segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Nada que não seja memória


[s/i/c]



Parla!

É anchamente redundante dizer: “não existe literatura sem memória”. A tua memória – que concentra todas as tuas experiências – é, no fim, a exclusiva responsável pelo único dom sem-par que dá forma às tuas sentenças: estilo. Teu estilo é tua bússola. A única forma real - no sentido do possível - de unicidade. O lograr deixar a marca de teus dedos na argila do vaso (para lançar mão da imagem do velho e bom Benjamin).

Mas não devemos esquecer: existe memória sem literatura. Quanto de dor, abandono, lágrima, prosternação, ostracismo, sonho, contentamento, pensamento suave, fascinação deixou de ser registrado em palavra. E, no entanto, foi real. Existiu. Muito longe. Muito ao largo de romances e versos. De qualquer índice ou prefácio. Porque primeiro vem o mundo. E se todos escrevessem, não haveria leitores.

Escrevem, de fato, aqueles que tem dom para registrar essas memórias, seja em ficção ou não. Da mesma forma que tem gente que tem mais aptidão para jogar tênis, amolar facas, tocar piano ou ser delicado. Por exemplo, deste último ítem e força de talento, arrotar delicadezas, conheço levas de pigmeus pelas selvas das resenhas deste país não menos amazônico.

Mas, bom, todos os textos postados neste blogue – da resenha do Infância de Graciliano Ramos à tradução de “Forgetfulness” (“Esquecimento”), de Hart Crane – têm certa tendência: a de pelo menos, roçar na questão da memória. A disposição para trazê-la de cor, nem que só em alusão. De ao menos roçar nela.

Quero dizer isso mesmo e não roçar “a” memória: roçar “na”. Como quando se é adolescente e tanto se deseja, ao menos na dança, roçar o corpo da outra, suas pernas tenras e roliças sob a seda, como para esboçar um prefácio de unir-se à própria beleza. Pois a beleza também é prazerosa, nos faz tirá-la para dançar. E segue a valsa.

No universo de língua inglesa, em escala bem mais agigantada que no nosso, é estonteante a quantidade de livros de memórias, de correspondência, de relatos ou reportagens mais amplas de viagem (travelogues) escritos pelos próprios romancistas, poetas, ensaístas, críticos, jornalistas, políticos etc. Aqui, por outro lado, no campo mais específico, mais estrito da memória, a biografia reina com despotismo tranqüilo, e quase desdêm. Afinal não são tantos os escritores que, como Graciliano Ramos, Gustavo Barroso ou Pedro Nava, escreveram grandes livros de memória. De um desses livros de memória de escritores da língua inglesa, não propriamente lançado recente, lembro pela beleza do título. Trata-se das lembranças de infância de Vladimir Nabokov: Fala, Memória [Speak, Memory].

Até parece que a graça do título nos remete para aquela anedota – certamente apócrifa ou inventada por Vasari – que se atribui a Michelângelo. A de que após haver concluído a escultura de seu Moisés, ele bateu no joelho da peça e disse: Fala! De modo análogo – só que antes de concluir qualquer peça – reproduzimos a mesma interjeição às nossas reminiscências. E aí elas podem concordar em depor. Ou não. Elas são, de fato, nossas musas. As únicas. E, como não poderia deixar de ser, a sorte de ouvi-las falar está do lado de quem menos desprezou-as.



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