quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Argumento desalinhado

Pininfarina, Cisitalia 202 GT, 1946




Debaixo de toda vida contemporânea se encontra latente uma injustiça

A gente pode começar da seguinte forma: por que se escuta umas poucas notas de trompete e logo sabe que é Miles Davis? Por que se vê uma reles combinação de linhas sobre um papel e, de imediato, nelas se reconhece Picasso?

Mas também se pode começar de uma outra forma: por que se lê tanto Heidegger e tão pouco Ortega y Gasset?

E aí a gente pode começar a responder pela segunda questão: porque a cultura latina, que um dia já foi a mais rica e poderosa da Europa - com os trovadores da Provença; com a Itália da Renascença; com a compósita Espanha de católicos, mouros e judeus; com o Portugal dos Descobrimentos - depois de ser ultrapassada em poderio econômico pela Holanda, a Inglaterra e a Alemanha, aqueles dantes atrasados bárbaros do norte, jamais recuperou-se desse baque. E até hoje nutre algo parecido com o que Nelson Rodrigues chama, ao tratar do futebol, em suas deliciosas crônicas, de “complexo de vira lata” – assim, sem hífen, porque a nova reforma ortográfica proibiu o hífen, né? [E fico meio em dúvida se o hífen foi proibido apenas para escritores profissionais e, logo, pode ser usado por escritores vira-latas. Na dúvida, melhor usar as duas formas.]

Mas também por razões políticas se lê – o acertado seria dizer que se fala – mais de Heidegger que de Ortega y Gasset. E por razões equívocas, uma vez que Ortega y Gasset, acusado injustamente de absenteísmo, durante seu exílio argentino, apesar de por vezes flertar com regimes autoritários, ao menos mostrou-se reativo a eles em realidade e durante algum tempo, ao contrário de Heidegger que não só vestiu uniforme nazista para não perder seus privilégios de reitor na Universidade de Freiburg, como jamais retratou-se em público. Isso apesar de, no pós guerra, haver sido amigo do poeta judeu Paul Celan, ironicamente o que talvez melhor traduziu a catástrofe judia e o inferno dos Lager, onde seus próprios pais foram exterminados.

Tudo isso, enfim, apenas comprova o quanto somos mais severos com nossos pensadores e artistas quanto às suas opções ou aos seus equívocos políticos. Sim, porque os americanos perdoaram Pound, que, depois de anos preso num manicômio judiciário (foi a forma que os amigos acharam de evitar que fosse para um presídio comum), desembarcou na Itália fazendo a saudação fascista. Algumas pessoas são irremediavelmente altivas.

Porém, por igual, o quanto certas ênfases nos traem. O principal especialista em Heidegger, no Brasil, Benedito Nunes, é – e com justiça – uma espécie de sumidade acadêmica. Os epígonos de Ortega y Gasset, que talvez tenha um pensamento até mais amoldável às realidades brasileiras por todo uma contiguidade cultural, no entanto, nem tanto.

Mas voltemos à primeira questão, afinal se tem sempre de voltar a alguma coisa: reconhecemos Miles por algumas poucas notas e Picasso por alguns ínfimos traços porque eles são artistas de um excepcional talento. Neles o estilo – ou seja a assinatura de suas vontades – é tão potente que imediatamente os traduz e revela.

Mas o ponto ainda não é este. O ponto é que, via pós estruturalismo francês e outras ficções acadêmicas, criou-se a ilusão de que somos todos artistas. O que não é verdade, embora a internet tenha contribuído um bocado para tanto.

Vamos por partes.

Em parte, os efeitos da internet não são de todo maus. Por exemplo, parece que nunca se escreveu tanto. E a coisa do imeio é algo que abriu a epistolografia a todos. E, ah, essa arte de escrever cartas, como nunca dantes trocadas, etc! É certo que há uma galáxia de lixo nessa epistolografia por imeio, ou no que se publica em blogues, nas redes sociais, no Twitter, enfim, na internet em geral. E que essa galáxia é incomensuravelmente mais vasta que o pequenino grão de areia de sistema solar que vale a pena ser lido no meio e nos imeios de todo esse emaranhadíssimo universo. Mas, em certos casos, do número também sai qualidade. E é bom que haja essas facilidades, como o imeio ou os MSN's & Gtalk's da vida. Ainda com todas suas abreviações, códigos e bonequinhos sorridentes ou não. De óculos escuros ou fazendo caras e bocas. E a invasão de termos em inglês, provindos do jargão TI.

