segunda-feira, 30 de março de 2009

Tradução e vertigem


[s/i/c]




O que move o coração


Os leitores de tradução neste blogue têm me cobrado traduções. Sinto, amigos. Tenho vivido muito pouco para além dos livros e de uma ou outra conversa avulsa em mesa de bar recentemente. E só isso não é suficiente para acumular ou nutrir experiência. Tradução também brota de experiência. Há que se viver para traduzir. E, de momento, penso haver traduzido quase tudo que me era mais caro. Já há neste blogue mais de cem poetas e duas centenas de poemas vertidos. Pode parecer pouco. Mas a intensidade é mais bem-vinda que a cópia.

Sem falar que, ao contrário do que pensam muitos, tradução exige uma energia, tempo e concentração análogos aos da escrita original. Apenas seus fins são mais modestos, porque se sabe tão-só querer partilhar com outros o que moveu o coração num instante de vertigem.

Aliás, por conta de compromissos e empenhos outros, temo negligenciar este blogue nos próximos dois meses. Oxalá possa ser o contrário!



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sábado, 28 de março de 2009

A vanguardice tem falado mais alto que a verdade


Wise Blood, John Huston, 1979




Nove Meses, um belo curta & reflexos para além
-sitiada pelo usual ponto de vista da unilateralidade de se fazer algo "de vanguarda", em termos de linguagem, as produções cearenses recentes não conseguem vazar para fora de uma sorte de gueto


Há um fluxo de produção de imagens no Ceará que merece atenção e cuidado. Ele em geral gravita em torno de três importantes pólos que se interpenetram: a Escola de Audiovisual da Prefeitura, a ONG Alpendre e a Produtora Alumbramento.

Dias atrás assisti um filme chamado Nove Meses, de João Luís [Jojô]. O curta traz belas imagens e, em especial, na sequência de abertura, que é magnífica. Também o ritmo da montagem chama a atenção nesse começo: cortes abruptos, relâmpagos sobre uma bela cena em plano longo, provavelmente gravada da vigia de um jato, onde se vê um céu de brigadeiro, plácido, pairando acima do mundo, com seu relevo de densas nuvens brancas, límpidas, que mais se assemelham a blocos, montanhas de gelo em meio a um oceano azul. A imagem é de uma pureza excepcional. Bastante indicativa de uma idéia de início. E ainda mais quando, volta e meia, intervalada por esses rapídisssimos cortes, em que assoma uma espécie de aparelho de tons amarelos, semelhante a uma empilhadeira de bagagens (mas não é isso), a lembrar do mundo neste planeta aqui embaixo, com todos os problemas - inclusive ambientais - que ora vivenciamos.

O tema de Nove Meses é a consolidação da vida através do nascimento de um bebê. O processo que vai da gestação ao parto. Mas, ainda assim, apesar de toda sua gana experimental e algumas sequências que merecem aplauso sem reservas, o filme padece exatamente da mesma defasagem da maioria dos filmes experimentais produzidos nos últimos tempos em Fortaleza. Ou seja, a defasagem entre certo arrojo de dispositivos e os pontos de contato desses dispositivos e da proposta geral da coisa com um panorama mais coletivo e histórico. Ou ainda seja, o ponto é que essas produções não conseguem elastecer-se para uma inscrição mais coletiva. Uma inscrição que brote de uma conversa com signos de uma vida normativa, cotidiana. Os filmes prosseguem sem conseguir transcender os códigos compartidos apenas por uma meia-dúzia de iniciados. Ir além disso. Porque é preciso ir. Quer dizer, é necessário fazer filmes que consigam abrir-se, sem detrimento de seu arrojo experimental, para uma inscrição em um projeto que aponte para realidades concretas e locais, vivenciadas por outras pessoas que não as envolvidas expressamente no circuito da produção de imagens. Algo que vaze o fluxo dessa produção apontando para a experiência de vida de milhares, milhões de pessoas que não ortodoxamente estão ocupadas com o processo de se montar um filme. Ou mesmo de ir ao cinema. Ou sequer conceber que possa existir algo apurado, em termos audiovisuais, que se afaste muito do dispositivo narrativo da telenovela.

É esta, precisamente, a espada de Dámocles da atual produção de jovens e promissores cineastas cearenses. Os filmes são instigantes sob vários aspectos. Em especial, no que toca à imensa gana experimentalista. Mas falta só um pouco mais, alguns poucos passos, para que essa gana consiga consorciar-se á necessidade épica de abordar temas menos genéricos, video-clipáveis, de gueto, tribais; porém, do contrário, fazê-los mais próximos da cotidianidade e da memória coletiva. De uma espécie de "senso-comunalidade". É esse clique, esse engate que ainda não ocorreu.

Sem isso, corre-se o risco de que essas produções gravitem apenas em torno de uma estética "fru-fru", que experimenta por experimentar, mas sem se permitir maiores vínculos com as realidades experienciadas por todo um povo, em níveis diversos. Em resumo, falta senso-comum à maioria dessas novas produções.

