[s/i/c]
Versos à boca do caixa
Argumento
Essas frases ouvidas de raspão. Mas que são ditas com propriedade. Sente-se que moram na filosofia.
O ouvido mesmo que só arranhado por elas, as guarda. Retirando-as do meio da larva de lugares-comuns que usamos para nos comunicar. E rebate nelas a poeira acumulada.
Agora de manhã, à passagem das compras, a caixa do supermercado, de conversa com o empacotador, disse: "o coração da gente é terra estranha".
Ela é uma mulher gorda, óculos para presbiopia, sardenta, brancosa - "galega", se diria em bom fortalezês. Não propriamente bonita. De onde se lima pelo menos a hipótese de eu tomar a graça da frase pela da fraseadora.
Foi a graça da frase.
Ao menos do jeito que ela a disse - pois também a voz tem seus mistérios - que me permitiu guardá-la, gratuitamente. Sem nenhum propósito. A não ser achar, talvez, pensando depois, que por ser um decassílabo, ela se parece - guardada a lonjura de cinco séculos - com um primeiro verso de Camões ou Sá de Miranda. Do tipo "Desarrazoado amor d'entre em meu peito" ou "Oh, quão caro me custa o entender-te". E há essa aliteração do t reforçada por um semi-t (um d) anterior: "O coração da gente é terra estranha". No fim, a frase é bonita. Dita por quem quer que seja. E, em especial, por aquela mulher gorda, que me passava a nota impressa em um papel brilhoso, sem me ver direito, enquanto conversava com o empacotador. Um recibo no qual tudo que segue impresso esmaece em pouco tempo.
Ao contrário da frase.
Me lembro de, em mais jovem, escutar essas frases com mais freqüência. Em mais jovem, quando eu tinha certeza que era poeta. Certamente os poetas - os poetas mesmo, de verdade, parcela ínfima entre os que publicam livros de poesia - devem escutá-las com mais freqüência que escuto. Venham elas de pessoas gordas, magras, esquálidas. Ou então, como se dizia no idos em qu'eu era poeta: cheinhas.
Nota
Acho que ainda é possível chamar as pessoas gordas de: "gordas". Me informem. Parece que o politicamente correto até aqui não nos obriga a chamá-las de outra coisa. Por negação: "não magras". Ou por um desses eufemismo que tornam a coisa toda ainda mais rotunda, como 'volumosamente desafiadas'. Algo que o valha. Essas renomeações são um dado de nosso tempo. Pretendem suavizar algo (um ser, uma relação, um atributo) que não é suavizável. Almejam retirar uma diferença que não é retirável. Por exemplo, ao substituir a palavra "aleijado" - que soa tão áspera mas ao menos tem uma longa história atrás de si - por "deficiente físico" ou "cadeirante" apenas se troca um ficha usada por uma nova. Mas rapidamente a nova segue, com o uso de contexto, agregando o sentido da usada: "a imobilidade dói. Causa diferença. Separa. Estigmatiza, ainda que se não queira. Como não deve ser fácil ter de se mover sem pernas ou braços". Essa compulsão para renomear vem de uma espécie de moralidade laica européia. Ao trocarem valores religiosos tradicionais (e arcaicíssimos ) pelos de ávidos consumidores laicos, os europeus perceberam que seria necessário criar uma nova terminologia moral que justificasse a mudança. Que demarcasse a separação entre a moralidade laica e a tradicional, religiosa. Nessa guerra, ganhou a laica de goleada. E é precisamente ela que usamos hoje em dia. Ela, que aparentemente morre de escrúpulos, zelos e melindres. Morre de medo de ferir o outro, porque vive ferindo-o (e ao planeta) ao render-se ao canto de sereia do consumo nas vinte e quatro e mais horas do dia. Eis porque "caridade", durante séculos o nome do amor mais elevado, é hoje um termo reduzido a uma espécie de filantropia de fim-de-semana. Ao brinquedo usado que se deposita, durante a campanha de ajuntar brinquedos para crianças pobres, na cesta do supermercado.
Contra-Nota
Certo, mas vamos voltar a si. Falávamos mesmo de quê? Ah, sim de certas frases ouvidas ao acaso no supermercado ou onde mais for. De onde virão elas: "Where do they all belong?" Lá sei. Mas, às vezes, desconfio que são cacos de algo maior - algo que realmente faz (ou fazia) sentido - perdidos na massa informe dos ruídos presentes, que logo serão passados. Ou seja, facilmente um psicanalista poderia me tomar por um neurótico.
Suma
(Cá entre nós, me sentiria insultado se assim não fosse).
