quarta-feira, 30 de maio de 2012

Antes de passar para o próximo

Emily Granader, 2009


De Sermos Numerosos

a crueldade das pessoas está em serem muitas. Se todos fôssemos só um e o mesmo, não teríamos o menor problema. Nem guerras. Nem terrorismos. Nem politicamentes corretos, ditadores torpes, sectarismos degradantes. Ou minorias. Tampouco preconceitos. 
Por outro lado, também não teria a menor graça. Seríamos miseravelmente sós. Sem conversa debaixo do sol. Enquanto umas partes do corpo fenecessem, outras na flor da idade. Mas que idade? Haveria necessidade de tempo?
Arthur pensava assim. Mas também pensava:
Mas como seria a questão ambiental, se fôssemos só um? Digamos, um imenso paquiderme pensante? Devastaríamos porções inteiras de continentes só para nos alimentar? Áreas do tamanho de Andorra e do Liechtenstein combinados, a cada dia? Um Arquipélago das Malvinas mais meio Sergipe por mês? É, seria impossível desenvolver-nos com sustento. A gente como paquiderme literalmente arrasaria uma porção de planetas antes de passar para o próximo.

Mas, de um outro modo, não é exatamente o que a gente faz sendo muitos?

O Mar


Praia das Barreiras, Camocim



θάλασσα
o buliçoso lençol oscilante, ebuliente.

Quantas criaturas marinhas, que em ilustração primeiro habitaram livros, não estariam guardadas sob as vincas daquela inesgotável tecido? E descer até elas, pescá-las, seria como estudar gramática na terceira série: permanente, prazerosa descoberta que tinha a ver com deduções, arrazoadas cismas. Que era mais semelhante à matemática do que se supunha, só que por outro atalho. E seguia até mesmo adiante do pouco entusiasmo de uma professora que, de resto, não era jovem ou bonita quanto a da segunda série. Esta, sim, neta de italianos, seguia para aula de belos vestidos, um sorriso emprestado à Cardinale. E fora ela quem apresentara a gramática como uma sorte de lógica entusiasmada. Um pouco intuitiva, de vez em quando. E o menino sorria como a ilustração de um menino sorrindo, escanchado em um píer com uma vara de pescar. E, abaixo na água muitos peixes e letras e números esperando a vez. Certamente pescaria de sob aquele mar alguma letra ou peixe, de quando em vez.
Aquele mar que devia ser para além da Praia das Barreiras, onde quase ninguém ninguém vivia, além de matutos nas planícies engraminhadas do seco e criaturas do mar nas buliçosas águas depois das dunas. E tudo num tempo em que, do lado da cidade, as mulheres, deixavam de usar anágua. Quando desenhou e coloriu aquele cromo, o ilustrador devia estar com saudade daquelas bandas, onde nada podia ser comparado, para lá da Praia das Barreiras. Não tinha muita coisa nelas. 


A não ser, talvez, debaixo d'água.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Estolquear, Stalkear


Andrei Tarkovsky, Stalker, 1979

Você já stalkeou alguém? 
De acordo com o Dicionário Informal stalkear - neologismo que ainda não achou registro nos dicionários mais sistemáticos -  é o ato de:

"perseguir virtualmente uma pessoa, lendo recados e mensagens, analisando cada detalhe de cada rede social de que a vítima faz parte, buscando os ambientes que ela integra na rede, etc".
[adaptação do verbete original]

"Na verdade, ela vive stalkeando-o; todos os que o mencionam no Twitter, ela procura saber quem é”.


O sentido geral de um stalker em inglês - enquanto substantivo e aplicado a humanos - é o de um caçador que espreita a caça enquanto a cerca e persegue. Também pode ser, em outras acepções, uma haste, talo ou caule de planta. Um esôfago ou parte delgada de um órgão, que o sustenta, nutre ou dá amparo. Ou ainda como verbo: mover-se de maneira ameaçadora; percorrer uma área em busca da presa. Perseguir alguém por obsessão. Observar atenta e furtivamente. Agir como uma espécie de cadela alfa.

É memória no fio da fumaça

Tatiana Blass

̇ No Minho, 1992 .
         