Esforços como os de Jojô e de vários outros jovens realizadores devem ser louvados e tomados com apreço e aplauso. Entendidos como exercícios que, pela insistência em testar novos dispositivos, são instigantes em si. Inclusive por, em muitos casos, serem filmes de estréia. E, no entanto, não enquanto destinam-se a buscar atingir soluções fílmicas onde a inscrição do projeto seja mais coerente em termos históricos concretos, uma vez que a maioria desses esforços passa bem ao largo de um senso mais historicamente consolidado e uma tradição que os antecipa. E os antecipa não necessariamente na forma de cinema (mas na literatura, na memorialística, na música, na gestualidade, na elocução da fala, na especificificidade de todo um cromatismo de ruídos, na etnografia presente na confecção de certos utensílios, etc.). Filmes, enfim, capazes de transcender a subjetvidade individual - ou mesmo do pequeno grupo gnóstico - e atingir, assim, aquele raro condão de consorciar experimentação com inscrição em algo mais amplo, divisável por um número maior de pessoas e por um senso cultural calcado em uma tradição histórica, tão relegada às favas pela maioria desses jovens realizadores. Pois só munidos dessa consciência histórica - que é também uma consciência das "formas" prometidas pela vivência coletiva num "passado longo" - será possível a confecção de filmes calcados em códigos compartidos por mais de uma meia-dúzia de iniciados. Filmes simultaneamente arrojados, do ponto de vista dos dispositivos, mas com consequências e ressonâncias culturais. Tão-só estes podem ser reivindicados como formalmente arrojados. Os que persistem nos experimentos de linguagem por si - ao modo de vespas em torno de uma chama numa noite fria - logo convertem-se apenas em curiosidades a serem vistas por iniciados e rapidamente viram arquivo. Crônicas de como se fazia um filme experimental em Fortaleza no ano de 2009. Curiosidade de época. Algo que já nasce datado.

A impressão que se tem é que ao se assistir filmes como Nove Meses gera-se um fosso, uma ambiguidade quase intransponível. Por um lado, as belas imagens, o afã de experimentar, além do desejo de que a produção não pare por aí. Por outro, a frustração de entrever essa produção quase que exclusivamente obcecada com questões de linguagem - como se fosse possível separar forma (pesquisa de linguagem, emprego de certos dispositivos) - de assunto [ou conteúdo], consequência histórica de uma coletividade. Forma e assunto são indissociáveis e se entre-salpicam. Qualquer forma em arte provem desse equilíbrio. E apenas nos momentos em que ambos - experimento e consequência histórica - acham uma solução de equilíbrio é que esses filmes poderão, de fato, serem robustos, formalmente. Serem reconhecidos como elocuções que podem transformar a produção de audiovisual em Fortaleza, num pólo realmente importante dentro de um contexto não só brasileiro.

É mais ou menos nesse rumo que se pode pensar que uma boa sugestão estética vem a ser a de se estudar modos de representação de regiões que guardam semelhanças históricas com o Nordeste clássico (ainda que, de momento, atravessando uma incipiente e progressiva urbanização que grita para ser documentada). Como o Deep South, nos Estados Unidos, por exemplo. Nesse sentido, filmes não ortodoxamente de vanguarda, como Wise Blood, uma produção mais "artesanal" de John Huston, baseado em romance de Flannery O'Connor, talvez tenham tanto ou mais a ensinar a essas jovens mentes seduzidas apenas pelas sereias do experimentalismo, do que muito de Deren, Anger, Shirley Clarke, Brakhage, Kubelka, Bruce Connor ou Bill Viola.



[28.03.09]

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sexta-feira, 27 de março de 2009

Can't Find My Way Home


Capa do único disco do Blind Faith (auto-intitulado com o nome da banda), 1969




Cabra-cego à caminho de casa


Nos últimos tempos, ando ouvindo Blind Faith. Não, a informação é manca. Melhor dizer que ando ouvindo, sobretudo, "Can't Find My Way Home", a belíssima balada de Steve Winwood que eles gravaram em versões acústica e elétrica. Prefiro a acústica por ligeira margem. É mais sutil. Os violões soam fluidos e sem tirar nem pôr. O legendário baterista Ginger Baker faz a cozinha ferver bonito, mas suave. A voz de Winwood, em falsetto, é uma performance vocal de se tirar o chapéu ou ir à Espanha atrás de um. E pensar que tanto acerto vem do longínquo ano de 1969.

Há quem diga que o "Fé Cega, Faca Amolada", de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos paga um tributo velado ao grupo. Gilberto Gil chegou a gravar "Can't Find My Way Home" só ao violão - mas essa variante não está propriamente entre o melhor de Gil. Para quem nada conhece do Blind Faith, segue um linque para "Can't Find My Way Home" no Youtube. Abstraia os aplausos ao início e ao final: foram adicionados pelo fã que postou a versão (que naturalmente é de estúdio, porque não se toca tão perfeitamente assim ao vivo). Feche os olhos para as imagens. Ouça:




A letra, bastante simples, quer dizer (muito-mais-ou-menos) isto - com toda a estranheza que uma letra de música fica num outro idioma quando traduzida (muito-mais-ou-menos) literalmente:



Não dou com o caminho de casa


Descer de um trono, e deixar o corpo em abandono,
É preciso mudar,
És a razão que eu esperava há tanto tempo,
A que detém a chave.

