quinta-feira, 10 de abril de 2008

Cultivados grãos de um sadismo datado


Umberto Boccioni, Desenvolvimento de uma garrafa no espaço, 1912



Teoria do garçom fortalezense

Nos últimos tempos noções como qualidade total ou serviço personalizado ameaçam tornar cada local do planeta muito mais previsível e sensabor. Contra essas assepsias, noções holísticas, contra esse politicamente correto de fachada se insurge o garçom fortalezense. Trata-se de uma categoria profissional de fôlego e imaginação. Sua escola superior, seu MIT de beira de praia foi o antigo Estoril. E seu santo padroeiro, o famoso Baleia.
Em sua fase áurea, de meados dos anos 70 até início dos 90, o Estoril era freqüentado por estudantes, professores, artistas e profissionais liberais – ser de esquerda era um lenitivo e uma senha religiosa durante os anos de ditadura, mesmo que se não tivesse argumentos.
O ambiente era sombrio e difuso. Sórdido para todos os efeitos. O balcão, sebento, as paredes mal rebocadas e só parcialmente caiadas. As garrafas de bebida, um tanto avulsas e empoeiradas, se equilibravam sobre velhas prateleiras de bodega do interior, repintadas de um verde aguado – com densas teias de aranha que demarcavam anos sem faxina. Os refrigeradores deviam ser ligados apenas umas poucas horas por dia, uma vez que a cerveja estava invariavelmente quente.
Mas nada, nesse paraíso masoquista, rivalizava com a maneira ríspida com que os garçons atendiam. Ou será mais coerente dizer desatendiam? Agiam com desfaçatez e calculado cinismo. Os garçons do Estoril inventaram Lacan sem terem lido o Seminário.
O velho cassino dos americanos nos idos da guerra andava bem aviltado aí pelos 80. E esse desatendimento era o algo mais, a pedra de toque, o magnetismo distinto que o bar podia oferecer ao espírito masoquista da época. Superava mesmo um galinheiro anexo. Um que em noites de verão e vento solto emitia miasmas que vazavam todo o ambiente. E é de se desconfiar que esse mau humor crônico – vindo de um povo tão solícito e hospitaleiro quanto o cearense – só pode ter sido aprendido pelos garçons com os próprios fregueses. E lapidado posteriormente. Com cálculo e pose. Somos bons nisso.
Em pratos limpos e seguindo com nossa tese: de início os garçons eram extremamente solícitos. Entre os melhores de Fortaleza. Prestativos como parteiras. E olha que a escola de garçoneria cearense não é das mais fracas. Mas sua solicitude em meio à fossa geral – política ou amorosa – começou a irritar os fregueses. Não estava certo. Afinal, o país desmoronava, companheiros eram torturados em porões, os Estados Unidos viviam ensaiando uma nova Baía dos Porcos, o irmão do Henfil ainda amargava o exílio, e, como se não bastasse, certa fulana de tal ainda continuava dando para aquele cara da facção oposta... O mundo estava caído, como dizia Maysa. Agora, não bastasse tudo isso, e esses garçons do Estoril ainda queriam tratar-nos com régia presteza? Com calculada polidez? Como se fôssemos executivos de multinacional? Qual o quê. Havia algo fora dos gonzos ali.
Aos poucos, percebendo a necessidade de sofrer dos fregueses – e que isso tanto os divertia – os garçons resolveram ousar. E começaram a maltratá-los. Seu behaviorismo iniciou-se no simples servir cerveja quente. Ficaram apreensivos. Mas foi um sucesso de soltar fogos.
Depois, quando vieram as trocas de pedidos, as demoras penelopianas, o anúncio de que o estoque da bebida acabara, o excesso de água ou açúcar na caipirinha, a falta de troco três horas da madrugada, a presença só de cigarros racha-peito em estoque – muita vez só vendidos a retalho, inimaginável sofisticação – o Estoril atingiu seu auge. E todos eram felizes. Garçons e habitués. Até as gorjetas encorparam.
Essa escola foi tão forte que seguiu, inercialmente, até os bares de hoje. E deixou, em maior ou menor grau, traços indeléveis nos garçons do Bebedouro, do Buchicho e até da Zug, do Café Pagliucca, do Boteco, da Padaria, de tantos outros.
Nesse intervalo, houve duas escolas intermediárias de alguma relevância: o Cais Bar de meados dos oitenta até meio da década seguinte. E aquele Café da Praia de até oito anos atrás, onde pontificavam o Vandê e o Assis. Para não falar do mitológico e eterno Jairo, entre tantos outros. Todos a propagar as lições primevas, cetáceas, do velho Estoril.
É certo, um cronista vive de boutades. E há várias aqui presentes. Digo isto porque, já na fase outonal do Estoril, certo sujeito sentou lá, noite alta, bastante achacado. Foi, quem sabe, a única ocasião em que teve pensamentos realmente sombrios diante da vida. Havia um imenso mar e breu à sua frente. E ele pensou em se jogar e sair nadando até não encontrar a África. Isto devia estar escrito em seu semblante, pois o garçom de plantão, mandou suspender-lhe a bebida e chamar o táxi. Na hora do pega pra capar, quando não tinha café nem leite na jogada, quando não tinha jeito, eles bem que sabiam.
Até hoje, essa pulsão para atender com certo descaso e calculada rispidez bem que diverte e tem lá seu quê de folclórico. Incorporou-se à noite e aos modos de Fortaleza. E não há nada de tão errado se se mantivesse em alusão. Só em alusão. Discretamente.
Como um trunfo da memória coletiva.

2 comentários:

  1. Nos meus tempos de adolescência, quando ainda se andava seguramente pela Praia de Iracema (noites e noites de Hey Jude até quatro da manhã naquela ponte que tinha o charme de não levar a lugar nenhum, era o próprio lugar), o Estoril já mais parecia um local de madames. E dava as costas para o mar, o que sempre achei bizarro. Sinto falta daquela Praia de Iracema, que já era decadente. Imagino quando era alegre de viver.

    ResponderExcluir
  2. o estoril morreu com a intervenção urbnística no bairro em 91/92. o estoril a q. v. se refere, o espaço asséptico e reluzente, tombado pela municipalidade, só era estoril no nome. e essa fauna toda de q. trata a crônica já tinha chispado faz muito.

    ResponderExcluir