Crava o aguaceiro à janela
dedos d'água, e estria fios
de vento de invernos passados
e breves jardins surgem e
depois somem feito argumentos,
o fio de fumaça, o café. 
Velhas garagens, telhados,
varandas de sonho, o milhafre 
rasa freixos descarnados.
E fica nesta sala agora
recém entrada, seu gosto
de arejamento nada usual:
lápis livros auto-retrato
em água-forte, cegueira 
a enregelar nos dedos.
E no rádio a meio fio
contorce-se a cantiga
- e miraremo-las ondas -
de Martim Codax de Vigo. 

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Não escrevo para ser lido: Cinema e Escrita I




Escrita, escrita em blog & um pouco de cinema

A CONSTRUÇÃO DA IDEIA POR INTERMEIO DA BLOG-ESCRITURA: LABILIDADE. PROVISORIEDADE. ENSAIO².
Bem entendido, eu não escrevo para ser lido.
Sou mais ambicioso. Escrevo para ser relido. Pretendo um texto que, como uma foto, não guarde ponto final. Mas prossiga aberto pela fecundidade da ideia. Se há um mínimo sentido para o que Eco denomina 'obra aberta', deve ser esse. E contra vários outros motivos, menores, ignóbeis, desprezíveis que o próprio Eco propõe. E isso muito obviamente não quer dizer que queira escrever textos sem uma conclusão. Não. Quero escrever textos conclusivos. O mais possível. E exatamente por isso extramente revisáveis até determinado ponto.
Se alguém leu, por exemplo, o texto sobre Peckinpah (postagem abaixo) anteontem - quando ainda era esboço - vai perceber que se encontra um bocado diferente – e inclusive mais extenso. 
Isso ocorre a três por quatro, por aqui. E deve ser visto como método. Como método facultado pelo meio blog. (E especialmente nos textos mais extensos, mas não só.) E porém poucos que passam por aqui, como a Fernanda ou a Mariana, notam isso. E, quando dispõem de pouco tempo, a astúcia delas as leva a optar por ler o texto uns cinco dias ou uma semana depois de publicados. Elas já perceberam que os textos postados aqui “mutam” um bocado, "flutuam" um bocado. Quer dizer, erram por algum tempo antes de chegar a  certo grau de estabilidade. A publicação em blog permite essa “mutância” e essa "flutuação". E isso pode gerar experimentos sintáticos e muitos jogos, além de supressões ou acréscimos.
E, não obstante, há um momento de arrefecer, estabilizar a espiral; e, mesmo num texto escancarado às mutações e às flutuações, é também o tempo de cessar  de modificar-se, de girar-se, de caleidoscopar-se, de (a)girassolar-se. Assim como uma foto não comporta ser limitada, em sua unicidade, por mais de um enquadramento. [E, aqui, o problema vem a ser quando(?) ou ser quadro(?) - uma vez que as possibilidades de revisão e edição são avassaladoramente mais acessíveis que no meio impresso]. É por isso que escrever um ensaio num contexto de blogue é sempre fazê-lo elevado à segunda potência. E, ainda assim, há um momento em que aparentemente essa gana revisionista esgota. E, quando menos se espera, o texto está PRONTO. 
Quer dizer, um critério de limiar parece impor-se, a despeito da gente ou das facilidades facultadas. Uma fluidez que surge da repetição, e percorre o texto inteiro. E é só aí que o texto ganha uma nota pedal, uma forma, um ritmo, que o aproxima de uma vieira ou de uma concha – de um objeto firme (ainda quando cartilaginoso) que, enfim, escuta. E escuta ao mesmo tempo que diz,¹ e gira o assunto, de tal forma, que ele pode ser visto de diversas perspectivas. 
Quando há uma forma por apêndice, pouco importa se há ou não um corpo colado a essa forma (ao modo de uma orelha, mas não de um búzio); o importante é pensar algo assim, enregelhado, com propensões côncavas, auditivas, receptoras no sentido radiofônico da coisa. Um sentido radiofônico que, quando transposto para o impresso, remete a alguém que é primeiramente um leitor, ainda quando escreve.
No búzio, o rumor do mar, o marulho, está lá dentro, mesmo sem uma cabeça para ouvi-lo, para complementar a audição. O búzio é como se fosse uma orelha avulsa, um fragmento de corpo, um aparato. E é aí, nesses gelhos, dobras e informidades provisórias - que se encontram, de passagem e na verdade, as mais sedimentares das formas - que o texto encontra sua solução. Seus motivos de permanência. Como se tivesse sido esculpido - sedimentar e pacientemente - seguindo os mesmos moldes da misteriosa simetria que se encontra num búzio. Nas suas dobras, estrias.
E, bem entendido, não se acha apenas citando teorias, que, no fim de tudo, são intransponíveis para nossas latitudes, climas, realidades sem os devidos anamorfoses, deformações, adaptações, mutâncias, descontos, etc. Pois é preciso antes que celebrar essas teorias por sua universalidade, perceber o que nelas há de parcial e violenta pre-potência. E, então, é preciso antes escamá-las das camadas de clichês, comuns lugares, estereotipias e chavões, por meio dos quais um suposto centro visa uma suposta periferia. A recusa da periferia em ser periferia é que pode ser mais astuciosa. Porque pelo excesso de história a ser conhecida, coletada, atravessada, quem está na suposta periferia acaba conhecendo mais do mundo total e, logo do mundo de que quem se encontra apenas no suposto centro. O itinerário percorrido é, em sua largada mesma, mais extenso, desafiador. E é como que duplicado.
A questão não é pouca. Alguns produzem textos, filmes, poemas, canções. Mas não mantém em paralelo uma escrita sobre esses textos, filmes, canções, etc. Uma escrita que chegue à flor d'água com boa flutuabilidade ou potencial de mutância, absorbilidade. Há um usual e flagrante desnível entre a obra em si e o comentário sobre ela. Atualmente não há um só realizador brasileiro que trame em paralelo uma escrita sobre seus filmes (ou sobre o cinema em geral) que seja instigante. Ou reveladora. Ou ímpar. Ou indispensável.²
Suplementar em riqueza e soluções.
E, de outro modo, todos abrem a boca para citar a rodo.
Mas mesmo quando se é Benjamin, nem só de citações vive o homem. Imagine quando não se é.
*
MOVIMENTO E IMPREVISIBILIDADE
É necessário forjar oásis antes que o deserto chegue. Como um bom líbero ou zagueiro é capaz de antecipar. Até mesmo os movimentos de Neymar. A imagem compraz: a projeção, o ponto-futuro. O que se produz depois ou antes daquilo que se cria por intuição só é fértil como oásis, se o movimento, o acto de criação escapar - ainda que nas últimas, na bacia das almas - à possibilidade de previsão. 
Por mais empenho que se bote nessa previsão. 

