quarta-feira, 15 de julho de 2009

Conversas, vexações: um conto


Eileen Gray, 1927


AMOR?



para J.C.M.,

que me ensinou o que há de mais essencial em outra língua: xingamentos, palavrões e gírias para as partes do corpo que recebem mais cifras que um dicionário de acordes.



E chegar à foz do rio que meandra a cidade. Na esplanada da areia, duas cadeiras, mesa de pau-a-pique. Chuva cessa. Sol rompe. Esplêndido. Mineral. Como só no Nordeste. Dunas a perder de vista e água entre elas. Relíquia de chuvas passadas. Lagoas tão translúcidas que quase se pode ignorar essa lente úmida até o fundo. Mar bate com força nos contrafortes negros. Pulsa nos corpos. Casas brancas, de telhados rubro-pálidos, lado de lá do rio. Paisagem absorvida por poros.

Ela não trouxera cigarros. Espalha protetor solar na pele de uma overdose dourada. Braços mais macios que fina pátina papel-de-arroz, confeitos de chegadinho. Olho mais belo que espelho d'água da Lagoa da Tiaia. Seu porte. Sexo mais talho que um meridiano dividindo globo. Entumescido sob o azul do biquíni. Tão indispensável. Belo arco, para se entrar por entre.

Fala muito de Salvador: Praia da Barra, Farol, planura da vida – selvageria de álcool, maconha, pó, e um apartamento – estadia de trezentos dólares incluindo usual suprimento de dope. Tudo se resume a cifras. Estatística. Valor. A necessidade de se tragar a vida em ritmos de hedonismo.

Fala um português quase correto, ora. Porém uma preposição ou outra ainda sai do lugar. Prosseguimos andando. Caminhar para o ermo, bom método de conversa quando se tem o que assuntar com uma mulher. Com uma que se quer doidamente.

Tomo sua mão de leve, velada porcelana. Mas não como posse. Se ela não fala, em silêncio seguimos, porque todas as palavras murcham diante do que realmente precisa ser dito. Melhor, revelado. E, então, ela não compõe apenas aquela fala que se diz para não ficar mudo. Porque há momentos em que palavras são palha. No percurso, um siri amarelo-cardo espalha um rastro sutilíssimo sobre a areia úmida. Move-se. Declara vida. A que seria de minha filha. De meu filho?

Vez por outra ela abaixa para coletar conchas. E, nesse afã, dá com carcaça ocre de um minúsculo lagostim, estrias semelhando acabamento sunburst. Como tudo nela é voluta e curva. Perfeição fusa, que aponta para espiral. Que pode atingir diferentes pontos cardeais em geologia longa, a partir de onde é, como na Rotunda do Museu Ferroviário de São João d'El-Rei. A começar pelas maçãs do rosto. A prosseguir para ombros, seios, ancas. Perfeição das jarreteiras, onde a marca de sol se aplaca.

No que ela curva-se para apanhar uma concha radiada e quebradiça, nossos rostos tão rentes. Agacho-me também, no mesmo esforço: involuntária recorrência. Ou voluntária. Sei lá. Ao alcance de um beijo, fixo seus olhos densamente. Não são os que conheço. E são. Mas não passarão à minha filha. A meu filho? Embora permaneçam duplamente para mim. Em parataxe. E ainda hoje. O universo de areia, palha, madeira, espuma e água cercando-nos. Meio-dia lacerando pele como navalha. O corpo sobre o corpo tece elásticos e espasmo. Enfiar-se dentro da outra. Um universo repleto de esferas, bolas, bulbos, rodelas, círculos, fusas. Os pelos do púbis. A solvente umidade. Volutas.

O que a fisicalidade ensina quando tudo a ela se resume? Quem sabe? Depois de tudo, aquela sensação suave. De torpor. De marulho amplificado. O tom de voz, de confidência, levemente ampliado. E sentir-sem como um galo triste. Ou um cortesão farto. Faz parte.

Lá seguem conversas, vexações: decepção; projetos de estudos; depressão; antidistônicos prescritos por estúpidos terapeutas. E sobretudo o tal aborto. É de rasar os olhos. Passar a vau a imundície dos anos. O tanto que seguimos enxovalhados e sórdidos mesmo que juventude e beleza nos torneie os corpos.

Às nossas costas, esqueleto de uma pequena jangada, piso arrebentado, recheio de isopor à mostra. A propor mínimas sombras.

Voltar em maior silêncio que ir. Voltar de onde juntos sobre areia áspera, vento açoitava pele. Tudo sabe a fim sobre a mesa rústica. A descontrole sobre fado. Ela a todo instante soerguendo o sutiã azul do biquíni. Penélope e Circe a coincidir. Mas não o suficiente. E meu rancor.

Sentamos de novo à mesa. Copos de cerveja. Caranguejos, pirão com tempero verde. Insipidez. Flor invertida. Quem pode sentir o gosto daquela comida?

Mais tarde, na baixa-mar, mais passos, orla de mangues. Passos na areia fina que extrai assovio sob palmas de pés. Assovios que não estarão sob os pés de minha filha. De meu filho? Há silêncio agora. Quase de claustro. Mas não há sabedoria. Somos só o que sabemos. Ouro. É muito pouco. Nada. Sem estrela guia, revelação, estrada, estação de água nos olhos. Incenso. Entanto nossa missão é perdê-los? A correnteza dribla o recife. E uma coleção de suspiros. Mirra.

E nesse meio dia turbilhão há profusa luz sem luz. Há denso azul sem azul. Não mais constelações, ideias. Silêncio. Duro hiato. De sílex. De uma menina que sentiria tudo isso. De um garoto que talvez acendesse um sorriso diante dessa lavandeira que entrecorre a passos miúdos de cá para lá à beira da gamboa.

Não se deve censurar o mar a meio caminho de um beijo. Mas ninguém virá depois. Seus cabelos modulam ao sopro da viração. A frialdade da cruviana assentou-se na pele dela. Amor. Existe?

O gavião do mangue volteia majestoso uma presa entre raízes.

Você já foi a Bahia?”, ela cantarola baixinho. Contínuo. Contínuo. E baralha os tons.




appendix: UMA ESTROFE DE SÃO JOÃO DA CRUZ



Ah, cristalina fonte,

se nesses teus semblantes prateados

formasses de repente

os olhos desejados

que trago nas entranhas esboçados.







Nota – uma variante deste conto, que é de 1993, saiu publicada originalmente na revista Afinidades Eletivas, editada por Alexandre Barbalho intermitentemente ao longo dos anos 90. Afinidades Eletivas era, de início, um panfleto quase artesanal, e que dava vazão à produção de escritores de Fortaleza no começo mesmo de suas carreiras: Carlos Augusto Lima, Lira Neto, Paulo Fraga, Alexandre Rocha, Manoel Ricardo de Lima, Willis Santiago Guerra, Alexandre Barbalho, Jorge Piero, Alexandre Veras, Valdo Aderaldo, entre outros. Além de contar, em sua composição gráfica, com amostras do trabalho de artistas plásticos como Aléxia Brasil, Barrinha, Eduardo Frota, Cardoso, Kazani, além de fotos de gente como Tiago Santana, Celso Oliveira e Solón Ribeiro. Curiosamente, Amor?, essa história de um amante ressentido por um aborto unilateral da parceira, saiu impresso em dois diferentes números da revista. O conto integra O Bumerangue e outras histórias, escrito entre 1993-96, um volume de relatos da juventude, apenas alusivamente auto-biográficos, que nunca parei para dar uma tratamento definitivo.



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