Nélson Pereira dos Santos, Vidas Secas, 1963
Açude para irrigar uma vida
-O olhar empático em Infância, de Graciliano Ramos
Há livros que nos ajudam literalmente a enxergar melhor. Dos escritos sobre o Nordeste poucos dispõem dessa qualidade tão inata quanto Infância de Graciliano Ramos.
Trata-se de um vasto inventário de Nordeste. Um livro em que a narração convoca e objetos dizem presente. Ou como diz Jacques Maritain “há coisas que nos cercam e vê-las é conhecer-nos” (Maritain: 1953, 3). Essas coisas, esses objetos, desvelados, traduzem, em boa medida, os usos e costumes de uma região arcaica e orgulhosa – então, como agora, em franca decadência. Agônica. Como é nascer e viver a primeira infância num lugar assim? Como é ter de crescer nessa zona do agrião? E, no entanto, à época em que foi publicado, 1945, ainda era possível surgir nessa região da agonia um escritor que não só tomasse para si essa tarefa mas também a empreendesse com tamanha dignidade de meios, que a transformasse em um grande livro de memórias.
Um par de qualidades faz de Infância um livro único. De prima, a empatia de Graciliano diante de plantas, bichos, gentes. Mas também a exuberante visualidade do livro e o modo como ela se encorpa. É como se o autor partisse de um caleidoscópio para aos poucos fixar um painel de digital nitidez. E há ainda o episódio em que o futuro escritor é acometido por uma cegueira temporária – com toda sua carga alegórica. Assim, Infância constitui um desses documentos pessoais que falam por todo um povo. Não é à toa que tenha sido um dos livros brasileiros que mais cativou a poeta americana Elisabeth Bishop, como de resto ela comenta em certa carta a Ashley Brown:
Infância foi um dos primeiros livros que li – com grande dificuldade – nos meus primeiros anos no Brasil. Continuo achando que é um livro maravilhoso, e não entendo como você não conseguiu publicá-lo nos Estados Unidos. (BISHOP: 1995, 693)
Em Infância, método de Graciliano é o da empatia. No livro, está muito bem sublinhada a indigência afetiva que cercava uma criança sensível e curiosa entre adultos excessivamente escolados em tradições rijas que se perdem nas sombras do tempo. O meio é tão inóspito quanto ameaçador. E, da leitura, desde seu início, emerge uma certa sordidez de ambiente. Essa sordidez é ubíqua. Está no catarro e nos piolhos das crianças. Nos lençóis sujos e nas fraldas encardidas. Em hábitos higiênicos precários, ineficientes e pouco difundidos. Nada há no texto que suavize isso – ou ao contrário o exagere. Mas, ao fim de tudo, o narrador está longe de condenar essa vida ríspida e agreste. Ou essa sordidez que não é menos espiritual.
Lendo trajetórias análogas a de Infância, como a de Lavoura Arcaica, se tem bem o espaço que medeia entre diferentes gerações, regiões e ancestralidades de prosadores provindos do Brasil rural. Se a de Nassar é sombria num mundo exuberante, a de Graciliano é exuberante num mundo sombrio. Infância nos entrega a medida do perdão e da renúncia necessários para fazer emergir o açude de dignidade capaz de regar uma vida. Há nela um lastro de sacrifício. Ao passo que em Lavoura Arcaica, do contrário, nos deparamos com a vitimização, o rancor, e o desespero capazes de esturricá-lo em nome de uma leitura do mundo decalcada ou rente a uma idéia: a psicanálise:
A construção da memória do passado se desdobra na construção de uma atenção ativa, que permite intervir no presente histórico. [...] Ao refletir demoradamente sobre o passado, ao cuidar da memória dos mortos, ao reivindicar com indignação ‘nunca mais isso’, corre-se o risco de cair numa discussão ‘politicamente correta’ ‘entre belas almas’ ou ‘professores de boa vontade’, cujo mérito moral seria, assim, afirmado e assegurado. (GAGNEBIN: 2000, 102)
Do começo difuso como a recordação de uma louça vidrada ao final em que, com olhos menos dispersos, o menino é capaz de orientar-se entre livros, vai uma viagem e tanto nas letras de Graciliano. Uma viagem do olhar. De um dos avós, que confeccionava cestas e urupemas bastante sóbrias, não porque as estimasse, mas porque eram o meio de expressão que lhe parecia mais razoável [RAMOS: s/d, 19], Graciliano parece tirar a lição para seu próprio texto. É raro um livro em que adultos surjam assim tão altos, inatingíveis, cruéis, mas que por igual não sejam condenados ou proscritos, apenas estejam lá com sua altura e certa torpeza. E também raro um em que os pais do memorialista sejam expostos com uma sinceridade tão crua.