_____________________
¹E, aqui, escutar ao mesmo tempo que dizer não significa uma reivindicação de interação entre autor/leitor. Nos moldes em que está proposta, essa interação é uma perfídia. Um atentado ao bom-senso e a certa gentileza de modos. Ao menos do modo como se dá essa interação nas pavorosas caixas de comentário rede afora. Essas caixas constituem uma nova modalidade de folhetim. Quer dizer, uma boa parcela de leitores, ao modo de voyeurs, ocupam-se mais com essa relação um pouco estúpida e análoga à de um Big Brother literário entre autor/leitor do que com o texto em si, como algo autônomo, visado como independente até de uma autoria. Um autor, por mais "seguidores" ou comentários que detenha em suas caixas, há de notar que esses comentários são rasos ou pueris. Já nascem obsoletos, superficiais. Ou assomam marcados por certa gabolice, prosápia. Ou seguem alinhavados por jactância, vanglória. Não raro, semelham interjeições. São interjecionais - como os palavrões que soltamos desde as tribunas, nos estádios (virtuais ou não). E, logo, o autor deve treinar-se, adestrar-se, deve estar no ponto para divisar as excepções a esse estado de coisas. Até porque essas excepções costumam ser cortantes, brilhantes demais para passarem sem a sua profunda atenção. Mas também costumam ser mais discretas, e desviar-se para canais menos públicos.
²Verdade, os melhores não precisam disso. Ou melhor posto: prescindem disso.

