quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Um possível resumo de Dom Quixote


Colin Lanceley, Adventure with some Windmills, 1972



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Digressão sobre o cavaleiro da triste figura

Todos sabemos que Dom Quixote é simultaneamente o primeiro e o maior romance do Ocidente. Todos também sabemos que o problema com seu protagonista é o de tentar consertar o mundo. E se lançar a essa empresa com zelo quase religioso por ser excessivamente crente em suas leituras: velhas gestas de cavalaria.
Esses velhos romances de cavaleiros andantes eram lidos por todos os fidalgos de seu tempo. Todos liam aquilo. E, no entanto, guardavam o distanciamento de perceber que aquelas histórias de bravura e cortesia eram “mera ficção” (ao menos em sua quase inteireza). Ora – e aqui é que o destino faz a porca torcer o rabo – D. Quixote não guarda um trinta avos desse distanciamento. E, assim, seu idealismo segue assentado em bases inteiramente ficcionais e imaginárias. Eis porque tudo acaba saindo exatamente o contrário do que ele almejava. Não há um pingo de ironia no D. Quixote leitor. E a ironia,  acaba assim, transbordando sem contra-filtro para a personagem que pomos diante dos olhos. A que se põe a combater moinhos de vento.
Quer dizer, por mais idealista que seja, o Quixote também está preso, atado de pés e mãos a uma classe senhorial e às convenções sociais dessa classe. E, entre elas, está a de ler livros sobre cavaleiros andantes. Dessas convenções ele jamais logrou se desamarrar por inteiro. De seus vícios, de suas normas. Esse atrito entre classe e indivíduo repassa bem a personalidade do Quixote. E também sua densa – e por vezes até terna – humanidade.
Aqui, ternura deixada ao lado, pode-se entrevê-lo como uma espécie de tetravô de Brás Cubas, que na célebre fórmula de Machado de Assis, tinha, desde os ancestrais, a “imaginação graduada em consciência”. Ou seja, a capacidade de transformar os apetites, as vantagens pessoais, individuais, privadas, em moral pública. Ou, no caso, verdade histórica.
Por exemplo, o nome de família, Cubas, que na real contingência do passado, provinha de um humilde tanoeiro, rapidamente é obliterado. E re-convertido em algo excelso, épico: um cavaleiro que arrebatou trezentas cubas aos mouros. O espírito é o mesmo tanto para o Quixote quanto para Brás Cubas. É exatamente o mesmo processo, com a ressalva de que D. Quixote é bem menos consciente de sua própria má-fé do que Brás Cubas.
Mas o egoísmo se impõe a ambos da mesma forma. O egoísmo de D. Quixote – especialmente revelado em sua relação com o subalterno, Sancho Pança – na sua cabeça confusa, redunda sempre em benfeitoria. Por ilustração, após uma intensa sova em que ambos saem bem rotos, ele diz a Sancho que este não deve sofrer as dores e cicatrizes da peleja, porque, no fim das contas, elas foram destinadas a ele, D. Quixote, o cavaleiro. E, portanto, deviam doer só nele.
E, no entanto, em outro episódio um pouco mais adiante, durante uma crise de insônia, D. Quixote não hesita em prontamente acordar Sancho e lhe dizer: “é da natureza de bons servidores dividir os pesares de seu mestre e sentir o que eles sentem, nem que seja em aparência”. Quer dizer, mesmo em idealismo, o comportamento que D. Quixote requer de seu criado varia de acordo com suas próprias necessidades e apetites de momento. De acordo com seu capricho.
É a mesma “volubilidade” – termo tão bem pinçado por Roberto Schwarz – de Brás Cubas. Não é acaso que Sancho – profundamente bem-humorado e safo, a metade realista da gangorra – defina um cavaleiro andante como “alguém que apanha e ainda assim se acha um imperador”. Esta observação de Sancho é simplesmente a lucidez máxima a que se pode chegar no Quixote. E é dita pela boca de um reles e obtuso escudeiro.
São coisas assim que fazem do Quixote um clássico tão rematado e absoluto. A perspicácia com que Cervantes desmonta o falso idealismo por trás das gestas de cavalaria – que tanto sucesso faziam para a elite europeia de sua época – ao apontar no que esse idealismo redundaria em termo práticos, não livrescos. Ou seja, Sancho é o mais hábil não só para ler a situação toda e as encrencas em que seu mestre se enfronha, como também por dimensionar melhor sua própria condição de personagem numa obra de ficção. E justamente porque tem a perspicácia de ler muito mais o mundo que a ficção. Algo que seu mestre – e protagonista do livro – sequer esboça num único, avulso momento.
Ora, é precisamente a convicção que D. Quixote possui, de consertar o mundo, que acaba causando ainda mais desconcertos – ainda que de escala pequena: pernas quebradas, dentes partidos, pequenos danos materiais, rusgas e presepadas evitáveis. Isso, porque como bem notou o crítico britânico James Wood: a dupla é uma espécie de antecipação das personagens de desenho animado. Apanham o tempo inteiro. De corpo inteiro. Mas as seqüelas dessas surras são mínimas. Parece não haver traumas para D. Quixote, como evidentemente os há, mais no plano moral que físico, para Sancho. [E, aqui, para o fidalgo inclusive no plano afetivo – uma vez que sua própria e doce Dulcinéia não é mais do que uma vaga e platônica sombra romantizada]. Após tantos tapas, safanões, murros, pernadas, dentadas, golpes de lança e espada, braçadas e cortes, ele e Sancho se reerguem, ao modo do Patolino, do Pica-Pau ou do Coiote do Papa-Léguas,  e seguem para a próxima cena. Prontos para outra. O que também aponta para o tanto que essa violência é mais ficcional que real, no livro.
Na comédia do Quixote, por sinal, há um momento prismático disso. Após ter levado alguns sopapos de um pastor, cujas ovelhas havia atacado pensando tratar-se de uma cavalaria adversária, a boca do fidalgo está vertendo sangue por todos os poros. O cavaleiro da triste figura pede então a Sancho que examine o interior de sua boca, para ver se não há um dente partido. Sancho o faz. No momento em que procede o exame, no entanto, D. Quixote vomita no rosto de Sancho. Este, por sua vez, numa reação em cadeia, vomita no de D. Quixote. Quem não enxerga aqui uma das imagens mais fortes do livro?



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