Mas sigo perto do fim
E ainda não dei com o tino do tempo.
Desperdicei-me
E não dou com o caminho de casa.

Descer como dono, e deixar o corpo em abandono,
É preciso mudar,
És a razão que eu esperava há tantos anos,
A que detém a chave.

(Mas não dou com o caminho de casa).





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terça-feira, 24 de março de 2009

Uma espécie de ôca eficácia


[s/i/c]



Publish or Perish


Na academia certos assuntos ganham uma dimensão proprietária. Algo do tipo: "como ele ousa intrometer-se no 'meu' assunto?", "que desfaçatez não citar o 'meu' livro nas referências bibliográficas!"; "como 'eu' não fui citado em seu artigo?


E quanto menor o universo de amostra, maior a ciumeira proprietária. Alguém pode ser dono de uma cidade? Ou de um tema mais abstrato: loucura, sexo, movimentos sociais, (argh!) identidade, direito das minorias, limiar, morte, Marx?

A sabedoria, o lado épico da verdade, converteu-se numa espécie de eficácia medida por papers publicados. E pensar que Einstein não publicou mais do que três papers em toda sua profícua carreira acadêmica.


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Candy, candy, sweetheart


[s/i/c]



Tabletes Edulcorados


Como se pode imaginar que casais possam ser felizes, se está fora do horizonte o querer bem? Esse bem-querer mútuo pode até começar na forma de filme: exaltado, passional. Exaltação e passionalidade passam. O noves fora é o dia, e outro dia, mais outro.

Semanas, meses, anos. Os salmos disso. Tudo tão distinto da patética passionalidade daqueles filmes em que John gira Betty na clareira de um campo de girassóis absolutamente encantatório, à contra-luz do sol-posto, num plano que progressivamente abre-se em zoom para o infinito. A verdadeira paixão, a exemplo do amor, está no "trabalho diário": lavar a louça sem perder o fio da anedota. Reverter o fel do lábio sem necessariamente edulcorá-lo. Não há filmes, planos ou zooms por aqui. A não ser o zunido dos dias, que quase sempre nada tem de glamurosos.

Os antigos diziam, não digas conhecer um ser humano sem antes ter comido com ele um saco de sal. Nossos problemas enquanto casais é que vivemos no Reino do Caramelo. Doce, doce. Mas dissolve rápido.

E aí pode-se dizer: o meu modelo de amor? Peguei num comercial da Hershey's.

Para nós, no milênio novo, mais subestimada que paixão, só a palavra caridade. Horror a essas mensagens adoçadas onde se lê: "um beijo no coração". Pense em aortas, ventrículos, prolapsos, safenas, mitrais. Poucas coisas há, a exemplo do adjetivo "fofo", de mais kitsch na face das terras em que se fala o idioma português.

No caso do "fofo", aliás, pode-se imaginar um guru pregando: "irmãos, estofai-vos uns aos outros!".


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Perda sobre perda


Louis Jacques Mand Daguerre, c. 1824




Teoria das Ruínas


não ficará
perda sobre
perda



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Nada de muito alarme


Jacob Philipp Hackert, sec. XVIII




Na página 500 do sonho



E na página 500 do sonho, eu morria. Nada de muito alarmante, pensei, ao despertar: somente aos vivos é dado experimentar um memento mori.

Eu tinha quarenta e seis anos.



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Arco-Aquiles


[s/i/c]



Da Falta de Tato


tentou segurar

as mandíbulas do cão

mas a mordida

já se abria

sobre suas mãos



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domingo, 22 de março de 2009

