segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Em memória da água


[s/i/c]


O som da chuva


Em dias de chuva o som se propaga com uma inata qualidade. É ao mesmo tempo oco e remoto. Por causa do silêncio que se segue ao frigir da chuva caindo, todo som adquire um estatuto de raridade. É ao mesmo tempo limpo e nítido. Único. Como se propagasse num ar recém-lavado. Inaugurado de novo. A qualidade desse som pode despertar um mundo adormecido. É o som da memória.

Dias de sol é o que Fortaleza é. Uma das cidades mais solares do planeta. O sol se faz tão constante e intenso que parece nos sitiar. Que sugere que vivemos numa fortaleza de grandes muros – à sombra deles – para poder minorar os efeitos da luz. Para não adoecermos de luz. Para não morrermos de insolação. E evitar o delírio provocado pela recorrente febre em que vivemos. Vida equatorial, quase sem estações.

Fortaleza é um acampamento num deserto à beira-mar. E o que nos refresca da insolação geral são três coisas: o mar, as lagoas e as chuvas. Das três, a mais perene é o mar, a mais discreta são as lagoas e a mais escassa, as chuvas. O mar, no entanto, não é para todos. É cada vez mais para os que tem tempo e dinheiro para comprar um terreno diante ou próximo dele, ou para se deslocar até ele com freqüência. Das três, o mar é a mais aristocrática.

Do contrário, a chuva cai por toda parte. Molha a leste e oeste. E cai do mesmo jeito na Aldeota ou no Lagamar. Se seus efeitos são diversos é por conta da injustiça dos homens. A mesma que separou o mar para os mais ricos. Como diz Gracián, “a água partilha as boas e más qualidades dos veios por onde passa”.

A chuva cai de graça e lhe é indiferente se os telhados são alinhados ou não. Ela ainda não pôde ser cercada. Ela ainda não é vendida em frascos. Quanto ao mar, ainda virá o dia em que toda a orla de Fortaleza, devidamente grilada pela especulação, será um território quase proibido para quem ganhar menos de dez salários mínimos. Para nossa desgraça ainda maior.

O Beach Park é a própria antecipação dessas praias do futuro, que não serão para todos e confirmarão o processo de miamização e exclusão que está na base da expansão – devidamente não planejada – de uma cidade como Fortaleza, hoje.

Mas ainda nesse tempo futuro, quando não formos mais do que memória, essa chuva continuará caindo sobre todos do mesmo jeito. Como cai agora. Lavando o ar. E quem sabe, seremos apenas essa ausência no som depois da chuva, a lembrar os vivos que tivemos sonhos.

Alguns deles bem esquisitos. Alguns justos. Como o de imaginar uma sociedade mais igual por menos afetada pela macia beleza da chuva.



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