A mãe era desgraciosa – feia mesmo –, neurastênica, enfermiça, excessivamente crédula. O pai, grosseiro, colérico, ameaçador, intratável. Ambos são praticamente desprovidos de bom-senso ou qualquer noção mais estável de justiça. Mas, de outra forma também estão sob os olhos de um menino. E o tocante, aqui, é que mesmo ao compor esses retratos pouco lisonjeiros, o modo como Graciliano os enforma não se afasta de amor. Ou do humor. Humor que também não se ausenta do livro. Num raro momento de ousadia, por exemplo, o menino, tímido, arredio, deixa-se, no entrecho de uma visita, embriagar-se pelo licor oferecido pelas amigas da mãe, tornando-se expansivo e íntimo. Noutro passo, pasmo diante de uma intrincada sintaxe, tão pouco adequada para uma cartilha – "fala pouco e bem, ter-te-ão por alguém" – o menino indaga à irmã mais velha:
“–Mocinha, quem é o Terteão?” [RAMOS: s/d, 99]
Graciliano escreve com muitos verbos. Sua prosa é infestada deles. E em sua maioria esses verbos possuem uma elegância justa. A justeza dessa elegância advém do fato desses verbos ressonarem uma certa derivação proposicional embutida: encolher, aproximar, diferir, desforrar, esgueirar, embeber, avivar, etc. Tudo se expande e se retrai. Verbos assim agregam uma viva impressão de movimento. E o mundo gira:
A preguiça, chave da pobreza, e outros conceitos ponderosos lançados na última folha da carta empaparam-se de suor, decompuseram-se, manchando-me os dedos de tinta – e durante alguns dias pude mexer-me no quintal, ver a rua, pisar na calçada, associar-me aos filhos de Teotoninho Sabiá. Inquietava-me, na verdade. [Ramos: s/d, 101]
Seu registro de linguagem tem um travo ibérico e ligeiramente solene. E isso é alicerçado sobretudo pela colocação do pronome em ênclise: espantava-me de haver nascido ali de supetão um mamoeiro carregado de frutos.
Não menos tocante é essa simultaneidade entre a descoberta do mundo e a da palavra. O caminho é uno e não pode ser vendido separadamente. E o ritmo das palavras começa a surpreender muito cedo o menino. São elas os objetos mais aptos para traduzi-lo, a despeito de uma certa opacidade. Como no episódio em que ele e um certo moleque, agregado da casa paterna, se põem a especular sobre quem será um tal cavaleiro que assoma ao longe. O moleque aposta em:
“–Seu Ferreira de gibão, no cavalo de seu Afro”. [Ramos,: s/d, 77]
O menino discorda. Mediante um exercício de dedução, discorda. E, de fato, estava com a razão. Não se tratava, no caso, de seu avô no cavalo de Seu Afro, um conhecido do avô. Mas a música que há no fraseado do moleque fica-lhe ressonando nos ouvidos. Aquelas palavras unidas para traduzir uma realidade inadequada logo ganham uma referencialidade própria e suplementar. Carregam na verdade uma densa e estranha simetria, que ele não dá conta de explicar: "Seu Ferreira de gibão, no cavalo de seu Afro", sai remoendo. A frase é de fato muito musical. Na verdade, duas redondilhas perfeitas, cheias de assonâncias e rimas internas. De volta para casa, segue-a martelando inúmeras vezes. E mesmo depois de ser advertido pela mãe, não abandona o matraquear. Prossegue com o exercício: “acabei dividindo a frase em dois versos que a princípio declamei, e depois cantei”. [Ramos: s/d, 77]
Também a memória evade-se por um inventário de coisas e seres que não tem mais fim – (do tanto que são Nordeste e outros tempos): alpercatas, arapucas, tabuleiros de gamão, picuás, bicas, esteiras, imagens bentas, rolos de fumo, abanos, litografias de santos, candeeiros, cachimbos de barro, trempes, carneiros de estimação, cavalos-do-cão, papangus, lavadeiras, beatas, vaqueiros, vigários, etc. E, ainda assim, nada é vendido no balcão do exótico. E seu vocabulário é tão preciso que se fica sabendo que ‘quinca’ é o nome exato em português (do Nordeste, da Paraíba) para designar alguém casado com uma professora.
Essa precisão de vocabular responde em parte pelo recorte solar do livro. Tudo está ali, nítido como num roteiro de filme. E porque Graciliano joga com tamanha precisão como o acervo da língua, as cenas e os entes não são postos num tribunal mas num fluxo semelhante ao do tempo, porque espacializados com invejável senso de cinema. A própria narração, desarticulada no começo, vai ganhando força e eloqüência ao longo dos capítulos. Como os ossos e músculos, em crescimento, dotam um corpo de equilíbrio. Ou como olhos que antes soletravam, confusos em cartilhas, depois lêem/escrevem romances.
A memorialística de Graciliano em Infância, pela densidade de sua busca, convoca testemunho. Pode ser aproximada, sem esforço, de alguns clássicos do gênero no séc. XX – como A Língua Absolvida de Elias Canetti ou É isto um homem? de Primo Levi. Infância foi escrito na medida para contraler o Nordeste. Seu poder de imagem e fabulação inverte a balança: em vez de lê-lo, somos lidos por ele.
Em livros assim flui uma vida.
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BISHOP, Elizabeth, Uma Arte (tradução de Paulo Henriques Britto), Companhia das Letras, São Paulo, 1995
MARITAIN, Jacques, Creative Intuition in Art and Poetry, Meridian Books, New York, 1953
RAMOS, Graciliano, Infância, Ed. Record, São Paulo e Rio de janeiro, s/d
GAGNEBIN, Jeanne Marie, “Palavras para Hurbinek”, in Catástrofe e Representação, (organizado por Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva), Escuta, São Paulo, 2000
Nota - este artigo foi originalmente publicado na Revista Brasil de Literatura em 2004.
muito bom! esses livros são como o óculos que o doutor emprestou ao Miguilim: nos fazem enxergar "com tanta força".
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