Modificar-se é doloroso: Flannery O'Connor


Flannery O'Connor à varanda da Fazenda Andalusia



Ao menos que seja grotesco



Mary Flannery O'Connor (1925-1964) é tema de uma biografia recém-lançada nos Estados Unidos [Flannery, por Brad Gooch]. Por força de acomodação um tanto grosseira, sua pequena obra – dois romances, algumas dezenas de contos e um volume de ensaios – é reunida sob a rubrica de “gótico sulista” (“Southern Gothic”). Um categoria guarda-chuva que reúne sob si autores tão distintos quanto, entre outros, William Faulkner, Tenessee Williams, Truman Capote, Carson McCullers, Lee Smith, Cormac McCarthy e a própria Flannery O'Connor. O que mais esses autores têm em comum não vai muito além da origem: o Deep South – o que não é pouco, mas nem de longe o suficiente para se criar uma espécie de "escola" que os congregue.
Porém, ao contrário da maioria deles, sulistas protestantes do Bible Belt, orgulhosos fazendeiros cujos antepassados foram derrotados nos horrores da Guerra de Secessão, O'Connor era católica. E praticante. Levou a sério o estudo da filosofia tomista e sua breve vida, assolada pelo lúpus, é marcada pela reclusão e a desimportância. Bem ao contrário de sua contemporânea Carson McCullers. Mas enquanto as ações de escritores como Capote, Williams e McCullers seguem em plena baixa na estima de crítica e público, as de O'Connor não cessam de subir desde sua morte, quarenta e cinco anos atrás.
De fato, não é difícil aperceber-se da razão deste fenômeno: Flannery O'Connor é uma escritora extremamente talentosa e complexa. Algo que sequer suas escolhas éticas e conduta profissional puderam arranhar: ser católica num momento em que isso não agregava nada de muito glamour; preferir, ao contrário de MacCullers e de quase todos os outros grandes escritores sulistas, viver uma vida avessa às badalações e ao ritmo frenético da cena literária em Nova York. Como se não bastasse, ela era solteirona, virgem até onde se sabe, nunca teve lances amorosos dramáticos e passou boa parte de seus breve trinta e nove anos morando com a mãe em uma fazenda chamada Andalusia, nos cafundós da Geórgia.
O momento mais picante da biografia é quando um amigo, vendedor de livros didáticos, por quem ela se apaixona, tenta lhe beijar. E consegue: “quando nossos lábios tocaram-se, tive a impressão que faltava elasticidade à boca dela, como se ela não tivesse nenhuma tensão muscular na boca, o resultado foi que meus lábios tocaram seus dentes ao invés de seus lábios e isso me repassou uma sensação medonha de memento mori, e então o beijo sofreou-se... Tive a impressão de haver beijado um esqueleto, e nesse sentido foi uma experiência alarmante”.
Flannery O'Connor começou como caricaturista, arte que desenvolveu até o fim da vida de forma amadora, e que, de alguma forma, transplanta para sua escrita. Seu pai morreu de lúpus quando ela tinha quinze anos. Sua mãe, também de descendência católico-irlandesa, era uma dessas férreas matronas sulistas que buscou defender a filha de todas as vicissitudes que a cercavam. Aqui, sobretudo, o lúpus, que ficou de herança paterna.
Mas se engana quem pensa que autora de Wise Blood (Sangue Sábio) – romance que conheceu uma digna adaptação para o cinema pelas mãos de ninguém menos que John Huston – foi uma provinciana misantropa que se auto-educou. Seu tutor foi o eminente tradutor dos clássicos (Ilíada, Odisséia) Robert Fitzgerald. Ela frequentou as célebres classes de redação criativa da Universidade de Iowa. E, dizem, por essa época, sua devastadora ironia amendrontava os demais estudantes. Teve encontros pessoais com escritoras como Elizabeth Hardwick e Mary McCarthy. Também manteve correspondência com Robert Lowell e Elisabeth Bishop, que ficou vivamente impressionada por seu talento. Com Lowell, manteve uma paixão platônica, epistolar, chegando a enviar-lhe por correio uma pena de pavão - o que, de resto, não o impressionou muito.
Os temas de O'Connor seguem intimamente ligados ao Sul e à obsessão protestante por interpretar a Bíblia à letra. Em um de seus relatos, um pregador esforça-se por fundar uma igreja cristã, sem Cristo. Depois de uma série de peripécias, finda por arrancar os próprios olhos como prova de fé e atinge um estado de graça. Num outro, um pastor afoga seu afilhado no ato de batismo. Ou há ainda a notável narrativa em que um sujeito finge apaixonar-se por uma aleijada apenas para lhe roubar a perna de pau. Os relatos são cruéis, realistas, de um humor retorcido, marcados pela dicção, a fala próprias do Sul extremadamente bem estilizadas em sua prosa.
Aos nortistas que reprochavam essas “excentricidades góticas” de sulista, O'Connor devota uma frase lapidar: “tudo que provenha do Sul será considerado grotesco por um leitor do norte; ao menos que seja grotesco, quando então é chamado de realista”. Ela estava mais interessada em representar a realidade que em corrigi-la. E, assim, seu interesse pelos movimentos de igualdade racial eram secundários em relação aos que devotava à sua escrita, embora nutrisse simpatias pela causa dos negros, e isso, de alguma forma, esteja expresso na humanidade de seus relatos.
Dizem que tinha belos olhos azuis. E que entendia que seu assunto por excelência era "a ação da graça num território vastamente ocupado pelo diabo". Também intuía que seus escritos eram lidos "por uma audiência que atribui muito pouca importância tanto à graça quanto ao diabo". A exemplo de Chesterton, deduzia que o livre-arbítrio católico representava um vetor de liberdade criativa para o artista: "o romancista católico crê que se destrói a liberdade no pecado; o leitor moderno, suponho, pensa que é assim que ela é ganha. Não há muita possibilidade de entendimento entre ambos".
Flannery O'Connor tinha duas obsessões: a criação de aves – em especial, pavões – e seu trabalho de escritora. Debilitada pelo lúpus, num quarto de hospital, poucos dias antes de morrer, com tubos por todo o corpo, ela se entregava a uma de suas tarefas mais recorrentes: revisar exaustivamente um de seus originais. Costumava dizer: “a graça nos modifica, e modificar-se dói”.


