segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Margarida, Gabriela: por um estudo comparativo das morenas

 
Aleardo Garcia, 1978 


Duas morenas, duas rosas no cabelo e um escritor no ostracismo

Para bem e para mal, há personagens que são maiores --- e melhores --- que seus livros. É o caso da Gabriela de Jorge Amado. Ela tornou-se mais mitológica que o próprio livro, que sequer está na linha de frente das obras do escritor baiano. E hoje a personagem se confunde com a figura da jovem Sônia Braga na imagem mental de brasileiros e portugueses. Aliás, outro dia algo me chamou a atenção. Em Mississipi, romance de Gustavo Barroso, há uma personagem chamada Margarida. Como Gabriela, ela é morena e bela. Como Gabriela ela chegou à cidade litorânea como retirante. E como Gabriela ela casou-se com um turco --- que, no caso, se chama Abdula e não Nacib. Coincidência? Talvez. Mas quantas referências em comum as duas moças dividem. A diferença é que a morena que faz sonhar de Barroso, acaba sendo levada pelo seu "turco" para o Líbano. E retorna de Beirute desiludida, com as mãos abanando. E logo ela que um dia já havia sido a modista mais afamada de Fortaleza, e rechaçara continuar sendo a amante de um abastado inglês que hesitava em lhe pedir em casamento. E, então, ela começa a construir tudo outra vez. Soa até mais realista. E mais digno, uma vez que a morena de Amado, quituteira de talento mas apenas amante do futuro marido, nunca foi propriamente uma empreendedora como a morena de Barroso. Sem dúvida, Barroso que foi, lamentavelmente, um declarado simpatizante do nazismo, busca no entanto emprestar mais dignidade à sua personagem feminina do que Amado, que era comunista. Busca, através dela, apontar para a dignidade da mulher que trabalha, empreende. E até sabe se manter, mesmo quando abandonada. Além disso, Margarida, embora personagem marcante, não é o centro da narração de Mississipi. Aos que vivem caçando assunto para teses ou dissertações, um estudo comparativo das duas morenas daria panos para as mangas. Até porque provavelmente se chegaria a conclusões matizadas, complexas e nada maniqueístas. E tudo ainda é matéria inédita, uma vez que por conta de suas malsinadas idéias políticas, Barroso, que publicou mais de cento e vinte livros e teve sua tradução do Fausto de Goethe elogiada por Sérgio Buarque, permanece um tabu dentro de nossa cultura literária esquerdóide. Não há sequer um verbete para ele no dicionário de escritores organizado por Alfredo Bosi, por exemplo. A omissão é tão grave quanto reveladora. Os franceses, que sabem o quanto a obra de um autor transcende suas inclinações políticas, vivem debruçados, por exemplo, sobre os escritos de Louis Ferdinand Céline, que fugiu para a Alemanha junto com Pétain e os párias de Vichy. Hemingway, que lutou ao lado dos republicanos espanhóis e era amigo de Fidel Castro, nunca deixou de defender Ezra Pound, apesar de lamentar seus equívocos políticos. Enquanto isso, Gustavo Barroso, que morreu em 1959 -- e, curiosamente, foi militante socialista na juventude -- amarga um ostracismo de mais de 50 anos. Acreditem. No Brasil é assim.

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