[s/i/c]
Notas Avulsas sobre Dante e Shakespeare
“si lunga tratta/ di gente, ch'io non avrei mai creduto/ che morte tanta n'avesse disfatta”
[Dante, La Divina Commedia, Inferno, 3.55-57]
“I had not thought death had undone so many”.
[T. S. Eliot, The Waste Land]
i.
O que nos entrega a medida da diferença dos dois grandes gênios da literatura no Ocidente é a pergunta de Shakespeare: “ser ou não ser”?
ii.
Esta questão sequer é posta em Dante. Na Commedia, ele apenas se esforça para iluminar o caminho de ser. A tarefa de Dante, anterior à de Shakespeare, é, em certo sentido, imensamente mais vasta, generosa e atual que aquela. Porque em Dante, mais do que nunca - e, aqui, bem mais que em Shakespeare, cuja geografia é quase sempre exótica e fantasista, tomada de empréstimo a uma Itália que ele sequer conheceu - o local e o específico ganham contornos cósmicos.
iii.
Shakespeare nunca fala de si. Nem mesmo de Londres. Nada sabemos de concreto, por intermeio dele, sobre a cidade em que viveu vinte anos antes de voltar para sua mulher e seus filhos na pequena Stratford. Isto é fascinante. Não se lê um "ensaio" de Shakespeare. Uma nesga de meta-teoria sobre seu fazer - a não ser por senhas isoladas, metaforizadas, como no final de A Tempestade. Dante, do contrário, torna sua obra uma espécie de auto-biografia espiritual. Na Vita Nova ele teoriza sobre seus sonetos e desmembra-lhes as partes, como um matemático. Aponta para o diálogo com outros poetas, como Guido Cavalcanti, Cino da Pistoia, Brunetto Latini, Lapo Gianni, Forese Donati, entre outros. E, ainda assim, indica muito mais o mistério que há no simples fato de estarmos vivos, na opacidade que subsiste por trás de cada existência humana neste mundo do que qualquer outra coisa. Ambos passam longe da santidade. Mas o que escreveram pode demandar um estágio de quase veneração para ser plenamente fruível. [veneração, aqui, não no sentido de idolatria, mas de destacada e inusual dedicação, atenção, disciplina e compromisso. Ou seja, componentes que roçam o que se convenciona chamar de prece - que é a forma mais concentrada de atenção a que um ser humano pode chegar. Aqui, não se trata de prece, mas, claro, não se pode conhecer autores desse grau de complexidade da noite para o dia. É como nunca se haver escrito poesia e querer escrever uma obra-prima amanhã de manhã. Ou nunca se haver composto música e querer escrever uma ópera ou um moteto na próxima semana. Convenhamos, está para nascer este afortunado.]
iv.
Entre seus intérpretes, pode-se concordar tanto com Auerbach quanto com Eliot. Auerbach nos dá a medida de o quanto a obra de ambos é elegia, lamento por um mundo que poderia ser. Ou mesmo que já foi melhor, espiritualmente falando. Em Auerbach, o judeu descobre a abrangência do catolicismo por uma sorte de sinceridade [porque assoma tão óbvia sua veneração pela figura do Cristo em obras como Mimesis ou Dante, poeta de um mundo secular. Ou ainda no fato de em Mimesis, pela refração do Velho no Novo Testamento estar tão melhor dimensionada a teoria que, depois, Barthes e Kristeva, com estridência e páginas sem conta irão nomear de intertextualidade]. Já Eliot, ao dizer, 1. que Shakespeare nos oferece uma maior variedade de tipos humanos, apesar de Dante os investigá-los com mais profundidade; e 2. (especificamente sobre o estilo alegórico de Dante), que “tais figuras não são meramente dispositivos retóricos antiquados, mas meios sérios e práticos de tornar o espiritual visível” [“such figures are not merely antiquated rethorical devices, but serious and pratical means of making the spiritual visible”] .
v.
As leituras de Auerbach e Eliot são tão precisas que desmontam de vez o ceticismo sofisticado e moderno de autores como Croce ou Valéry. O que não deixa de constituir um paradigma. Porque ambos (Auerbach, Eliot) são europeus do norte. Mas com uma antena aguçadíssima para as riquezas do sul. Ao contrário de Croce, que, ao fazer pouco da alegoria em Dante, desmonta a única perspectiva universalista (e humanista) para uma Europa [i.e. um Ocidente] do espírito. Ou de Valéry, que, ao dissociar poesia e filosofia, reforça a idéia nefasta da especialização - da compartimentalização do pensamento - tão típica do temperamento moderno. É claro que, na mesma medida que se pode ler Wittgenstein como poeta - e ele o foi - pode-se, por igual, ler Dante e Shakespeare como filósofos. Isso foi indicado, de forma incisiva, tanto por Auerbach quanto por Eliot [ainda que eles nunca tenham se referido a Wittgenstein].
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