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sábado, 21 de março de 2009

Mapas, desmapas: a falácia


[s/i/c]


Uma falsa questão


Falácia de escritores que buscam deliberadamente a “imprecisão” de escrever a partir de nenhures ou de um tempo a-histórico (“tempo sem-tempo”). Pretendem negar os esforços dos outros. Dos que insistem, por inclinação, sensibilidade, em falar dos tempos e lugares que os cercam de modo mais incisivo.

A questão, em si, é obtusa.

Não há algo de proprietário aqui. Tende-se a entrever uma divisão “teórica” onde há tão-só diferenças de sensibilidade. Até porque, no mínimo, por mais que um escritor situe seu discurso no plano do genérico, este discurso provém de um corpo que, de outro modo, é condicionado geograficamente: sente frio, calor, tremores; é jovem, de meia-idade, velho.

Vive, porque atravessa espaços e tempos: passa por diferentes locais, mora em alguns deles, visita outros, adoece, é moldado por uma determinada dieta de grãos, frutas, carnes, hortaliças, tabaco, vinho, cerveja.

Por mais que esses “escritores de nenhures” se dediquem a um esforço de fábula e imaginação; essa imaginação genérica e essa fábula portam a nódoa de um lugar, de um tempo. As diversidades, aqui, se dão muito mais por conta da consciência de um passado histórico e de uma vontade de jogar ou não com esse passado. Quer dizer, no caso do sim, de um apego ao passado no sentido de variá-lo, desdobrá-lo, descontinuá-lo, estudá-lo, perspectivá-lo, deformá-lo, tresvariá-lo. Para melhor consegui-lo com palavras. Ainda quando na forma da fábula.

Não devemos esquecer que algumas das fábulas mais cativantes, delirantes e aparentemente “livres” da literatura, como o Dom Quixote de Cervantes, o Gulliver de Swift, o País das Maravilhas de Carroll, a Metamorfose de Kafka ou a Fazenda dos Bichos de Orwell não podem ser entendidos plenamente sem se conhecer, em paralelo e respectivamente, a situação de uma obscura província de Castela ao fim do Medievo; a gana colonizadora dos britânicos no séc. XVIII; a Inglaterra Vitoriana e seu moralismo tacanho; a Praga das primeiras década do séc. XX, vivenciada em alteridade por sua pequena e afluente comunidade judaica; ou um mínimo da história da Revolução Russa. Não existe algo como escrever a partir de “nenhures”. Simplesmente porque não existem “nenhures” ou atemporalidades.

Desconfie do escritor que quer soar o mais cosmopolita possível. Ele não pode abstrair-se de falar a partir de uma cultura. Uma cultura é algo maior que o desejo romântico – no mau sentido – de se inaugurar uma escritura “imune” ao local e ao tempo. O ponto, aqui, é que dá muito mais trabalho conhecer com profundidade a própria cultura em que se está imerso. E, ao invés disso, busca-se traçar com vigor um esforço para exorcizá-la em diferentes níveis. Em especial, a partir da adoção e da lapidação de uma terminologia plana, sem compositividade ou esteio histórico. A maioria dos artistas quer esquivar-se dessa tarefa de reconhecimento. Essa tarefa histórica/etnográfica. Pois ela requer tempo, paciência. E, assim, preferem reivindicar uma espécie de escrita-exílio tomando como base uma suposta cultura mundializada. E daí vem as polifonias desmapeadas e ocas. O problema é que até mesmo essa escrita-exílio e essa cultura mundializada, descentrada, desgenetizada, sem mapa, está profundamente marcada por um tempo e um local especifíssimos e que definem justamente o porquê e o como de elas se reivindicarem desterradas.

A terra em relação a qual elas estabelecem-se como “exiladas” ou “desgeografizadas” é, no fim das contas e por uma fina ironia, justo o parâmetro, o eixo mesmo dessas elocuções supostamente não axiais. Pois o próprio idioma de que lançam mão está impregnado de concretudes que tornam até mesmo as vaguidades supostamente menos atadas à história e à geografia, completamente dependente destas.

Optar por escrever algo mais rente à realidade histórica ou, do contrário, fabulá-la através do fantástico, isso é de cada um. É apenas uma opção. Mas que não se caia na armadilha de achar que tão-só por se estar supostamente escrevendo sobre temas abstratos ou gerais– afetos, amor, sexo, dinheiro, ritos de passagem, morte, existencialismos proto-filosóficos – também se está escrevendo a partir de um limbo temporal e espacial. O tempo e o espaço irão cobrar essa dívida mais cedo ou mais tarde. Afinal, embora a percepção deles se tenha modificado em progressão avassaladora, num ritmo ditado pela cibernética, nas últimas décadas, ainda não se pode viver fora de um tempo e de um espaço. Mesmo que a percepção desse tempo e desse espaço hajam sido fundamente modificadas pelas extensões do que hoje conhecemos como mundo virtual.




