domingo, 31 de outubro de 2010

A prevenir os viajantes da presença: Salter

Frank Auerbach, Nude, 1953-54



James Salter

Conheci a prosa de James Salter num período de grande ebulição. Morando em São Paulo, certo professor da PUC indicou-me para traduzir seu livro de memórias: Burning the Days [1997] – título que verti como Oxidando os Dias. Era uma época estranha em que eu queria assumir-me como escritor, mas ao mesmo tempo percebia que o que tinha vivido não me fornecia lastro suficiente para sê-lo. Mas isso é uma outra prosa, e não vale a pena entrar agora por esse desvão.
Lembro que, logo em seguida, com minha ex-mulher, meu irmão, minha cunhada, e um casal de amigos, viemos em férias para Fortaleza. E não era infrequente eles seguirem para praias, lagoas, falésias, serras. E nem sempre eu podia seguir com eles, porque tinha de restar em casa, às voltas com a tradução do livro. Tradução que conhecia uma estável média de três ou quatro páginas por dia. O livro é admiravelmente bem redigido. Frases curtas. De uma elegância hemingwayana. E alguma demão de Henry Miller pairando por cima do todo.
O que eu não contava, adiante, é que a editora para qual eu estava contratado iria entrar em processo de solvência. Que meu trabalho, de horas e horas, teria de ser interrompido. Que, algum tempo depois, passaria para outras mãos. E, claro, meu nome jamais apareceria nos créditos da tradução – algo, na produção linha de série e instável, que é o mercado editorial, não tão incomum. E pensar na pilha de livros que traduzi, que eram tão ruins, que uma das condições para traduzi-los, era a de que meu nome, por pedido próprio, não constasse nos créditos...
Porém nem mesmo esses contratempos diminuíram meu apreço pela escritura de Salter. Tanto que quase simultaneamente à tradução de Burning the Days, ao retornar a São Paulo, lancei-me à leitura de um seu romance que é, de fato, um um achado: A Sport and a Pastime [Um Esporte e um Passatempo, 1967], chegando mesmo a traduzir, por puro prazer, certos excertos, depois perdidos em velhos disquetes – pois a medida que os suportes de memória se tornam cada vez mais robustos e aparentemente confiáveis, tornam-se também mais e mais descartáveis.
Lembro que a indicação, aliás, veio de uma vendedora da Livraria Cultura, que era minha principal fonte em matéria de ficção norte-americana. Em dez anos, como as coisas mudam! Busque-se alguém assim no supermercado de livros em que se converteu a Cultura, e se não vai encontrar. Nem sequer em São Paulo.
Salter, tendo sido piloto de caça na Guerra da Coréia, nos oferta em Burning the Days, memoráveis páginas sobre essa profissão fascinante. Onde o risco é algo que segue colado à casca de cada segundo. Mas, sem dúvida, mais magnético é A Sport and a Pastime, que trata do mais universal de todos os temas: aquele.
Nele um expatriado norte-americano vive um tórrido romance com uma lojista francesa numa pequena cidade da província. O detalhe é que tudo não é mais do que ficcionado – com grande verve de imaginação e sensualidade, no entanto – por um solitário compatriota também expatriado.

Abaixo segue um extrato:

16.

Past and haunting images of France, reflected over and over again like the facets of an inexhaustible stone. I walk through the silent house, the tall rooms chilled with winter light, the furnishings crossed by it, the windows. The quality of stillness is everywhere. There is no single detail that provides it. It exists like a veiled face.
Images of the towns. Sens. The famous cathedral which is reflected in the splendor of Canterbury itself rises over the icy river, over the still streets. One sees it in the distance, St. Etienne: the centuries have bleached its stone like powder and the heads are all missing from the statues of the blessed, but still it appears from far off to warn travelers of the presence of God. Built as one of the first of a great, Gothic family that rose throughout France, it endures like a white myth. The little shops have grown close around it, cinemas, restaurants. Still it cannot be touched. Beneath the noon sun the roof, which is typically Burgundian, gleams in the strange design of snakeskin, banded into diamonds, black and green, ocher, red. The sun splashes it like water. The brilliance seems to spread.
Sens. They have fallen sleep. Dean wakes first, in the early afternoon. He unfastens her stockings and slowly rolls them off. Her skirt is next and then her underpants. She opens her eyes. The garter belt he leaves on, to confirm her nakedness. He rests his head there. After a while, finding a more comfortable position, he lies between her legs, her pelvis for a pillow, her knees within his grasp. He listens to the traffic. He turns his head a little to see if she is asleep. She is looking down at him calmly. Beneath his ear it is wet.

[James Salter, A Sport and a Pastime, © James Salter, 1967]

16.

Passadas e assombrosas imagens da França, refletidas de novo e de novo como as facetas de uma gema inexaurível. Eu caminhava para a casa silenciosa, os compartimentos altos arejados pela luz do inverno, os móveis entrecruzando-a, as janelas. A qualidade da quietude está em toda parte. Não há um único detalhe que a proveja. Ela existe como um rosto velado.
Imagens das cidades. Sens. A famosa catedral que é decalcada do esplendor da própria Caterbury ergue-se sobre o rio enregelado, sobre as ruas quietas. É possível entrevê-la à distância, S. Etienne: os séculos caiaram suas pedras como talco, e as cabeças das estátuas dos abençoados se foram, mas ela ainda assoma desde longe a prevenir os viajantes da presença de Deus. Erguida como uma das primeiras de muitas, da linhagem gótica que aflorou na França, ela perdura como um mito branco. As pequenas lojas amontoaram-se rente a ela, cinemas, restaurantes. Ainda assim, ela não pode ser tocada. Sob o sol da tarde, o teto, que é tipicamente borgonhês, reluz na estranha estampa de pele de cobra, listrada de diamantes, negros e verdes, ocres e encarnados. O sol sobre ela respinga como sobre água. O brilho parece alastrar-se.
Sens. Eles haviam caído no sono. Dean desperta antes, no abrir da tarde. Afrouxa as meias dela e lentamente as enrola. Depois vem a saia e então a calcinha. Ela abre os olhos. A liga, ele não remove, para confirmar a nudez dela. Repousa ali sua cabeça. Depois de um lapso, ao encontrar uma melhor postura, ele jaz entre as pernas dela, a pelve dela por travesseiro, os joelhos a seu alcance. Ouve o tráfego. Revolve a cabeça um pouco, para ver se ela dorme. Ela o entreolha calmamente abaixo. Há umidade sob a orelha dele.


* * *  

Nenhum comentário:

Postar um comentário