sábado, 21 de março de 2009

Mapas, desmapas: a falácia


[s/i/c]


Uma falsa questão


Falácia de escritores que buscam deliberadamente a “imprecisão” de escrever a partir de nenhures ou de um tempo a-histórico (“tempo sem-tempo”). Pretendem negar os esforços dos outros. Dos que insistem, por inclinação, sensibilidade, em falar dos tempos e lugares que os cercam de modo mais incisivo.

A questão, em si, é obtusa.

Não há algo de proprietário aqui. Tende-se a entrever uma divisão “teórica” onde há tão-só diferenças de sensibilidade. Até porque, no mínimo, por mais que um escritor situe seu discurso no plano do genérico, este discurso provém de um corpo que, de outro modo, é condicionado geograficamente: sente frio, calor, tremores; é jovem, de meia-idade, velho.

Vive, porque atravessa espaços e tempos: passa por diferentes locais, mora em alguns deles, visita outros, adoece, é moldado por uma determinada dieta de grãos, frutas, carnes, hortaliças, tabaco, vinho, cerveja.

Por mais que esses “escritores de nenhures” se dediquem a um esforço de fábula e imaginação; essa imaginação genérica e essa fábula portam a nódoa de um lugar, de um tempo. As diversidades, aqui, se dão muito mais por conta da consciência de um passado histórico e de uma vontade de jogar ou não com esse passado. Quer dizer, no caso do sim, de um apego ao passado no sentido de variá-lo, desdobrá-lo, descontinuá-lo, estudá-lo, perspectivá-lo, deformá-lo, tresvariá-lo. Para melhor consegui-lo com palavras. Ainda quando na forma da fábula.

Não devemos esquecer que algumas das fábulas mais cativantes, delirantes e aparentemente “livres” da literatura, como o Dom Quixote de Cervantes, o Gulliver de Swift, o País das Maravilhas de Carroll, a Metamorfose de Kafka ou a Fazenda dos Bichos de Orwell não podem ser entendidos plenamente sem se conhecer, em paralelo e respectivamente, a situação de uma obscura província de Castela ao fim do Medievo; a gana colonizadora dos britânicos no séc. XVIII; a Inglaterra Vitoriana e seu moralismo tacanho; a Praga das primeiras década do séc. XX, vivenciada em alteridade por sua pequena e afluente comunidade judaica; ou um mínimo da história da Revolução Russa. Não existe algo como escrever a partir de “nenhures”. Simplesmente porque não existem “nenhures” ou atemporalidades.

Desconfie do escritor que quer soar o mais cosmopolita possível. Ele não pode abstrair-se de falar a partir de uma cultura. Uma cultura é algo maior que o desejo romântico – no mau sentido – de se inaugurar uma escritura “imune” ao local e ao tempo. O ponto, aqui, é que dá muito mais trabalho conhecer com profundidade a própria cultura em que se está imerso. E, ao invés disso, busca-se traçar com vigor um esforço para exorcizá-la em diferentes níveis. Em especial, a partir da adoção e da lapidação de uma terminologia plana, sem compositividade ou esteio histórico. A maioria dos artistas quer esquivar-se dessa tarefa de reconhecimento. Essa tarefa histórica/etnográfica. Pois ela requer tempo, paciência. E, assim, preferem reivindicar uma espécie de escrita-exílio tomando como base uma suposta cultura mundializada. E daí vem as polifonias desmapeadas e ocas. O problema é que até mesmo essa escrita-exílio e essa cultura mundializada, descentrada, desgenetizada, sem mapa, está profundamente marcada por um tempo e um local especifíssimos e que definem justamente o porquê e o como de elas se reivindicarem desterradas.

A terra em relação a qual elas estabelecem-se como “exiladas” ou “desgeografizadas” é, no fim das contas e por uma fina ironia, justo o parâmetro, o eixo mesmo dessas elocuções supostamente não axiais. Pois o próprio idioma de que lançam mão está impregnado de concretudes que tornam até mesmo as vaguidades supostamente menos atadas à história e à geografia, completamente dependente destas.

Optar por escrever algo mais rente à realidade histórica ou, do contrário, fabulá-la através do fantástico, isso é de cada um. É apenas uma opção. Mas que não se caia na armadilha de achar que tão-só por se estar supostamente escrevendo sobre temas abstratos ou gerais– afetos, amor, sexo, dinheiro, ritos de passagem, morte, existencialismos proto-filosóficos – também se está escrevendo a partir de um limbo temporal e espacial. O tempo e o espaço irão cobrar essa dívida mais cedo ou mais tarde. Afinal, embora a percepção deles se tenha modificado em progressão avassaladora, num ritmo ditado pela cibernética, nas últimas décadas, ainda não se pode viver fora de um tempo e de um espaço. Mesmo que a percepção desse tempo e desse espaço hajam sido fundamente modificadas pelas extensões do que hoje conhecemos como mundo virtual.




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