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sexta-feira, 20 de março de 2009

O Cais Bar


Válber Benevides, detalhe do painel do Cais Bar





Em tempo e espaço marcados: um boteco mais luminoso que as chispas ao limiar da caverna de Platão


Difícil explicar as conjunções necessárias e suficientes para um grande boteco. O maior deles em Fortaleza foi o Cais Bar. Por quase tudo: a localização, tão próxima da rebentação, que, em noites de maré braba, algumas finas gotas de água salgada transpunham o calçadão e tingiam as mesas mais expostas de uma fina pátina de maresia.

Era um espaço compacto. Uma varanda com meia dúzia de mesas por debaixo, antecipada por um vão, onde se postavam outra dúzia de mesas. O vão repartia-se em duas alas por uma passarela. que se erguia até a varanda. Era por onde de se entrava. Naturalmente, as mesas mais disputadas eram estas ao ar livre. Elas ficavam ao menos metro e meio acima do leito da rua por conta do desnível da varanda para a calçada. A alameda à esquerda da passarela era esguia e a da direita, sob a uma castanholeira, mais ampla. Eram divididas por balaústres de madeira.

Transpondo-se a varanda, entrava-se para o balcão e o interior do bar, quase sempre numa semi-penumbra, as paredes coalhadas de velhos instrumentos de sopro e cordas, estantes onde se entrevia uma vasta coleção de vinis - pois boa música de fundo, incapaz de perturbar a conversa dos frequentadores, era uma das marcas registradas do boteco e a glória de Berriuaite, o DJ de plantão. Depois acresceu-se um mezanino, lá por cima, que só era ocupado quando o térreo não comportava mais ninguém. Se alguém subisse direto para o mezanino sabia-se que se tratava de um turista, de alguém que não conhecia nada dos códigos do boteco. Mais ou menos como na Inglaterra só os turistas sobem para o primeiro andar dos ônibus quando há assentos no térreo.

Na parede da esquerda, havia o famoso painel de Válber Benevides, onde se via grandes nomes da MPB tomando umas e outras no próprio Cais Bar. Verdade que num Cais Bar estilizado, ideal, sob uma noite de um fantástico azul, a meia-lua acesa por uma lâmpada de neón. Mas esse duplo do Cais Bar no painel tinha outro nome: Bar Luís Assumpção. Quando faltava assunto, o painel sempre fornecia matéria para prosa, porque as relações de proximidade e a pose de cada um das charges eram em si um bocado divertidas. Lembro, por exemplo, que Egberto Gismonti era pouco mais que uma sombra esquivando-se ao fundo e tinha ares de um chefe beduíno.

Mas era raro faltar assunto no Cais.

Era aquele tipo de boteco que se ia de olhos fechados, e quase sempre havia alguma alça de conversa à espera. Para abrir os olhos da gente, porque gente interessante é o que não rareava. Começava ao final da tarde e não tinha hora para fechar. A cozinha não era nada sofisticada, mas os tira-gostos excepcionais - em especial, os bolinhos de peixe. E havia também aqueles garotos que vendiam amendoim em fornos improvisados em latas, que portavam com uma alça de arame, as brasas bruxuleando por dentro. Os ofereciam, desde a rua, pelas tábuas da balaustrada. Os amendoins eram acondicionados em pequenos cones de papel. Domingos Caetano costumava pôr um desses canudos vazios no indicador e dobrar a extremidade mais fina em forma de gancho. Quando um desavisado lhe perguntava:
-O que é isso, Domingos?
-É meu extirpador de hemorróidas. Preciso patenteá-lo - dizia compenetrado.

O Cais funcionou de 1985 a 2003. E conheceu todas as glórias e debacles da moderna Praia de Iracema. Era bem mais solar que o velho Estoril, de quem herdou muitas das cabeças privilegiadas que trocaram o velho cassino dos americanos por um endereço menos decadente e regado à boa música. Era frequentado por universitários, jornalistas, músicos, artistas, professores e, claro, por belas mulheres. Jamais um bar concentrou em seu espaço compacto tantas mulheres bonitas por centímetro cúbico em Fortaleza no espaço de uma geração. Depois, já ao final, havia quase que só putas e ouvia-se muitos idiomas. E, então, talvez se falasse até mais italiano que português por lá.

Uma situação que apenas refratou a da Praia de Iracema no atacado. E perdura até hoje.

As melhores coisas acontecem em tempos e espaços marcados. Para começar. Para acabar. Foi assim com o Cais. É claro que em sua fase áurea, jamais pensávamos que ele fosse acabar, porque jamais imaginávamos que nossa juventude também o fosse. Quando Manuel Bandeira evoca o seu quarto suspenso no ar, em "Última Canção do Beco" [Mas meu quarto vai ficar,/ Não como forma imperfeita/ Neste mundo de aparências:/ Vai ficar na eternidade,/ Com seus livros, com seus quadros,/ Intacto, suspenso no ar!] penso que se pode chegar a uma equação adequada para se evocar o Cais Bar desde essa distância de um tempo longo que passou depressa.

