quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Re-Polêmica: A desastrada Bienal de Artes de São Paulo


Oscar Niemeyer, Pavilhão da Bienal, 1953



Pichação, Grafitagem, Heroinização e Equívocos

De tudo se pode acusar a Bienal deste ano. Menos de não ser polêmica. E polêmica de um jeito mau. Há, de resto, muita coisa a ser lamentada. E muito se lamentou em páginas e páginas de segundos cadernos e suplementos de cultura, blogues e listas de discussão por este país afora: critérios, curadoria, efetiva participação, legitimidade, etc. O certo é que, ao que tudo indica, nunca houve uma Bienal Internacional de Artes de São Paulo tão pobre e mal curada quanto a deste ano. Isto é quase unanimidade. Mas não parece de todo burro, no entanto.

O maior índice desse estado de coisas é que um simples incidente ganhou proporções excepcionais. O próprio centro da conversa. Uma contumaz pichadora de rua, junto com todo um grupo, desandou a pichar as paredes sinuosas do belo Pavilhão de Exposições, no Parque do Ibirapuera [o famoso Ibira, para os paulistanos]. Ao que parece, parte do grupo conseguiu evadir-se a tempo. Mas a garota foi presa pela segurança do evento. E entregue à Polícia.

Em artigo recente, para a Folha de São Paulo, versando sobre o caso, há uma análise que assoma equívoca e defectiva em vários trechos. O artigo foi escrito por Paulo Herkenhoff, curador de reconhecida competência, crítico de arte, nome de relevância no cenário artístico brasileiro e de bons serviços prestados. Mas o problema com o artigo de Herkenhoff, entre alguns acertos, é o de tentar heroinizar a pichadora. Ele chega ao ponto de dizer que ela:

Não danificou nenhuma obra de arte. Por acaso, Oscar Niemeyer veio a público protestar contra a grafitagem como um "ataque" danoso ao pavilhão do qual é autor, como sempre fez quando degradam um projeto de sua autoria?

Ou ainda:

Mesmo que seja uma mulher, baixinha, gordinha que não conseguiu escapar da ineficiente vigilância da instituição como os outros 30 galalaus. Sua prisão serviu para salvar a honra dos vigilantes e o contrato da empresa com a Bienal... Parabéns a Carolina por não ter pensado na delação premiada para se safar da encrenca, mesmo depois de 52 dias sem um habeas corpus.[Grifos nossos]

Há duas questões, aqui: 1. não sei se seria necessário um pronunciamento do decano de nossa arquitetura, centenário, vivendo quase em reclusão, para percebermos que a moça, a despeito de sua origem social humilde (e das injustiças sociais praticadas contra os pobres neste país), não agiu bem. Aliás, não vinha agindo bem. Pois muitos são pobres e não saem pichando a casa dos outros, os logradouros públicos ou pavilhões de exposições de eventos – como ela declara fazer quase compulsiva ou profissionalmente. 2. que o grupo que estava com ela tenha se evadido é pena. Pois deveriam também haver sido presos. Pode-se lamentar, de fato – aliás, junto com Herkenhoff – a incompetência da empresa de segurança contratada pela organização da Bienal. Mas, não se lamenta de forma alguma – bem ao contrário de Herkenhoff – a prisão da pichadora. Chega de achar coitados nesse bando de desocupados que vivem de consumir drogas e pichar até a alma de nossas cidades.

Mas Herkenhoff segue adiante:

A Bienal quer que o Brasil sinta saudades da ditadura? A mesma Bienal que entrega a grafiteira à polícia foi a que proscreveu Cildo Meireles em 2006 por ter protestado contra a reeleição de Edemar Cid Ferreira para seu conselho. O paradoxo é que Edemar não providenciou a prisão da garota que beijou com batom uma tela de Andy Warhol na Bienal de 1996, fato muito mais grave do que grafitar paredes nuas. [Grifos nossos]

De cara, vejam como a pichadora – uma reincidente, pois que auto-confessou a imprensa, após se haver convertido na celebridade da vez na Bienal, já haver pichado dezenas de prédios São Paulo afora – é convertido em “a grafiteira”. Elevada, assim, a uma condição, mais digna, de artista: faz grafitos, não pichações. Mas, não. Não creio que seja tanto um paradoxo quanto uma falha, uma falta de critério isonômico no caso Wahrol.

A ambas – tanto a “beijoqueira” de Wahrol quanto a pichadora de ruas e prédios (não esqueçamos ela é reincidente!), assim como de um edifício público, mantido pelo contribuinte – deveriam ser aplicados os rigores da lei. Ponto. E, de resto, porque beijar um quadro de Wharol é mais grave do que pichar um edifício de Niemeyer, que é patrimônio do povo brasileiro? Ambos não configuram atos ilícitos de depredação do patrimônio alheio? Há alguma gradação para isso? Ou será que entra aqui tão-só a lógica do valor material do quadro de Wharol – o que seria suficiente para anular todo o argumento de Herkenhoff? Seria mais grave furtar um bule de café de latão numa casa de favela, no Jardim Ângela, ou um serviço de chá em prata numa mansão do Morumbi? O argumento parece um pouco com isso. O leitor tira suas conclusões.

Por fim, concordo com Herkenhoff ao menos num ponto, que, aqui, entra de hipótese. Não tenho – como ele também não tem – nenhuma dúvida de que se a moça em questão fosse de classe-média, já estaria solta. Ou nem sequer seria presa. É fato. E é uma vergonha. A vergonha está aqui. Quer dizer, o fato de uma menina de classe média não ser presa não constitui um álibi para que uma pobre também não seja. A vergonha brutal e hedionda, aqui, é que a de classe-média não seja.

Pois deveria.



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