domingo, 17 de outubro de 2010

Uma Semana Ganha

Gabriel Andrade, still de Uma Encruzilhada Aprazível, 2006




Sobre vidas polietilenizadas, livrarias, imagens, cidades

Recentemente, coisa de três semanas, ministrei um curso que teve por tema “Imagem e Cidade” para alunos da Escola de Audiovisual da Vila das Artes. O tema, como todo tema que realmente se preza era tão só um pretexto. Um desvio. Porque sei o quanto sou refratário à realidade das grandes cidades. E, portanto, nunca deixei de ser, ao menos essencialmente, alguém que passou a infância em uma cidade pequena: Camocim. E que esse quadrante da infância segue comigo de um modo quase involuntário ou intacto.
Ressalvo que o pequeno porto de Camocim, ao meu tempo de criança, era totalmente diverso do que é a cidade hoje. E muito menos por fatores humanos e mais pelo desenho e a plasticidade em si da paisagem. Uma paisagem exuberante, onde a cidade estava na margem oeste; e, na leste, havia imensas dunas mais próximas da barra e um denso  manguezal recobrindo tudo que seguia mais a sul.
Sendo uma foz de rio, um estuário, limiar entre rio e mar, de água salobre, intensamente verde nos meses de estio, transparente quando havia um excesso de chuvas, essa paisagem me atingia de um modo intraduzível. Vertiginosamente intenso.
Eram quilômetros de praia nesse limiar entre mar e rio, o solo repleto de pequenos seixos, conchas, búzios, de formas límpidas e como que ainda muito pouco afetadas por qualquer tipo mais enfático de expansão urbana: poluição ou depredação de uma ambiência que ali estava praticamente intocada desde séculos. Desde a própria ocupação da região pelos portugueses, que esboçou-se a partir do sec. XVII.
Por isso, hoje bem entendo, que o mais raro para mim era, sem dúvida, a própria paisagem em si e seus ciclos: o regime das marés, a maresia, o modo como a cor das águas de entre rio e foz variavam dos meses de estio para a estação de chuvas, as cracas e ostras que se agarravam aos pilares dos ancoradouros e aos cascos dos barcos lagosteiros. Um imenso contato com forças naturais que, enfim, despertavam em mim um vínculo permanente. E, de um modo ao mesmo tempo inconsciente e profundamente arraigado, tornava-me parte – uma ínfima fração, é verdade – de tudo aquilo.
Talvez isso tudo se tenha cristalizado, de modo mais emblemático na canoa de pesca. A canoa enquanto forma. Porque, apesar de haver tido uma infância já entre livros, desde muito cedo, o maior poema para mim, era, quando seguíamos – em geral a pé – até a Praia das Barreiras, que já é mar aberto.
Nessa caminhada, prosseguíamos lendo os nomes das canoas, ancoradas à beira da praia. E eram nomes femininos. Daí que a canoa sempre tenha sido, para mim, uma metáfora de mulher – isso está bem exposto em certa passagem de As Vilas Volantes, o texto.
É evidente que discutimos a questão de imagem e de cidade, durante o curso na Vila das Artes. Porém esta, embora um dado importante, não era a questão essencial. Ao menos para mim. Daí o quanto mesmo tendo acesso a textos e referências à cidade de Fortaleza e à grande metrópole moderna em geral, sinto certa má vontade em escrever sobre o assunto. Porque essas cidades se tornaram tão desmesuradas e desagradáveis. Fortaleza, por exemplo, por trás do cosmopolitismo e da assepsia de alguns poucos bairros está entre as vintes metrópoles de maior desigualdade social do planeta. Assim que o assunto, ao fim do rosário, pouco me desperta simpatia.
Toda essa infância camocinense é a base tanto do texto As Vilas Volantes, escrito em 1991, quanto do documentário subsequente, rodado em 2004-2005. E depois dele houve Uma Encruzilhada Aprazível [2006], que tem uma ligação muito mais forte com essas realidades litorâneas do que se pode pressentir numa primeira vista. Porque o pequeno distrito de Aprazível era como que nosso ponto de escala quando viajávamos de férias não por trem, mas pelas precárias rodovias de então.
Aliás, um dos detalhes que mais me tocou, ao longo da semana que convivi com os estudantes do curso de audiovisual, foi quando uma aluna me disse que havia projetado os três documentários feitos praticamente quase pela mesma equipe em meados desta década – As Vilas Volantes, Uma Encruzilhada Aprazível e Sábado à Noite – para a empregada de sua casa, e o que a empregada havia mais apreciado fora justamente Uma Encruzilhada Aprazível.