O mais certo é dizer que o Cais Bar acabou, porque nós acabamos com ele. O envelhecemos, o degradamos. Permitimos que a Praia de Iracema envelhecesse de um modo ruim. Virasse o que virou. Nos tornamos sérios demais. Cheios de teorias excessivamente arraigadas, normas e códigos. Viramos desembargadores, juízes, burocratas de alto escalão, executivos, advogados, procuradores, pro-reitores, chefes de departamento, editores, donos de agência de publicidade, políticos. Ou seja, toda sorte de gente que está se lixando para ser feliz ou ocupar-se com a felicidade dos outros.

E talvez a maior virtude do Cais Bar era justo ser um tanto alérgico a esses tipos.




[20.03.09]

Nota - para uma apreciação do velho Estoril, clique AQUI.
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quinta-feira, 19 de março de 2009

A ilustração de uma frase


Capa do álbum Stan Getz - The Best of Two Worlds (1976)



Sob forma de farsa

A capa do disco The Best of Two Worlds de Stan Getz, 1976, faz lembrar a célebre frase de Marx: "a história se repete sob forma de farsa". Talvez por contrastar tão asperamente com a sobriedade do Getz/Gilberto de doze anos antes, e que ainda herda algo da clássica elegância dos anos 50.

A década de 70 é mesmo um desastre em termos de moda. E todos parecem um pouco assetentados na foto. Especialmente Stan Getz, com a camisa de mangas curtas reforçando-lhe a pose canastrona. Mas a década de 70 também está no bolso esquerdo da calça de veludo curdoroy de João Gilberto e até no tailleur um tanto chinfrim de Miúcha. A tudo isso some-se o "padrão" de enquadramento da época, que deixa de fora o braço direito de Miúcha e parte da paleta do violão de João, no lado oposto. Isso para não falar do estranho "plano americano" um tanto estendido que corta-lhes as pernas. O fato de estarem assilhuetados, recortados contra um fundo neutro, repassa a idéia de que a figura de João foi como que colada às de Getz e Miúcha. Só a concepção de direção de arte prevalente nos 70 poderia conceber coisas assim.

O curioso é que em 1964, quando Getz e João eram, de fato, jovens, vestiam-se como senhores: terno, gravata. Aqui, a gravadora tentou repassar a imagem de "jovens", quando eles já estavam na meia-idade. E o resultado é esse desastre.

Musicalmente, no entanto e como não poderia deixar de ser, o resultado é bem melhor que a indumentária e pose geral que vestem a capa.


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quarta-feira, 18 de março de 2009

As onze titulares


Tão bom quanto Clube da Esquina Nº1 ou o "disco do
Tênis" de Lô Borges é este Nelson Angelo e Joyce [1972]



Time de Pérolas do Brasil definidas em meia-palavra ou pouco mais



i. Manhã de Carnaval [Luís Bonfá-Antônio Maria]
Impossível haver algo mais belo e brasileiro simultaneamente.

ii. Inútil Paisagem [Antônio Carlos Jobim-Aloysio de Oliveira]
Subestima-se Aloysio de Oliveira como letrista.

iii. Carinhoso [Pixinguinha-João de Barro]
Pequena aula de choro concentrada em canção.

iv. Último Desejo [Noel Rosa]
Arte de guiar música e letra com a mestria dos grandes.

v. Catavento [Milton Nascimento]
Dá vontade de sair voando.

vi. Disparada [Theo de Barros-Geraldo Vandré]
De uma altivez a toda prova na majestosa interpretação do Quarteto Novo.

vii. Insensatez [Antônio Carlos Jobim-Vinícius de Moraes]
É engraçado como todos os “ahs!” parecem homenagear Dolores Duran.

viii. Beatriz [Edu Lobo-Chico Buarque]
Para se tirar os pés do chão num encômio à perícia melódica de Edu Lobo.

ix. Um Girassol da Cor de Seu Cabelo [Lô Borges-Márcio Borges]
De como se pode variar ainda melhor uma velha progressão em lá menor, acompanhando-a de uma letra de fazer pedra verter lágrimas.

x. Sinal Fechado [Paulinho da Viola]
Para os dias de se esconder a lágrima no aquário.

xi. Comunhão [Nelson Angelo-Joyce]
Em louvor à pujança musical de Nelson Angelo.




* * *

Dois Motetos do Exílio Paulista


[s/i/c]






Um pouco mais de miolo




Rua Raul Pompéia. Pompéia. Zona Oeste. São Paulo. Terceiro andar.

No Dia de Finados de 2001, fui dormir de madrugada. O sono foi intenso, mas curto. Acordei pouco antes da manhã. Sábado. Talvez com um fiapo do que andara lendo. Tratavam-se dos Comentários de São João da Cruz à Noite Obscura da Alma. Pela janela entreaberta, filtrava-se a frialdade. E uma perna de bairro mais desolado e belo fazia-se ao claro-escuro. Escrevi um poema e tomei um pouco de leite. Enviei o poema, por imeio, para alguns amigos.

E fiquei meio lendo, meio cochilando até depois do meio-dia.

