domingo, 4 de janeiro de 2009

O mais rematado exílio


[s/i/c]



Lama e Livros – Um Depoimento de Exílios

Foi num tempo em que eu estava só com os meus livros. Com eles e mais ninguém. Só podia contar com eles e mais do que nunca. Vivia para eles. Quase virei um deles. Lia coisas como a Ilíada, como Os Lusíadas. Coisas acima de qualquer suspeita. Precisava me nutrir deles, saber, de fato, por dentro, o que é um poema épico. Era vital para minha pesquisa, que seguia financiada pela prestigiosa FAPESP. Do épico de Camões, já trazia de cor quase dois cantos inteiros. Melhor exercício não há, em português, para métrica, ritmo, fluência.


Me separara há uns poucos meses, e, após um pouco provisório, em Vila Clementino - pouso alegre, numa república, que chamávamos de serenissima, como a veneziana - alugara o porão de uma casa no bairro paulistano da Pompéia. O aluguel foi intermediado por amigos comuns e a senhoria era uma solteirona, com cara meio azeda, brancarana, de pouco sexo, que morava na casa acima. Não tinha qualquer contato com ela. A casa estendia-se à rua detrás. E era por essa rua detrás, oposta à fachada, que eu entrava para o meu porão. Pelo menos me poupava topar com a senhoria. Não era pouca vantagem. Porque nem sempre o aluguel seguia em dia.


O porão se constituía de dois amplos quartos e uma cozinha. Um dos quartos, o contíguo á cozinha, mais amplo e arejado, converti em sala-de-estar e instalei um sofá e um televisor para o futebol indispensável. O outro, fazia as vezes de quarto e estúdio ao mesmo tempo. Neles estavam meus violões, um teclado e os livros. A longa bancada que me serve de escrivaninha até hoje. E sobre ela o notebook, com algumas letras do teclado já desbotadas. Horas extraordinárias de escrita, de rascunhos, de ensaio. De espremer frutas para dar de beber só sumo.


Meu único receio, no entanto, advinha do fato de que a região era muito baixa. Um baixio ou vale entre aquelas ruas enladeiradas da Pompéia. Constituía a base de um cômoro. E, na ruela de trás, a minha, parecia, volta e meia, minar água do asfalto. Alguém das redondezas me disse que isso ocorria porque o leito da rua fora assentado sobre um riacho que meandrava, em tempos idos, os quintais do bairro. De fato, do lado de dentro, no porão, havia um hálito de mofo nas paredes, mesmo que elas houvessem sido repintadas de pouco, e aquela pressentível presença de um excesso de água por perto, de umidade insalubre. De limo florando as paredes recém-pintadas com aquela penugem pestilenta. Isso é viver de bolsa de estudos em São Paulo. Não em Florianópolis ou Maringá.


Mas a mensalidade era em conta, a localização estratégica. E a senhoria me garantiu não haver tido qualquer problema com água nas cinco últimas estações de chuva. Ou seja, desde que ela própria para lá se mudara. Assim, mudei-me para lá com livros, papéis, discos e toda a partilha de objetos pessoais que se processa quando num casal cada um decide tomar seu rumo. E, àquela, como em ocasiões outras, fui eu quem saiu de casa para comprar cigarros na esquina. Mesmo que ainda cantando amor febril. E trabalhando luto. Não tão fechado, no entanto.


A vida nessa viela isolada, no limiar entre Pompéia e Vila Romana me pôs num dos exílios mais rematados que passei na vida. Internet? Fora de orçamento instalá-la. Meu único canal de ligação com o mundo era um aparelho celular. Daqueles pesados, antigos, estamos em 1999. Mas minha alergia as essas geringonças começou cedo. [e até hoje me espanto quando escuto a voz de uma pessoa conversando sozinha, avulsa, em tom alto, enquanto prossegue caminhando pela rua. O desagradável que há nisto. De não poder saudar as outras pessoa, ali, de carne e osso, porque se está conversando com um vulto ausente, que nunca vimos mais gordo ou magro]. E, então, eu o utilizava como telefone fixo, sempre plugado ao carregador. Sequer o portava comigo quando saía de casa.


A única pessoa a entrar nesse meu mundo quase subterrâneo com alguma regularidade era uma namorada, que, por acaso, lecionava na PUC. Mas ela morava do outro lado da cidade, era ocupadíssima, pois também mantinha uma clínica, e, então, nem sempre nos víamos com a freqüência que desejávamos. Ou víamos todos os filmes frequentáveis, porque ambos gostávamos de cinema. Mesmo que houvesse um bocado de desejo no ar.


