domingo, 22 de março de 2009

Modificar-se é doloroso: Flannery O'Connor


Flannery O'Connor à varanda da Fazenda Andalusia



Ao menos que seja grotesco



Mary Flannery O'Connor (1925-1964) é tema de uma biografia recém-lançada nos Estados Unidos [Flannery, por Brad Gooch]. Por força de acomodação um tanto grosseira, sua pequena obra – dois romances, algumas dezenas de contos e um volume de ensaios – é reunida sob a rubrica de “gótico sulista” (“Southern Gothic”). Um categoria guarda-chuva que reúne sob si autores tão distintos quanto, entre outros, William Faulkner, Tenessee Williams, Truman Capote, Carson McCullers, Lee Smith, Cormac McCarthy e a própria Flannery O'Connor. O que mais esses autores têm em comum não vai muito além da origem: o Deep South – o que não é pouco, mas nem de longe o suficiente para se criar uma espécie de "escola" que os congregue.
Porém, ao contrário da maioria deles, sulistas protestantes do Bible Belt, orgulhosos fazendeiros cujos antepassados foram derrotados nos horrores da Guerra de Secessão, O'Connor era católica. E praticante. Levou a sério o estudo da filosofia tomista e sua breve vida, assolada pelo lúpus, é marcada pela reclusão e a desimportância. Bem ao contrário de sua contemporânea Carson McCullers. Mas enquanto as ações de escritores como Capote, Williams e McCullers seguem em plena baixa na estima de crítica e público, as de O'Connor não cessam de subir desde sua morte, quarenta e cinco anos atrás.
De fato, não é difícil aperceber-se da razão deste fenômeno: Flannery O'Connor é uma escritora extremamente talentosa e complexa. Algo que sequer suas escolhas éticas e conduta profissional puderam arranhar: ser católica num momento em que isso não agregava nada de muito glamour; preferir, ao contrário de MacCullers e de quase todos os outros grandes escritores sulistas, viver uma vida avessa às badalações e ao ritmo frenético da cena literária em Nova York. Como se não bastasse, ela era solteirona, virgem até onde se sabe, nunca teve lances amorosos dramáticos e passou boa parte de seus breve trinta e nove anos morando com a mãe em uma fazenda chamada Andalusia, nos cafundós da Geórgia.
O momento mais picante da biografia é quando um amigo, vendedor de livros didáticos, por quem ela se apaixona, tenta lhe beijar. E consegue: “quando nossos lábios tocaram-se, tive a impressão que faltava elasticidade à boca dela, como se ela não tivesse nenhuma tensão muscular na boca, o resultado foi que meus lábios tocaram seus dentes ao invés de seus lábios e isso me repassou uma sensação medonha de memento mori, e então o beijo sofreou-se... Tive a impressão de haver beijado um esqueleto, e nesse sentido foi uma experiência alarmante”.
Flannery O'Connor começou como caricaturista, arte que desenvolveu até o fim da vida de forma amadora, e que, de alguma forma, transplanta para sua escrita. Seu pai morreu de lúpus quando ela tinha quinze anos. Sua mãe, também de descendência católico-irlandesa, era uma dessas férreas matronas sulistas que buscou defender a filha de todas as vicissitudes que a cercavam. Aqui, sobretudo, o lúpus, que ficou de herança paterna.
Mas se engana quem pensa que autora de Wise Blood (Sangue Sábio) – romance que conheceu uma digna adaptação para o cinema pelas mãos de ninguém menos que John Huston – foi uma provinciana misantropa que se auto-educou. Seu tutor foi o eminente tradutor dos clássicos (Ilíada, Odisséia) Robert Fitzgerald. Ela frequentou as célebres classes de redação criativa da Universidade de Iowa. E, dizem, por essa época, sua devastadora ironia amendrontava os demais estudantes. Teve encontros pessoais com escritoras como Elizabeth Hardwick e Mary McCarthy. Também manteve correspondência com Robert Lowell e Elisabeth Bishop, que ficou vivamente impressionada por seu talento. Com Lowell, manteve uma paixão platônica, epistolar, chegando a enviar-lhe por correio uma pena de pavão - o que, de resto, não o impressionou muito.
Os temas de O'Connor seguem intimamente ligados ao Sul e à obsessão protestante por interpretar a Bíblia à letra. Em um de seus relatos, um pregador esforça-se por fundar uma igreja cristã, sem Cristo. Depois de uma série de peripécias, finda por arrancar os próprios olhos como prova de fé e atinge um estado de graça. Num outro, um pastor afoga seu afilhado no ato de batismo. Ou há ainda a notável narrativa em que um sujeito finge apaixonar-se por uma aleijada apenas para lhe roubar a perna de pau. Os relatos são cruéis, realistas, de um humor retorcido, marcados pela dicção, a fala próprias do Sul extremadamente bem estilizadas em sua prosa.
Aos nortistas que reprochavam essas “excentricidades góticas” de sulista, O'Connor devota uma frase lapidar: “tudo que provenha do Sul será considerado grotesco por um leitor do norte; ao menos que seja grotesco, quando então é chamado de realista”. Ela estava mais interessada em representar a realidade que em corrigi-la. E, assim, seu interesse pelos movimentos de igualdade racial eram secundários em relação aos que devotava à sua escrita, embora nutrisse simpatias pela causa dos negros, e isso, de alguma forma, esteja expresso na humanidade de seus relatos.
Dizem que tinha belos olhos azuis. E que entendia que seu assunto por excelência era "a ação da graça num território vastamente ocupado pelo diabo". Também intuía que seus escritos eram lidos "por uma audiência que atribui muito pouca importância tanto à graça quanto ao diabo". A exemplo de Chesterton, deduzia que o livre-arbítrio católico representava um vetor de liberdade criativa para o artista: "o romancista católico crê que se destrói a liberdade no pecado; o leitor moderno, suponho, pensa que é assim que ela é ganha. Não há muita possibilidade de entendimento entre ambos".
Flannery O'Connor tinha duas obsessões: a criação de aves – em especial, pavões – e seu trabalho de escritora. Debilitada pelo lúpus, num quarto de hospital, poucos dias antes de morrer, com tubos por todo o corpo, ela se entregava a uma de suas tarefas mais recorrentes: revisar exaustivamente um de seus originais. Costumava dizer: “a graça nos modifica, e modificar-se dói”.


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2 comentários:

  1. Olá estou indicando seu blog para o selo"Jovens que pensam". Está lá no blog http://metempsicose-metempsicose.blogspot.com, é só copiar e seguir os passos. Entre pois há poucos blogs de literatura na corrente.
    Um abrço
    Rafael Menezes

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  2. Nossa! Coincidência. Acabo de perguntar sobre ela num e-mail que enviei. Aqui está a resposta.

    Beijos, Ruy!

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