uma das raras ocasiões em que ele cedeu à emoção, a única em que chegou a verter lágrimas em público, foi quando seu próprio chefe, Roberto Marinho, fundador e proprietário da Globo, faleceu, em 2003. E, de um modo um tanto ridículo – ou no mínimo questionável – ele chorou durante a transmissão a lamentar o falecimento “de tão notável homem público”.

Além disso, Bonner faz par no telenoticioso, com a própria esposa: Fátima Bernardes. Uma bela mulher, que transmite uma impressão de maturidade, ponderação e responsabilidade. É mãe de trigêmeos e dialoga com o marido explorando um veio de concordância. Simultaneamente polida e aquiescente mas, por igual, transmitindo certo grau de independência.

Se Bonner é o Ulisses, cujo périplo cobre a odisséia brasileira, noite após noite, oportunisticamente aliada às teses do governo, como sempre foi da conveniência da TV Globo – ou seja, converter-se numa espécie de porta-voz oficial do poder instituído a despeito de seu matiz político –, Bernardes é a fiandeira, a Penélope que aguarda sua vez para legitimar a fala do marido alçado à condição de herói nos moldes gregos. O Olimpo, ambos frequentam com certa regularidade.

Com recorrência o casal é matéria de revistas que exploram a intimidade de personalidades, com mais fotos do que propriamente texto ou ideias. Diante do casal Bonner/Bernardes, atrizes como Maitê Proença, que tanta polêmica causou pela desastrada idiotia de seus comentários sobre Portugal são, como por aqui se diz: “café pequeno”.

Dia desses, aliás, não chegou a causar espanto o que me relatou um amigo escritor, Lira Neto, um conhecido autor de biografias que se vêm tornando best-sellers por cá – a última das quais, recém-lançada, versa sobre o fenômeno quiliasta do líder político-espiritual do Sertão na primeira metade do sec. XX, o Padre Cícero Romão Batista (ou o Padim Ciço, como chamam os sertanejos). Ao ministrar uma palestra numa faculdade de jornalismo, uma jovem estudante indagou-lhe:

–Mas, diga-me, como faço para me tornar Fátima Bernardes?

E ele:

–Como assim? Presumo que você se refere a como se tornar uma apresentadora ou âncora de telenoticioso.

E ela:

–Não, você não entendeu, eu quero “ser a Fátima Bernardes”. Não qualquer uma. Mas ela própria.

A anedota em si, com toda sua carga de ingenuidade, denota ainda o incomensurável poderio da televisão, enquanto veículo de comunicação de massas no Brasil.

É provável que se Bonner tivesse aspirações políticas chegaria longe, bastante longe. Porque vivemos, não só no Brasil, claro, num mundo em que a imagem vale tanto. E é mesmo quase tudo. A casca, a aparência. Algo explorado tão bem por autores que apenas recentemente vem ganhando a ressonância que merecem, como Siegfried Kracauer, por exemplo.

Kracauer em parte analisa o fenômeno, quase sempre por alusão, em seu excelente O Ornamento da Massa, além de em outras obras. Em especial, quando aponta para sagacidade da análise de Walter Benjamin, que, com sua intuição histórica sublinhável, jamais rendia-se apenas à crítica do momento presente, buscando nas ruínas do passado a refração de uma essência quase sempre negada por todo aquele que não percebeu a força de sua lucidez calcada na exegese, na monadologia e no que há de auspicioso e alegórico sob a forma do tratado em moldes quase medievais ou escolásticos.

Outrossim, chega a ser um tanto patético que o senso crítico de milhões de pessoas não ponham em escrutínio o que é declinado noite após noite por esse jornalista de ar circunspecto e pose de super-homem.

O fenômeno diz muito não só sobre o Brasil, mas sobre o mundo em que vivemos. E, óbvio, não se limita ao momento presente. Mas estende-se ao que este país ou este mundo tem vivido nas últimas décadas: o devastador impacto da televisão – que, quem sabe se vem atenuando com o aporte da internet. Porém que é ainda quase monopólico sobre a formação de opinião num país continental como é nosso caso.

E até mesmo entre aqueles que possuem um senso crítico um tantinho acima da média.

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