Porém – é sempre bom pôr uma conjunção adversativa num arrazoado – outro problema aqui surgiu. (Bem reconheço que a frase anterior não é das mais elegantes, mas, vá lá, quem a escreveu não é nenhum mestre da elipse, nenhum Baltasar Gracián). Vivemos numa era de sobrevalorização do estético. Em que TUDO que é estético está como que perdoado – como se a arte fosse uma religião e, então, prescindíssemos de padeiros, pedreiros, faxineiros, executivos, gerentes comerciais, torneiros mecânicos ou tratadores de elefantes. Ou seja, como se pudéssemos viver só de curadores, críticos, ensaístas, resenhistas, conferencistas, facilitadores, e professores de redação criativa.

Ah, a arte! A arte é uma beleza. Mas, a rigor, há situações que não podem ser dignamente encaradas por ela. Rá. Isto é lindo. E quem diz isso é um tal de George Oppen, que,depois de ferido, ao voltar todo enlameado do front, numa Alsácia ainda ocupada pelos nazistas, via os parisienses levar uma vida de saraus e até degustar acepipes à base de ersatz. Meio que fazendo de conta: guerra não havia. Meio como por aqui faziam os tais inocentes do Leblon, de quem nos fala Drummond em certo poema.

E, então, guerra não havia, sarau na vida. Agora, o pior é que havia, e a coisa era urgente. O buraco era mais embaixo. A questão, aqui: prioridades.

Ora, arte implica em estudo. Picasso dizia: “eu não procuro, acho”. Sim, sim, certo Pablo. Mas a essa altura ele já era Picasso. E não um Pablo qualquer. E até um Pablo que dizia isso depois de haver imitado todos os mestres antigos e comprovado, por “b” mais “a”, ser um excelente pintor figurativo. Daí ele podia passar para o “ismo” que bem entendesse, que iria sempre se dar bem. Porque nele o estudo casou com uma palavra pouco lembrada hoje em dia: talento. E isto bem se pode ver até em filme, como em Le Mystére Picasso, de Henri-Georges Clouzot. [Taí um filminho que vale a pena passar os olhos].

Talento parece ser certa inclinação natural para fazer algo. Por exemplo, alguns batem faltas melhor que outros. Por mais que outros treinem mais cobranças de faltas do que uns – que também as treinam um bocado.


Isto segue bem expresso por J.M.G. Le Clézio, quando nos diz que "oui, c'est vrai, j'aurais aimé être peintre. Mais c'est un domaine, tout comme celui de la musique, où le don est essentiel. Si vous ne l'avez pas, vous ne pouvez pas l'inventer" ["sim, é verdade, eu teria adorado ser pintor. Mas este é um domínio, semelhante ao da música, onde o o dom é essencial. Se você não o possui, não pode inventá-lo"].

Ao que parece, levar dança, música ou cinema às comunidades pobres, em si, não é lá grande coisa. Pois depende muito do modo. E, mesmo dependendo do modo, somente uns poucos, os que cobram falta melhor, realmente conseguirão fazer dessa ação social, via arte, um meio de vida. Convenhamos, no fundo, é assistencialismo. Embora sejam, de fato, louváveis algumas dessas experiências. Uma minoria delas. Quer dizer, o que deveria haver mesmo era uma escola básica forte: pública, gratuita de nível. Com professores que ganhassem pelo menos um quinto do que ganha um desembargador. E daí que o talento aflorasse. Viesse ele das comunidades ou dos bairros de classe média.

Afinal, ninguém é melhor do que o outro por ser mais pobre. Ou o outro é pior que ninguém por ser mais rico.

Tss! Tss!

Acho que Ortega y Gasset reprovaria esse estilo de expor o argumento.




P.S. - Ainda das injustiças do mundo: aos 47 anos sei que por mais que ainda trabalhe nesta vida, jamais terei dinheiro para comprar um Cisitalia 202 GT. E pensar que essa maravilha foi desenhada em 1946! #Partiu


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