Isso valeu para mim muito mais que qualquer apreciação crítica mais elaborada, argumentada ou acadêmica. Como de resto se deu – e de um modo bastante positivo – entre críticos ou téoricos que se basearam quase que exclusivamente no filme em si para escrever sobre ele. E, mais, sequer eram daqui, mas de estados do Sul e Sudeste.
E, aqui abro um parêntese. Tendo a ser extremamente auto-crítico em relação às realizações em que me encontro na posição mais central do projeto. Quando terminei de editar o Aprazível, com a colaboração de Veras e Fred Benevides, por ilustração, passei meses sem suportar assisti-lo. Entre outras, por temer não haver investido ali o melhor que eu podia ofertar.
Mas há outras somas. O filme foi, à época de sua conclusão, muito mal recebido pela comunidade de audiovisual aqui em Fortaleza. Lembro de haver ido a uma exibição inicial para amigos, conhecidos, gente da área, logo após a edição. E foi uma sessão dupla. Primeiro se exibiu Sábado à Noite, do Ivo. E, ao final, houve uma verdadeira ovação. Depois, se projetou o Aprazível, e a reação das pessoas foi um bocado fria.
E até mesmo gente ligada à equipe do Aprazível comentou comigo que alguns entendiam a edição do filme como problemática. Alguns dias depois, uma repórter de O Povo me ligou dizendo que queria fazer uma matéria sobre o filme. Enviei-lhe o filme, e uma pequena apreciação por escrito, ao modo de um release. Mas essa matéria jamais foi publicada. Ao que parece, ela não entendeu muita coisa. Então havia esse, como que, mal estar da comunidade audiovisual e formadora de opinião local em relação ao Aprazível.
No íntimo, eu sabia que não era assim. Que o Aprazível guarda uma coerência e, sobretudo, um ritmo muito próprios. Porém ninguém é de ferro e à época relembro ter saído um tanto agastado daquela amostra inicial, que ocorreu no apartamento de Veras. Porque a reação da audiência foi muito fria. Tendo de dissimular minha frustação, em meio ao, como de uso, festivo ambiente dessas ocasiões em que todos se conhecem. E toda apreciação crítica passa menos pelo valor dos filmes em si do que pelas relações de afeto, proximidade ou amizades. E, no entanto, quero deixar claro, passo longe de negar os méritos do Sábado à Noite, de Ivo. Um filme que vejo de modo ambíguo: há momentos que surtem louváveis, no sentido de entendermos melhor nossa complexa relação com uma cidade. Outros, talvez nem tanto.
Digo isso em independência. Porque, embora entenda a importância da sanção dos prêmios, especialmente se outorgados longe, fora daqui, não se pode quedar refém deles. É preciso manter a mente alerta. E não se deixar siderar por eles. Não se pode querer consertar o calçadão da Beira-Mar em função do turista. Mas, em prioridade, em benefício de quem habita a cidade, etc. E, portanto, seguir adiante. Com autonomia. Con brio
E, no entanto, dois paradoxos: não só o Aprazível – junto com o Vilas, claro – foi o filme que despertou a atenção de críticos do sul do país - como, entre outros, Cleber Eduardo, Claudia Mesquita, Consuelo Lins, Cezar Migliorin, Marcelo Ikeda - para o que começou a ser produzido de uma forma diferenciada por aqui; bem como, a exemplo do Vilas, foi o filme selecionado pelos gestores do programa DOC-TV para ser exibido em Brasília, quando da reunião com os realizadores do ano subsequente, como uma sorte de modelo de ousadia formal.
Quer dizer, a despeito da frieza dessa recepção local, foi um filme que abriu portas, uma vez que no ano consecutivo, Sábado à Noite, montado numa versão longa-metragem por Ivo, arrebanhou o prêmio de melhor filme no Festival de Tiradentes, cuja figura de maior poder de barganha, no júri, era justamente Cleber Eduardo, da revista Cinética. O mesmo que havia justo destacado o Aprazível, com umas poucas reservas – algumas, dentre as quais, de resto, me parecem pertinentes. Outras nem tanto. E, de resto, em um ponto concordo com ele, entendo ser As Vilas Volantes o filme mais urgente (no sentido de pioneiro) - inclusive num sentido que vaza para além do estético - realizado por aqui nos últimos tempos. Há gente que vai mais além. Ikeda, por exemplo, o considera o melhor filme já feito desde o Ceará.
Mas, aqui, é preciso seguir com calma. Parcimônia. E olhar para frente. Há desafios para diante. 
