quarta-feira, 4 de março de 2009

Umbabarauma, homem gol


Glauber Rocha dirigindo uma sequência de
Di Glauber
junto ao esquife
do pintor



O formidável enterro de sua última quimera



Di Glauber, documentário de Glauber Rocha, cor, 17 min, 1977 - atualmente de exibição proibida no Brasil


Um Glauber Rocha incomoda muita gente; um Glauber Rocha e o cadáver de um Di Cavalcanti incomodam muito mais.

A polêmica gostava de Glauber.

Em 1977, lançando mão de três rolos de filme, uma câmera emprestada de última hora por Nélson Pereira dos Santos, a perícia do fotógrafo Mário Carneiro, uma equipe improvisada e uma vaguíssima idéia na cabeça, ele se atacou para o velório do pintor Di Cavalcanti.

O começo do filme, aliás, trata do próprio impacto gerado por sua gravação: a família do pintor vociferando contra Glauber e sua equipe de filmagem; estes, por seu turno, teimando em registrar tudo. Manchetes de jornais que reproduziam o incidente, que repercutiam o mal-estar entre a família do morto e o cineasta, assomam logo nos primeiros planos.

Di Glauber é um documentário agressivo. Seu subtítulo, pinçado de versos de Augusto dos Anjos, é "Ninguém assistirá o formidável enterro de sua última quimera/ Somente a solidão, esta pantera, será sua inimiga". A imagem do cadáver de Di Cavalcanti no ataúde com dois chumaços de algodão enfiados nas narinas é para lá de forte. Assim como a de toda a entourage e a pompa que cerca o esquife do pintor ao centro de um asséptico salão no Museu de Arte Moderna contraposta a temas musicais festivos e carnavalescos. As referências jocosas vazam tanto na locução debochada de Glauber quanto, claro, na trilha sonora.

Para se guardar uma idéia, no momento solene de se velar o corpo, ouve-se “O teu cabelo não nega”, de Lamartine Babo – expressa referência à predileção de Di Cavalcanti por mulatas esculturais. No instante em que o caixão está prestes a ser retirado do salão, se escuta Paulinho da Viola cantarolando um samba sobre o velório de um bicheiro. E num paroxismo de cáustica irreverência, quando o caixão desce ao sepulcro, Glauber propõe Jorge Ben, que àquelas alturas ainda não havia incorporado o Jor, entoando o samba-funk “Umbabarauma”, também conhecido como “Ponta-de-lança Africano”. O resultado é de um lúgubre insólito, o caixão é baixado, lenços se agitam, flores são atiradas ao túmulo, rostos compungidos... e se escuta Jorge Ben pulsando febrilmente: "Umbabarauma, homem gol".

Uma presença recorrente em campo – especialmente no momento em que o féretro atravessa as alamedas do cemitério São João Batista e se posta junto ao jazigo – é a de certa mulata alta e estilosa. A câmera a busca, em determinado momento. Qualquer câmera a buscaria.

Muito se escreveu sobre todo esse barulho criado por Glauber. Mas nada surge de definitivo dessas revisões críticas. E se o filme é de fato perturbador, não o é pelas razões apontadas pela crítica mainstream.

De cara, está longe de ser plasticamente bonito. Ao contrário. O fato de haver ganhado o prêmio de melhor curta em Cannes, nada se deve ao filme enquanto cinematografia em si. Nada há de excepcional nas imagens, na montagem, etc. A não ser o prestígio do filmador e do filmado. E a contundência com que o filmador trata a situação final gerada pela morte do filmado. Cria um fuzuê a partir dela. E, logo, o filme importa por colheitas outras, muito distintas das que se apregoa: a irreverência de Glauber; uma suposta homenagem póstuma a Di Cavalcanti (de quem Glauber fora amigo); um exercício de desconstrução do oco solene dessas ocasiões de exéquias; a habilidade fotográfica de Mário Carneiro, etc. Tudo isso é tão importante quanto perfeitamente em segundo plano.

Di Glauber parece ser muito mais radicalmente autofágico do que tudo isso junto. Devastadoramente. Nele Glauber "come" Di Cavalcanti, mas mastiga também a si próprio. Há necrofilia, aqui, para além de antropofagia e autofagia. O que se vê nos 17 minutos do filme é um retrato da elite cultural do Brasil em toda sua repugnante proximidade do poder, compartilhamento desse poder e efetivo uso e abuso dele. E isso é endereçado tanto a Di Cavalcanti quanto ao próprio Glauber, que, no filme, tece um vigoroso exercício de auto-desnudamento em público ao menos tão devastador quanto o endereçado a seu próprio objeto. Em Di Glauber, de resto, pode-se entrever o momento em que o cineasta baiano começou a tecer, ao modo de uma Penélope invertida, a sua mortalha. De fato, ele iria morrer quatro anos depois.

Marina Montini, a jovem mulata de lábios carnudos, que aparece confrangida sob um turbante branco em alguns planos do filme teve pouca sorte na vida. Não poderia ser diferente ela é o elemento "povo" da historinha toda. A amante que Di recrutou para si, enchendo-a de presentes, quando ela tinha apenas dezessete anos, após vê-la numa foto de outdoor – era um comercial de pneus – morreu vinte e nove anos depois do documentário e uma passagem pelo asilo dos artistas. Teve uma histórico de alcoolismo e uma decadência que acompanhou o murchar de seu exuberante porte físico.

Cirrose hepática. Tinha 56 anos. Mas parecia uma anciã. Para ela, não houve a prerrogativa do botox. Ela, na verdade, é a outra grande protagonista do documentário quer se queira, quer não. Porém se encontra num polo oposto ao de Di e do próprio Glauber, os dois outros protagonistas. O título correto do filme deveria ser Di Glauber Marina. Porque tudo que no filme segue subentendido aponta para a figura da bela mulata.

O documentário, de resto, prossegue proibido no Brasil. E por desejo expresso da família do pintor. Essa proibição, sim, é censura. Tão lamentável quanto inócua, já que qualquer um pode assistir os 17 minutos de Di Glauber no Youtube ou baixá-lo em torrents ou programas de compartilhamento análogos. Pode-se questionar a opção de Glauber: chegar num enterro e, passando por cima da comoção da família e dos amigos, conturbar o ambiente com câmera, cabos e equipamentos. E já que não houve luzes, ao menos houve muita ação. E, no entanto, sob outra pele é exatamente o que grande imprensa faz quando morre um figurão, sai moquequeando-o, amaciando sua carne para o paladar da grande massa. Ayrton Senna que o diga. Di Cavalcanti ao mesmo tempo que era um artista, era um figurão - e este é o aspecto mais subestimado do filme. E, no entanto, seu vero centro.

Mas, talvez, para a moral hipócrita das elites brasileiras (inclusive para o filistinismo de nossas elites culturais, que insistem em reler o documentário sobre outras chaves), um filme como Di Glauber, com a presença do desvario de Glauber, do "fantasma" da amante de Di, da concretude do cadáver do pintor - alimentando-se, dessarte, de uma violentíssima controposição entre amor e morte - incomoda muito mais.

Ainda hoje.

E assim se passaram trinta anos.


[04.03.09]

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