sexta-feira, 13 de março de 2009

Por um presente contínuo saturado de história


Robert Bresson, L'Argent, 1984



Alguma visão muito pessoal de cinema e cinefilia


O cinema é apenas um meio. E um meio perigoso, porque induz muita dispersão no espectador. E, logo, ao contrário da música ou do ponto-de-vista de MacLuhan, um meio pobre. Paupérrimo: justamente pela sua profusão de meios, de recursos. Meu interesse passa sempre pela construção de um filme que consiga concentrar o máximo de sinestesia sobre o assunto tratado empregando um mínimo de meios. E os ritmos, muitas vezes ditados mais pelos sons que pelas imagens, cumprem um papel graduador e decisivo nisso. Penso num filme não como informação ou aplicação de uma teoria prévia. Embora também creia que um filme deva ser previsto o máximo possível. Isso torna o improviso muito mais pleno de valor. E as inevitáveis modificações e adaptações de última hora, plenas de poesia e charme. A poesia e o charme quase nunca se encontram em filmes de vanguarda, porque estes são excessivamente decalcados de uma lógica de causa/efeito. Até o espontaneísmo um tanto ingênuo e dadá de certos filmes vanguardeiros também advém disso, porque querem deliberadamente chocar. Há em minha concepção de uma eleição declarada pela paisagem, um extremado apego pelo espaço. Quer dizer, pela paisagem e pelos gestos – o vento nos galhos de uma árvore é um gesto, assim como gotas de chuva caindo sobre uma calha de zinco. Muito mais do que por palavras ou depoimentos, sinto grande fascínio pela paisagem e pelos gestos. Gosto quando percebo certo teor documentarista num filme de ficção (feature). Filmes fabulados geralmente não são fabulosos. Estranho a ideia que uma cidade, em um filme, seja feita de várias cidades, como no Blindness de Meireles – cujo ponto de partida é uma má fábula de Saramago. Me passa uma impressão de aguda inverdade. A duração da imagem, dos planos, é algo análogo a extensão de um verso. É de cada um. O fato de um filme ser ou não montado em plano-sequência nada me diz de sua real coerência ou beleza. Gosto do uso de cartelas, letterings e, de fato, poucos efeitos há de mais brilho do que um off bem aplicado. Ás vezes planos excessivamente longos sem razão de ser e um inamovível apego ao corte seco assomam tremendamente chatos. Meu faro passa também por uma espécie de devoção pelo local, porque se trata de um espaço que acaba se assemelhando a gente, se acomodando à gente, de uma forma muito profunda e misteriosa. Especialmente quando seu material gira em torno de ou evoca espaços antigos, que estão impregnados de uma ritualidade social quase impressentida. Então esse presente contínuo do indicativo na imagem contada por ciclos fica ainda mais exaltada. Me agrada a ideia de uma espécie de presente simultâneo na imagem. Um presente contínuo que busco traduzir por uma série de ciclos que se abrem e se fecham. Mas como que enganchados uns aos outros. De uma linearidade narrativa, sim. Mas uma que se dá em espiral mais que em progressão direita, reta. Gosto de pensar um filme como capítulos de algo maior que nem mesmo eu sei o que é. Um sentido de serialidade. Que apenas pressinto. A geometria para mim é um elemento importante na composição da imagem. Uma sorte de geometria intuitiva. Algo que começa no enquadramento. Mas em geral, se esse enquadramento já não está de algum modo pressentido na tua cabeça, antes mesmo das gravações se iniciarem, ele irá sempre resultar em algo artificioso e um tanto maneirista, como em certos filmes de Victor Erice. Um filme não é uma tábua de regularidades. Também não me envergonho de gostar de filmes que muitos cinéfilos e historiadores e críticos de cinema passam um tanto batido. Um exemplo disso é o primeiro filme de Eric Rohmer, Le signe du Lion [O Signo de Leão], que, a meu ver, é muito subestimado diante de obras canônicas da Nouvelle Vague, como Acossado ou Jules et Jim. E é ao menos tão bom quanto estes. Aprende-se muito com filmes assim. Há mais presença da cidade de Paris em O Signo de Leão que em Acossado, por exemplo. Isso não quer dizer que o primeiro seja melhor que o segundo. Indica tão-só que seu “grau de documentarismo na ficção” é maior. E isso é um aspecto, a meu ver, essencial nos termos do cinema que desejo ver e fazer. A ideia de um presente contínuo saturado de história é a que me guia quando me lanço a fazer um filme. São elementos fortemente esteados na brandura e especificidade que só o local te proporciona nesses tempos globalizados e arrasados em que vivemos. [Nota: quando falo arrasado, aqui, aponto para raso, nivelador, para o que se encontra em qualquer parte, inclusive na mente das pessoas, pela força do dinheiro]. E, por último, há algo dito por Bresson (ou terá sido Tarkovski) que concentra muita verdade, e é mais ou menos assim: “quando o roteirista e o diretor de um filme não são a mesma pessoa, o impossível chega a um acordo”. Logo, nunca sequer me imaginei dirigindo um filme que não fosse previamente escrito por mim. Até porque nessa escritura procuro traduzir para minha equipe as primeiras imagens, os primeiros dispositivos de enquadrar, as primeiras durações. Creio que gosto de cinema sem ser ortodoxamente cinéfilo. Quer dizer, de certo modo, bem ao contrário de gente por quem tenho grande admiração: Alexandre Veras, Ivo Lopes Araújo, Armando Praça, Danilo Carvalho ou todos esses jovens realizadores cearenses que estão despontando como Salomão Santana, Fred Benevides, Eudes Freitas, Marco Rudolf, Daniel Andrade, Guto Parente, Pedro Diógenes, Rúbia Mércia, Claugeane Costa entre tantos outros e bons. Acho uma perda de tempo ir ao cinema mais do que dois dias na semana. Aliás, de uns tempos pra cá sequer nutro qualquer fetiche pela sala de cinema em si: a magnitude das dimensões da tela, a excelência do som em sistema Dolby; os rituais em si que tanto cercam a cinefilia mais estrita. Prefiro ler um bom livro. Ou parar tudo e escutar boa música. Ou conversar com um amigo – até mais do que com dois ou vários. Ou sair por aí, a pé, pela cidade. Ou viajar. Ou molhar meus pés nas águas do Rio Camocim em junho, quando, após ganhar muita água em suas nascentes, nas encostas da Serra da Ibiapaba, as águas correm menos onduladas, com mais água doce que salgada á altura da foz. Como vai ser neste 2009 de muitas chuvas. Nesse momento, o rio parece invadir o mar. E se pode ver os seixos lá, abaixo, de tão transparente que a água fica. O rio vira um pouco um aquário. Só que muito mais bonito porque não está contido nele a ideia de prisão. Parece emprestar algo dessa fluidez às cordas límpidas e vozes sinceras de uma canção como “Canção Postal”. É se estar apaixonado, ponto. Apaixonado sem causa. Essa transparência é sempre algo que busco – nem sempre com acerto – quando me meto a criar qualquer coisa.


Um filme, inclusive.


[13.03.09]

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