Essas frases ouvidas de raspão. Mas que são ditas com propriedade. Sente-se que moram na filosofia.
O ouvido mesmo que só arranhado por elas, as guarda. Retirando-as do meio da larva de lugares-comuns que usamos para nos comunicar. E rebate nelas a poeira acumulada.
Agora de manhã, à passagem das compras, a caixa do supermercado, de conversa com o empacotador, disse: "o coração da gente é terra estranha".
Ela é uma mulher gorda, óculos para presbiopia, sardenta, brancosa - "galega", se diria em bom fortalezês. Não propriamente bonita. De onde se lima pelo menos a hipótese de eu tomar a graça da frase pela da fraseadora.
Foi a graça da frase.
Ao menos do jeito que ela a disse - pois também a voz tem seus mistérios - que me permitiu guardá-la, gratuitamente. Sem nenhum propósito. A não ser achar, talvez, pensando depois, que por ser um decassílabo, ela se parece - guardada a lonjura de cinco séculos - com um primeiro verso de Camões ou Sá de Miranda. Do tipo "Desarrazoado amor d'entre em meu peito" ou "Oh, quão caro me custa o entender-te". E há essa aliteração do t reforçada por um semi-t (um d) anterior: "O coração da gente é terra estranha". No fim, a frase é bonita. Dita por quem quer que seja. E, em especial, por aquela mulher gorda, que me passava a nota impressa em um papel brilhoso, sem me ver direito, enquanto conversava com o empacotador. Um recibo no qual tudo que segue impresso esmaece em pouco tempo.
Ao contrário da frase.
Me lembro de, em mais jovem, escutar essas frases com mais freqüência. Em mais jovem, quando eu tinha certeza que era poeta. Certamente os poetas - os poetas mesmo, de verdade, parcela ínfima entre os que publicam livros de poesia - devem escutá-las com mais freqüência que escuto. Venham elas de pessoas gordas, magras, esquálidas. Ou então, como se dizia no idos em qu'eu era poeta: cheinhas.
Nota
Acho que ainda é possível chamar as pessoas gordas de: "gordas". Me informem. Parece que o politicamente correto até aqui não nos obriga a chamá-las de outra coisa. Por negação: "não magras". Ou por um desses eufemismo que tornam a coisa toda ainda mais rotunda, como 'volumosamente desafiadas'. Algo que o valha. Essas renomeações são um dado de nosso tempo. Pretendem suavizar algo (um ser, uma relação, um atributo) que não é suavizável. Almejam retirar uma diferença que não é retirável. Por exemplo, ao substituir a palavra "aleijado" - que soa tão áspera mas ao menos tem uma longa história atrás de si - por "deficiente físico" ou "cadeirante" apenas se troca um ficha usada por uma nova. Mas rapidamente a nova segue, com o uso de contexto, agregando o sentido da usada: "a imobilidade dói. Causa diferença. Separa. Estigmatiza, ainda que se não queira. Como não deve ser fácil ter de se mover sem pernas ou braços". Essa compulsão para renomear vem de uma espécie de moralidade laica européia. Ao trocarem valores religiosos tradicionais (e arcaicíssimos ) pelos de ávidos consumidores laicos, os europeus perceberam que seria necessário criar uma nova terminologia moral que justificasse a mudança. Que demarcasse a separação entre a moralidade laica e a tradicional, religiosa. Nessa guerra, ganhou a laica de goleada. E é precisamente ela que usamos hoje em dia. Ela, que aparentemente morre de escrúpulos, zelos e melindres. Morre de medo de ferir o outro, porque vive ferindo-o (e ao planeta) ao render-se ao canto de sereia do consumo nas vinte e quatro e mais horas do dia. Eis porque "caridade", durante séculos o nome do amor mais elevado, é hoje um termo reduzido a uma espécie de filantropia de fim-de-semana. Ao brinquedo usado que se deposita, durante a campanha de ajuntar brinquedos para crianças pobres, na cesta do supermercado.
Contra-Nota
Certo, mas vamos voltar a si. Falávamos mesmo de quê? Ah, sim de certas frases ouvidas ao acaso no supermercado ou onde mais for. De onde virão elas: "Where do they all belong?" Lá sei. Mas, às vezes, desconfio que são cacos de algo maior - algo que realmente faz (ou fazia) sentido - perdidos na massa informe dos ruídos presentes, que logo serão passados. Ou seja, facilmente um psicanalista poderia me tomar por um neurótico.
Suma
(Cá entre nós, me sentiria insultado se assim não fosse).
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