Então desci ao pequeno café do supermercado 24 horas. O dia estava encoberto e ameno. Pedi um café com leite e um pão com manteiga. A balconista era certamente novata. Havia algo de estranhamente desajustado em seus gestos. Em menos de meia-hora, tomei meu café e li um pouco mais de São João da Cruz. E notei que o pão viera sem o miolo. Um desses garotos descabelados e rotos me pediu algo em voz baixa. Minha resposta, em voz baixa, o dissuadiu de insistir por algo.

Quando paguei o café, disse à balconista novata:

–Achei interessante que o pão tenha vindo sem o miolo. Às vezes, eu até gosto assim. Mas, talvez, nem todos os clientes vão achar simpático.

Ela me interrompeu com um sorriso constrangido, onde havia um mau dente bem incisivo:

–É que o pão tava quentinho, eu pensei que...

Ao sair do supermercado, com o feriado estendido desacelerando as horas, me ocorreu ir até um café, e passar o resto da tarde lendo por lá. E tomar alguma cerveja para abrir o apetite. O Dia Santo, da véspera, despovoara um tanto as ruas. Estava agradável caminhar. Notei cordões bem finos enroscados, como delicados cipós, ao longo dos fios de telefone, e que isso me agradava. Passei por um homem, com sacolas de supermercado. E ele lambia uma espécie de selo. E sobressaltou-se quando notou que era notado. Uma jovem moça, bela como um anjo, passeava seu advento. Sem timidez. Nem expansão. Mas um certo, espontâneo, aloofness. Uma mulher loura, madura e branca, excessivamente contida, em formas densas, sob um jeans, prendeu meu olhar por um lapso, próximo a um ponto de ônibus. E lembrei de um poema. De Pessoa: “Dá a surpresa de ser/ É alta, de um louro escuro/ Faz bem só pensar em ver/ Seu corpo meio maduro”. Chegando ao outro café, dei com todas as mesas à calçada, vazias. Dispostas de certo jeito que gosto. Mas um impulso me disse para não sentar ali.

Segui até o fim do quarteirão. E desatei um passeio pelas ruas em volta. E de novo me veio a visão e o sabor daquele casca de pão, a manteiga liqüefeita, por cima, como se da terra. E de novo me veio o sorriso da balconista. Seu mau dente. E minha fria formalidade.

Pensei em direitos do consumidor. Está na moda. Como o feminismo. O politicamente correto. Uma certa compulsiva ênfase para se falar em discriminação. Meio à americana. A bobagem de todos se mostrarem infinitamente complacentes com os aidéticos ou os homossexuais à frente das câmeras e de microfones abertos. E em meio a toda essa massa sem fermento, os tais direitos do consumidor. Mas que argumentos de pão mais sem miolo! O que, no fim de tudo são os direitos do consumidor?

Por exemplo, o que são os direitos do consumidor diante do que se deve a ao próximo? Não são nada. Quando muito, a ratificação mais extrema da insanidade. E ainda mais diante daquele constrangimento da balconista. De seu mau dente. De seu primeiro dia de trabalho. De seu acanhado, belo sotaque nordestino. De sua perene divindade. De ela apontar que, de fato, Deus é brasileiro – porque falta tanto para tantos. Do fato de estar ali desde manhã, e de ter tomado um ônibus para estar ali, desde antes de manhã, enquanto se pode escrever poemas, passar imeios para amigos em cidades distintas, perambular pela cidade, lembra-se de um poema de Pessoa, ler São João da Cruz – e entender tão pouco. Do fato de ela mal saber ler, enquanto se pode fazer pós-graduações insípidas, tão sem sentido, tão inúteis diante do essencial, do fato matinal que é um café com leite com pão e manteiga.

Mesmo sem miolo. E pus os óculos escuros, para disfarçar que uma certa tristeza corresponde a água salgada nos olhos.

E voltei para casa. Feliz, por lesado em meus direitos de consumidor. Talvez com um pouco mais de miolo.



* * *



Rua Guiará



As aves do céu que não

semeiam nem colhem

cantam e cantam numa

rua paulistana ao

araxá do dia.

E à dobra da manhã

girando nos gonzos um

suave azul-sem-sol

sobre a fachada dos

pequenos sobrados,

às primeiras árvores

que são verdes, ao

primeiro homem que

assustado, desce a

ladeira em mangas de

camisa, ao primeiro fur-

gão onde se pode ler

‘reportagem’ em letras

verdes sobre um fundo

branco, às últimas luzes

das garagens alter-

nando amarelos e vermelhos,

ainda vivas, às luzes ao

longe, devoradas pelo serrar-

se do dia, à única lâmpada

acesa por trás de um

basculante à frente de

diferentes frascos à distância

de uma quadra, no terceiro e

último andar de um prédio

de uma noite, de um dobre

de finados, e à distância de

muitos e no último andar

da distância, a Serra da

Cantareira, impassível

no mais encantado

suave, sereno, suspenso

como o canto das aves

do céu que não semeiam

nem colhem, mas

colam as franjas do dia.





Nota: "Um Pouco Mais de Miolo" foi originalmente publicada na revista de crônicas Nariz de Cera. "Rua Guiará" saiu originalmente na revista de poesia Inimigo Rumor.



* * *