Além disso, o quarteirão em que a casa estava endentada era imenso. E a rua detrás, a minha, era pouco mais que uma ruela. De modo que o único convívio mais regular com humanos que eu tinha era à noite, quando às vezes, seguia para a rua da frente – que era uma rua de fato e de direito – tomar uma cerveja numa pequena mercearia de esquina, e jogar alguma conversa sobre o balcão. Para chegar lá, tinha de atravessar um beco com batentes, sombrio, de paredes cegas, do tamanho do comprido das casas de fundos correspondentes, onde sempre havia gente se drogando: mendigos, daqueles tipo São Paulo, em que o asfalto da cidade já passara para a sola dos pés. A morte na forma de gente. Eles, no entanto, não me importunavam. Às vezes, pediam dinheiro. Às vezes, me ofereciam crack ou um baseado. Se habituaram ao meu trânsito.


Uma das poucas amizades que fiz, foi com um vigia de quarteirão. Um sujeito meio arisco, de palavras poucas. Piauiense, reclamava do rigor daquele inverno, que se estendia muito para além de agosto. Então, andava sempre mais agasalhado ainda do que demandavam os termômetros. Uma única razão o movia: falar da filha de meses. De como a tomara nos braços pela primeira vez. De como era frágil e sem peso. E, no entanto, era. O próprio centro da vida dele, podia-se perceber. E isso fazia sentido. Fazia-me recordar que tivera um sonho, em que aparecia o rosto de uma criança. Uma menina. E, então, estava certo de que teria uma filha no futuro. E, quem sabe, também pudesse me empolgar e ser menos cético, apático. Como o vigia era. Ao menos quando se referia à sua.


Dois meses depois de me tornar ainda um pouco mais o Raskolnikov de Notas do Subterrâneo, viajei em férias para Fortaleza. Um mês meio e muito amenos e salubres, longe do mofo, do limo, do porão e daquela vida subterrânea e apartada na Pompéia. Como se houvesse lava de vulcão também lá por aquela fração de Zona Oeste. Encontrar a família foi um bálsamo. E, confesso, encantei-me com o Dragão do Mar e seu entorno, respectivamente recém-construído e reformado, projeto de Fausto Nilo, e que ainda desconhecia. Ou havia visto só sob vastos tapumes. O café, suspenso numa caixa de vidro acima de muitos patamares de escada, era uma delícia.


Andava ávido por companhia e praticamente visitei ou encontrei em mesas de bar com todo mundo que desejava encontrar, porque havia passado dois anos sem vir a Fortaleza. Desovei alguns artigos em O Povo. Caminhava bastante também por opção. Por essa época, um de meus irmãos morava na Varjota e, em algumas ocasiões, me lembro de sair caminhando da Aldeota Velha, onde moram meus pais até seu apartamento, na Varjota. E eram percursos que cumpria com grande prazer – e sem pressa alguma – nas horas mais amenas do dia. Um arejamento. Uma tomada de ar.


Houve por aqueles dias na TV, notícias de caudalosas chuvas em São Paulo e muitos problemas de trânsito e alagamentos. Mas isso ocorre em quase qualquer capital brasileira sob aguaceiro um pouco mais forte.


Proferi também uma palestra sobre tradução e a poesia de Robert Creeley para um auditório lotado no Alpendre - Casa de Arte & Cultura, na Praia de Iracema. Entre outras essa palestra ficou marcada ao menos por um dado. Como eu, então, andava fumando como um caipora, a certa altura, sugeri que fizéssemos um intervalo na proferida palestra. O intervalo foi feito. Fumei uns dois cigarros e retomamos a palestra. O que mais me fascinou, é que não houve maior dispersão de público. Manoel Ricardo de Lima, que estava na organização do evento e me convidara, alguns anos depois, comentou comigo: “Nunca tinha visto isso antes: palestra com intervalo, feito partida de futebol!”.


O certo é que retornei a São Paulo revigorado pela estadia em Fortaleza. Lembro-me de estar no ônibus do Aeroporto de Guarulhos para a cidade, e pensar no quanto minha vida seguia nos eixos. Estava próximo de concluir o doutorado, com tese em processo de revisão. O aluguel, finalmente, estava em dia. Minha namorado era uma bela mulher, madura e extremamente gentil. A vida prometia naquele ano 2000 já com ares de novo milênio. Além disso, ainda havia quase duas semanas de folga, antes de largar o semestre na PUC, e pensamos, ela e eu, em seguirmos a Barra do Sahy, litoral norte de São Paulo, uma pacata faixa de praia, entre duas encostas da Serra do Mar que mergulhavam, literalmente, no Atlântico, onde havia, na praia arenosa, uma pequena aldeia de pescadores já convertida, irreversivelmente, em estação de veraneio. E no horizonte azul e límpido adiante, algumas ilhotas em cacho, abrolhando-se do mar, como pequenas colmeias.