Reductio ad Absurdum


Michael Anderson, Logan's Run, 1976

-Claro que existe vida fora da Terra – disse Arthur.
-Sei não. Se houvesse, tenho impressão que eles já teriam entrado em contato – ponderou o Terceiro Excluído. 
-Mas não é aí que mora a filosofia, a astúcia, a prova da inteligência deles: por que entrar em contato com um planeta cheio de problemas como o nosso? 

domingo, 27 de maio de 2012

Estamos aí, Dona Qualquer Coisa



As licitações? Isso foi muito depois. Rapaz, eu era liso. Tudo começou quando vendi os extintores do meu prédio e com parte do dinheiro ganhei uma bicicleta na rifa. É preciso ter sorte na vida. E Deus ajuda a quem cedo madruga. Precisar de qualquer coisa, estamos aí, Dona Qualquer Coisa!

sábado, 26 de maio de 2012

Peckinpah: poeta de um idílio sem saídas


Sam Peckinpah, Straw Dogs, 1971

Ternura e Brutalidade

"I can see him so plainly," she said, after a moment. "Such eyes as he had: big, dark eyes! And such an expression in them – an expression!"
"O, then, you are in love with him?" said Gabriel.
[James Joyce]

Dentro de um certo sentido, não seria propriamente uma heresia dizer que Peckinpah complementa Bergman. Ou melhor dito: é um Bergman mais próximo da sensibilidade americana - tal como a caracterizavam, entre outros, autores como Lezama Lima e Carlos Williams, que muito provavelmente jamais assistiram Peckinpah. E, assim, é como se todos os cristais e a metafísica de Bergman fossem lançados no ambiente poeirento da fronteira onde chafurdam as personagens de Peckinpah. Ou então, alcançassem uma vida no limiar da sobrevivência e do deserto, condenados a sair do circuito das ideias para viver no mundo das coisas.
Há armas e coiotes na espreita.
*
Peckinpah é uma senha.
Gosta-se ou detesta-se. E ele é um poeta. Um poeta, aliás, próximo de certa tradição de se entrever a relação entre mulher e homem – algo, portanto, um bocado fora dos guizos nos diascorrentes - de certo modo cru, sem muitos atavios. E através de lentes onde se mesclam lirismo e violência extremos. Erra quem pensa que ele representa apenas a chegada mais definitiva ou radical da literatura beat e da contracultura ao cinema. Ou que limitou-se a sublinhar a poesia de certa marginalidade. Um banditismo que medrou à margem dos monopólios capitalistas que conformaram a base das grandes fortunas, dos happy few que lucraram e acumularam de fato com a expansão para o Oeste: banqueiros, donos de ferrovias, especuladores de terras, grileiros contumazes, os primeiros magnatas do petróleo. 
No atacado, os personagens de Peckinpah querem roubá-los, mas acabam sempre roubados, aleijados ou mortos por eles, mais uma vez e irremissivelmente. De certo modo, os párias de Peckinpah são mais desgraçados que os índios. E só por isso é praticamente impossível não simpatizar com esses tratantes, e suas convulsões natimortas. Porque eles já nasceram para rodar à margem. Para serem os perdedores exemplares e da vez. Consumados losers ou motherfuckers. 
Em The Wild Bunch a palavra dos velhos pistoleiros vale mais que emissões de moeda. E talvez haja mais dignidade na ética estropiada desses assaltantes e pequenos patifes (que de resto também lembra a dos cangaceiros e a de outros bandidos sociais), que na respeitabilidade especiosa dos recém-financistas e seus exércitos particulares, equipados com modernas metralhadoras giratórias.
Peckinpah segue na mesma ala de cineastas-párias que tem em suas fileiras gente como Von Stroheim, Buñuel, Orson Welles, John Huston, Nicholas Ray, Robert Aldrich, Pasolini, Sergio Leone, Herzog, Fassbinder, Samuel Fuller e algum - mas não todo - Billy Wilder. O cinismo e a ambiguidade moral do baixo cinema noir preparam a chegada da violência lírica em Peckinpah. Filmes como The Asphalt Jungle (John Huston, 1950) já surgem bastante rentes a ele. E nas feições desse mestre da violência também se pode pressentir os primeiros traços dos Coen, de Tarantino, de Jarmusch e de Bela Tarr. Ou de romancistas como Roberto Bolaño ou David Foster Wallace.
