sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

O Verão de 42


Robert Mulligan, Summer of 42', 1971



A Redundância é um Elemento Ancilar da Amizade

Saíram os três. Foram ao boteco preferido de dois deles. Era lua cheia. O fluxo das marés no sangue. Certa fúria de tourada-ambiente. Os dois mais velhos eram velhos amigos: o professor de matemática e o bancário. O terceiro estagiava num tribunal e havia sido aluno do primeiro.

O matemático, na verdade geômetra, era metido a poeta e falava de Walter Benjamin. Dos anos que viveu na Europa. Sempre com remissões a seus importantes trabalhos e artigos científicos – o mais recente, publicado pela Universidade de Edimburgo. Quando não a seu blogue. E gostava de citar-se. E não só uma vez:

–Lembra daquela crônica lá do blogue? Lembra daquela conversa sobre tradução e geometria lá pelo meu blogue?

–Lembro – dizia o estagiário solícito – e ainda havia algo como flores amarelas, acho.

–Flores amarelas? – disse o matemático com ar surpreso – não me recordo de ter falado em flores amarelas.

A lua rotunda e amarela, muito de quando, era traspassada por nuvens.

Tomaram cervejas no metro. Três vezes trocaram de bar. E apesar de um pouco entorpecido, o estagiário guiava os outros dois em seu carro ao som de Hendrix.

Uma única vez uma mulher realmente linda passou diante da mesa deles. Mas não passou mais. Meteoros não fundam duas vezes a mesma cratera.

O mais mudo era o bancário. Sofrera um acidente vascular cerebral e a voz ficara corrompida. Escutava à fanfarronice do matemático e quando muito lhe escrevia um aval no guardanapo, porque não gostava de polêmica. E respeitava o matemático apenas pelo tempo de serviço da amizade entre ambos. Embora estivesse convencido de sua fanfarronice. Às vezes escrevia coisas como:

–Jennifer O'Neill.

E tudo estava dito. E com enorme precisão. Podia-se ver várias coisas através de “Jennifer O'Neill”: a música de Legrand; as solitárias noites de Corujão naquela Aldeota de noites tranqüilas, ruas de calçamento, chalés e vastos jardins; a vergonha de partilhar o filme com os pais quando adolescentes; ou certa morena que parecia com ela, estudava no Ibeu e merendava na Lobrás. Naquele tempo “Jennifer O'Neill” ninguém ainda lanchava.

E era uma vez um verão no qual havia muitas e belas andorinhas. Especialmente na Feirinha da Praça Portugal. E no recreio do Colégio General Osório: Jacqueline, Giselle, Marley, Ana Paula. Tudo isso, todas elas e muito mais - e muitas mais - estavam por trás de “Jennifer O'Neill” esfereografada no fino papel do guardanapo. E era como vê-las reclinando-se sobre o bebedouro com aquela graça mitológica de segurar os cabelos.

Mas apesar do pesar, era um sujeito muito agradável de se ter por perto, o bancário. Apenas mais calado do que devia. Sua agilidade mental era extrema. Enquanto o pedante professor e seu jovem epígono seguiam para a pesca, ele já vinha com o cesto de peixes. O problema é que a mecânica do corpo não seguia a velocidade da mente. Algo se desgrudara lá dentro.

A noite foi imensamente longa. Nela, de tudo um pouco aconteceu. Especialmente de desagradável. E no fim os velhos amigos brigaram. E o matemático, não satisfeito, ainda brigou com seu ex-aluno. Queria tirar sangue. Nem que de pedras. O geômetra bêbado e falto de bons argumentos diante do discípulo – irritado com o grau em que a noite implicou certo previsível, irreversível parricídio intelectual – sobre ele lançou o sobejo de sua cerveja, após os arrazoados crisparem-se. Foi preciso a intervenção de uma pronta turma do deixa-disso.

Enfim, a hora apodreceu, e cada um seguiu ainda mais achacado para o habitual desolamento. E, no dia seguinte, a ressaca e a modorra, como pecados capitais, tornaram o dia ainda mais previsível e sozinho. Como se só vozes e não presenças houvesse na noite de véspera. E as cansadas promessas nunca cumpridas: da próxima vez, não há como beber tanto, porque, então, tudo apenas se transforma numa massa informe de vozes. E a gente acaba esquecendo do que disse. E diz muito. Não em confissão. Mas em asneira.

Mais noites de lua dessas e haveria revoluções de verdade no Brasil. Mas por aqui, nada disso é tão sério, como se sabe. Como se sempre soube.

E na próxima lua cheia a trinca estará de novo reunida, trocando as habituais arengas. Tomando cerveja no metro. Fechando bares. Recontando as mesmas piadas. Declamando os usuais queixumes. Anotando “Jennifers O'Neills” nos guardanapos. E uivando à passagem de cada beldade. Claros como teoremas e logarítimos. Como o encontro das paralelas no infinito.

Pois é tão óbvio que a redundância é um elemento ancilar da amizade.



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