Hoje, estou plenamente consciente de minha quase alergia em relação a assuntos que tocam, sob primas os mais diversos, a cidade de Fortaleza. E por uma razão simples, suficiente: não me agradam grandes cidades. E mesmo uma metrópole um tanto fora do eixo das maiores metrópoles brasileiras, caso de Fortaleza, produz em mim um mal estar.
Explico. Neste domingo à noite, por exemplo, precisava comprar dois livros e fui à Livraria Cultura. Ainda não havia ido à Cultura, que foi inaugurada há tão só uns poucos meses atrás.
Bem, sou daqueles que, quando visitava ou morava em São Paulo, passava na Livraria Cultura – então uma pequena caixinha de vidro no embrião do Conjunto Nacional, ali no início da Paulista, quase diariamente. Conhecia os vendedores pelos nomes. Adorava aquela atmosfera um tanto, digamos, desalinhada, tão característica das livrarias antigas, em que havia mais livros que espaço livre. Em que os vendedores eram eles próprios ávidos leitores, gente do ramo. Gente que discutia contigo suas predileções literárias, e com bons argumentos. Em que se esgueirava entre as estantes, nas quais os livro pareciam tão mais próximos. Como se no aconchego da biblioteca de alguém que a gente preza.
Por contraste, hoje à noite, além da assepsia shopping center da Livraria Cultura aqui de Fortaleza, travou-se o seguinte diálogo entre o vendedor e eu:
Vocês tem algum título de Lezama Lima?
Como é mesmo o nome?
Soletrei o nome. E acrescentei: só me interessa se houver edições em castelhano.
E ele:
Em castelhano não tem, pode ser que a gente encontre em espanhol.
E após o breve esclarecimento:
É que tem catalão, né? Esses espanhóis são complicados.
Resultado: não tinha. E veio a sugestão da encomenda. Que descartei prontamente, pois já havia achado os outros dois livros que fora comprar. Ao menos isso.
Com a sacola de livros na mão subi ao mezanino para conferir a seção de cinema. Nada excepcional.
E, no entanto, a livraria como um todo era um vasto espaço cosmético, encontrável em qualquer outra parte do mundo. Desde a iluminação graduada até os degraus de madeira pelos quais se ascende ou desce do mezanino, e por onde se pode entrever dezenas de pessoas bebendo um cappuccino, degustando confeitos num amplo café fronteiro às prateleiras. O carpete, os sofás e poltronas, as máquinas de leitura de barras de código. O tanto que muitos daqueles escritores nas prateleiras, se soubessem do destino de seus livros, sentir-se-iam envergonhados de estar ali. Naquele espaço sem rosto. Limpinho, tão a serviço de consumo. O supermercado do livro.
Saí da livraria com a impressão da soma de inércia e morte que há ali. Naquela impecável assepsia. Nos procedimentos. Na arquitetura, grosso modo. Na postura e nos semblantes das pessoas. No segurança negro, sob um sufocante terno, à saída da loja. E senti um alívio, quando a brisa da noite a meio, soprou em meu rosto no que descia as escadas rolantes para a rua. Uma lufada de ar livre me dessufocando. Porque a única comunhão que senti, então, se deu, não com aquele ambiente apático, mas com o céu de estrelas embaciadas pelo excesso das lâmpadas. Com o terral passeando pela copa das árvores e desalinhando meus cabelos ralos.
Livros. Canções. Filmes.
Cada vez mais tendem a ser como esses espaços neutros, vagos, sem cor. Semelhantes aos aeroportos, aos shoppings, às lojas de conveniência encontráveis em qualquer lugar do planeta.
E me veio a mente a caixinha de vidro que frequentara, lá para trás, em São Paulo. E, sobretudo, o contigente de grupamentos humanos que ainda vive imune a essa vida plastificada. Como era o caso dos habitantes das Vilas Volantes, quando por primeiro os visitei, em 1991.
Mas sobretudo a forma única, inimitável, límpida dos seixos e conchas sobrepostos em camadas e camadas, a rodo, sobre as praias camocinenses; lambidos pelas franjas das grandes marés de fevereiro. A unicidade límpida de sua beleza.
A mesma que tento – quase sempre em malogro – tomar de empréstimo para tudo que escrevo, traduzo ou concebo, em termos de criação.

P.S. – E agradeço à turma com quem, por uma bela semana, trocamos ideias e sugestões na Vila das Artes. E, muito em especial, a aluna que me proporcionou essa prenda: o fato de saber que um filme – aparentemente hermético, quase mudo, sovina em sua utilização de depoimentos, da própria palavra, como o Aprazível – foi apreciado por uma empregada doméstica, semi-analfabeta.

Ah, outra coisa não, mas isto sim! Ganhou minha semana.


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