Desci do ônibus na República. E tomei um táxi para a Pompéia. Era noite. Umas nove horas. Lá chegando, constatei, com alívio, que aparentemente a ruela detrás não guardava sinais de haver sido mais afetada pelas chuvas torrenciais. E fui seguindo com a mala de rodinhas e a mochila de mão, pelo longo corredor externo que se estendia até a porta de entrada lá, ao fundo. Ao entrar em casa – essa operação se dava pela a cozinha, que ficava num plano bem mais elevado que os demais aposentos – apenas senti que aquele cheiro de mofo-ambiente estava consideravelmente mais intenso. Creditei-o, no entanto, aos quase dois meses que o porão ficara fechado.


Porém quando desci os batentes, transpus o pequeno vão, que mediava a cozinha do restante da casa, e adentrei o aposento que usava como sala, quase caí para trás. O panorama era desolador. Livros encharcados pelo assoalho. Restos de lodo e água empoçada. Papéis boiando em poças. Nunca vou esquecer essa cena. E até meu cachimbo de estimação flutuava numa pequena poça acumulada num dos cantos. Gastei mais tempo do que devia observando aquela pequena hecatombe doméstica, sem crer direito que aquilo tinha, de fato, acontecido.


Mas a ficha, enfim, caiu: acontecera. Perdi objetos pessoais no atacado e no varejo, muitos cadernos de notas e diários. Toda uma caixa em que guardava suvenires acumulados de viagens diversas. Originais de poemas. Traduções. Partituras. Fitas. Cartas. Cartões postais. Xilogravuras. Desenhos. Selos. Itens preciosos, como a apreciação manuscrita que Décio Pignatari fizera de um ensaio meu sobre o Iaiá Garcia de Machado de Assis, e que terminava com um cordial e entusiasta: cumplimenti! Pilhas de fotos, etc.


Para atenuar meu desconsolo, os livros perdidos até que não foram tantos, pois eu os havia instalado em prateleiras a uma boa distância do rés do chão. Ainda assim perdi, entre outros, um dicionário Português-Inglês, editado no Porto, que era um de meus xodós. E algo como a primeira edição da poesia de Torquato Neto, entre alguns outros itens mais preciosos.


Em total abatimento, forrei o piso da cozinha com jornais velhos, e lá lancei todos os livros, no plano mais alto do compartimento. Quase não sobrou espaço para um fino colchonete que espalhei de permeio. Passei três dias e três noites dormindo no meio de pilhas de livros. Dormindo por esgotamento físico. E lendo-os com fervor. Quase virei um deles. Num dado instante, já havia memorizado quase por inteiro o primeiro e parte do segundo canto de Os Lusíadas. Repito: não há melhor exercício para ritmo, sintaxes, aquisição de vocabulário. Lembro que lia bastante Joaquim Cardozo. Que achava-me próximo de seu poema "Cinematógrafo" - só que em situação antípoda. Lia , o Eclesiastes, o Evangelho Segundo Lucas. Punha livros para secar ao sol, ao longo da esguia área de entrada: mofo e folhas coladas. Capas despregando. Costuras rotas. Coisa de carne, osso. Nenhuma cômoda virtualidade.


Saía de casa apenas para almoçar, sem qualquer apetite, num quilo das proximidades. Ou, então para passar no supermercado e me prover de água e do suficiente para não sair de casa. Às vezes, dias a fio, sequer saía, sequer almoçava. Para velar por algo que nem mesmo eu sabia. Meio que me sentia mais do que nunca um criminoso. Como justificar aos outros ser tão negligente com os próprios tesouros?


Finalmente L., livre de seus compromissos, na universidade e na clínica, passou por lá. Uns cinco ou seis dias depois. E sentindo a precariedade da situação, pôs algumas mudas de roupa numa mochila, recolheu alguns objetos no armário do banheiro, meus medicamentos e me levou para seu apartamento, do outro lado da cidade.


Lembro-me de ela a preparar um café forte e aromático, de pôr um prato de croissants frescos e fartamente folheados sobre a mesa pequena, para dois, de sua cozinha. Dispor o queijo, o requeijão, um suco de pêssego. Alimentei-me. E, um tanto zonzo, desabei sobre a cama. Exausto. Exilado de meus livros. Sentindo por eles. Pelos dias em que não estive. Pelos que não teria mais à mão.


Pedindo-lhes perdão por minha pobreza.




Fortaleza, dez.-jan., 2008-09



2 comentários:

  1. caramba, que coisa mais terna e verdadeira. este final acabou comigo.

    beijos.

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  2. Putz ruy, que mierda eim! E eu aqui puto da vida por ter perdido a carteira no ano novo.. Hehehehe
    abraço

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