sexta-feira, 20 de março de 2009

O Cais Bar


Válber Benevides, detalhe do painel do Cais Bar





Em tempo e espaço marcados: um boteco mais luminoso que as chispas ao limiar da caverna de Platão


Difícil explicar as conjunções necessárias e suficientes para um grande boteco. O maior deles em Fortaleza foi o Cais Bar. Por quase tudo: a localização, tão próxima da rebentação, que, em noites de maré braba, algumas finas gotas de água salgada transpunham o calçadão e tingiam as mesas mais expostas de uma fina pátina de maresia.

Era um espaço compacto. Uma varanda com meia dúzia de mesas por debaixo, antecipada por um vão, onde se postavam outra dúzia de mesas. O vão repartia-se em duas alas por uma passarela. que se erguia até a varanda. Era por onde de se entrava. Naturalmente, as mesas mais disputadas eram estas ao ar livre. Elas ficavam ao menos metro e meio acima do leito da rua por conta do desnível da varanda para a calçada. A alameda à esquerda da passarela era esguia e a da direita, sob a uma castanholeira, mais ampla. Eram divididas por balaústres de madeira.

Transpondo-se a varanda, entrava-se para o balcão e o interior do bar, quase sempre numa semi-penumbra, as paredes coalhadas de velhos instrumentos de sopro e cordas, estantes onde se entrevia uma vasta coleção de vinis - pois boa música de fundo, incapaz de perturbar a conversa dos frequentadores, era uma das marcas registradas do boteco e a glória de Berriuaite, o DJ de plantão. Depois acresceu-se um mezanino, lá por cima, que só era ocupado quando o térreo não comportava mais ninguém. Se alguém subisse direto para o mezanino sabia-se que se tratava de um turista, de alguém que não conhecia nada dos códigos do boteco. Mais ou menos como na Inglaterra só os turistas sobem para o primeiro andar dos ônibus quando há assentos no térreo.

Na parede da esquerda, havia o famoso painel de Válber Benevides, onde se via grandes nomes da MPB tomando umas e outras no próprio Cais Bar. Verdade que num Cais Bar estilizado, ideal, sob uma noite de um fantástico azul, a meia-lua acesa por uma lâmpada de neón. Mas esse duplo do Cais Bar no painel tinha outro nome: Bar Luís Assumpção. Quando faltava assunto, o painel sempre fornecia matéria para prosa, porque as relações de proximidade e a pose de cada um das charges eram em si um bocado divertidas. Lembro, por exemplo, que Egberto Gismonti era pouco mais que uma sombra esquivando-se ao fundo e tinha ares de um chefe beduíno.

Mas era raro faltar assunto no Cais.

Era aquele tipo de boteco que se ia de olhos fechados, e quase sempre havia alguma alça de conversa à espera. Para abrir os olhos da gente, porque gente interessante é o que não rareava. Começava ao final da tarde e não tinha hora para fechar. A cozinha não era nada sofisticada, mas os tira-gostos excepcionais - em especial, os bolinhos de peixe. E havia também aqueles garotos que vendiam amendoim em fornos improvisados em latas, que portavam com uma alça de arame, as brasas bruxuleando por dentro. Os ofereciam, desde a rua, pelas tábuas da balaustrada. Os amendoins eram acondicionados em pequenos cones de papel. Domingos Caetano costumava pôr um desses canudos vazios no indicador e dobrar a extremidade mais fina em forma de gancho. Quando um desavisado lhe perguntava:
-O que é isso, Domingos?
-É meu extirpador de hemorróidas. Preciso patenteá-lo - dizia compenetrado.

O Cais funcionou de 1985 a 2003. E conheceu todas as glórias e debacles da moderna Praia de Iracema. Era bem mais solar que o velho Estoril, de quem herdou muitas das cabeças privilegiadas que trocaram o velho cassino dos americanos por um endereço menos decadente e regado à boa música. Era frequentado por universitários, jornalistas, músicos, artistas, professores e, claro, por belas mulheres. Jamais um bar concentrou em seu espaço compacto tantas mulheres bonitas por centímetro cúbico em Fortaleza no espaço de uma geração. Depois, já ao final, havia quase que só putas e ouvia-se muitos idiomas. E, então, talvez se falasse até mais italiano que português por lá.

Uma situação que apenas refratou a da Praia de Iracema no atacado. E perdura até hoje.

As melhores coisas acontecem em tempos e espaços marcados. Para começar. Para acabar. Foi assim com o Cais. É claro que em sua fase áurea, jamais pensávamos que ele fosse acabar, porque jamais imaginávamos que nossa juventude também o fosse. Quando Manuel Bandeira evoca o seu quarto suspenso no ar, em "Última Canção do Beco" [Mas meu quarto vai ficar,/ Não como forma imperfeita/ Neste mundo de aparências:/ Vai ficar na eternidade,/ Com seus livros, com seus quadros,/ Intacto, suspenso no ar!] penso que se pode chegar a uma equação adequada para se evocar o Cais Bar desde essa distância de um tempo longo que passou depressa.

O mais certo é dizer que o Cais Bar acabou, porque nós acabamos com ele. O envelhecemos, o degradamos. Permitimos que a Praia de Iracema envelhecesse de um modo ruim. Virasse o que virou. Nos tornamos sérios demais. Cheios de teorias excessivamente arraigadas, normas e códigos. Viramos desembargadores, juízes, burocratas de alto escalão, executivos, advogados, procuradores, pro-reitores, chefes de departamento, editores, donos de agência de publicidade, políticos. Ou seja, toda sorte de gente que está se lixando para ser feliz ou ocupar-se com a felicidade dos outros.

E talvez a maior virtude do Cais Bar era justo ser um tanto alérgico a esses tipos.




[20.03.09]

Nota - para uma apreciação do velho Estoril, clique AQUI.
* * *

3 comentários:

  1. Bela lembrança do Cais Bar, Ruy!

    A praia de Iracema sempre foi pródiga em locais de camaradagens, afetos e porres.

    Além do Cais Bar e do Estoril, um outro que teve "short and happy life" foi o Setestrelo, da dupla Carlos Costa & Fernando Alvarez, com direito também a um belo painel, assinado por Antonio Carlos Campelo Costa, o "Bala".
    Bons tempos!

    Augusto Cesar Costa

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  2. Esse texto me causou uma série de lembranças, Ruy. Nunca cheguei a frequentar cientemente o Cais Bar, mas quando eu era menor, dos nove aos treze anos, costumava ir todos os finais de semana lá, acompanhando meu pai, que já havia se separado da minha mãe e ficava de olho nas "belas mulheres" que você mencionou. A Praia de Iracema como um todo marcou várias gerações, de diversas formas, positivamente. Sinto muita saudade de caminhar com segurança por ali, de desviar daquelas bolhinhas de sabão chatas e de aproveitar a ressaca do mar em dias de lua cheia. E lembrar disso tudo me dá uma tristeza danada...

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  3. Ruy, Bela lembrança para uma sexta f, saudosa. Lembro demais do Cais bar, ali foi um lugar especial!!Tudo acontecia ali...rsrs, e naquela época tudo ainda era inocente, era menos violento,as pessoas se conheciam, conversavam, ofereciam carona,enfim..Aquele lugar marcou a vida de muitos de nós, e como vc mencionou deixamos acabar porque cada um foi cuidar de sua história.
    Tudo tem seu momento, e o Cais Bar teve o seu junto de nós, o que poderíamos era procurar a turma daquela época. abraços aos Caisbarense de Fortaleza.

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