Joyce, Hemingway e o primeiro Creeley, no campo da literatura, estão mais próximos de Peckinpah do que se imagina. Ou do que o último Creeley, mais polido e politicamente correto, gostaria. Hemingway e Joyce provavelmente se escusariam menos da semelhança.
Mas também os motivos nestes dois últimos são expressamente absorvíveis pelo cinema. Em Hemingway há a frustração permanente de haver sido magoado - ou como que "violentado" em sua ética de amante - na juventude. Isso gera insegurança e a necessidade de erguer códigos de fraternidade a partir de riscos comuns, não importa o sexo ou grau de envolvimento, assim como personagens femininos realmente fortes, encorpadas (como observou, entre outros, Simone de Beauvoir). E em Joyce, há essa necessidade de reafirmar a carnalidade do amor (que ronda assustadoramente o protagonista - aliás, alter ego do autor - em um conto como "The Dead"); assim como as dificuldades de repartir o cotidiano com uma mulher.
Joyce, sem dúvida, leva este último tema ao paroxismo. E é de uma simplicidade tão comovedora quanto grosseira, quando diz, por exemplo, sobre a figura de Jesus: ““He was a bachelor and he never lived with a woman. Surely living with a woman is one of the most difficult things a man has to do, and he never did it.” [Ele era um solteirão e jamais viveu com uma mulher. Decerto viver com uma mulher é uma das coisas mais difíceis que um homem tem por diante, e ele nunca teve”]. Um pouco por essa frase, pela ideia que ela concentra em constelação, surgiram filmes um tanto pueris a respeito. Como  The Last Temptation of Christ, de Scorsese.
Pode-se imaginar que Peckinpah gostava dessa frase de Joyce. Muito provavelmente sem a conhecer. E ele, no entanto, a ilustra (involuntariamente?) em alguns de seus filmes. Notadamente em Straw Dogs (1971), que ganhou uma digna refilmagem ano passado (Rod Lurie, 2011). Digna, sim, mas ao contrário do que sugere Roger Ebert, nem por sombras melhor que o original - onde tudo é mais sugerido e sutil. E os movimentos e motivos brotam menos expressos ou pirotécnicos que na refilmagem. O modo como seguem insinuadas a ambiguidade moral de Amy (Susan George), bem como a complacência, bisonha, um pouco tola, de David (Dustin Hoffman) é obra de mestre. Além do que, na versão de 2011, a locação é transmigrada do sul da Inglaterra para o sul dos Estados Unidos - algo que reforça gastos estereótipos e agrada ao politicamente correto. Algo que possivelmente entraria em rota de colisão com os propósitos de Peckinpah, que seguiam longe de estigmatizar ou caracterizar como retrógrada a vida no Sul, ao contrário do clichê mais moeda corrente. 
Como se não bastasse, Peckinpah desmonta qualquer ideia do feminino como heróico ou redentor. Como algo minimamente sábio ou mais salutar que a esfera do masculino. Para ele, a mulher não é mais do que a outra metade de uma humanidade degradada, torpe, sem remissão. E assim, ela é apenas obcecada por encantar. E só para logo em seguida deplorar os resultados nefastos desse exercício de sedução, que é também um exercício de poder. Mas de uma sedução e de um poder que automaticamente se voltam contra ela própria, mulher. Ou podem custar literalmente a cabeça do amante, como em Bring me the Head of Alfredo Garcia - assim como, ao seu tempo, já havia custado a de João Baptista. 
Bem entendido, o poder da mulher é poder. Corrompe da mesma forma. É em tudo análogo ao poder do homem. E é ao menos tão podre quanto, pois resulta apenas no aniquilamento do mundo em torno do poderoso e na sujeição e coisificação de quem se encontra abaixo desse poder e desse mando. E logo, depois de lançar as habituais bombas de Hiroshima e Nagasaki do encanto e da sensualidade, uma carnificina correspondente dissemina-se ao redor. Como uma hemorragia. E muito embora, nesse meio termo, os apaixonados nos filmes de Peckinpah, sigam tão livres, impetuosos e jovens quanto nas peças de Shakespeare; como nas peças de Shakespeare, a felicidade no amor - o breve idílio do encontro - ao invés de driblar a tragédia, é apenas um condimento essencial da própria tragédia. E então as mulheres - mais neuróticas e parecidas com as da vida real que nos filmes de Ford - à medida que instrumentalizam o poder à semelhança dos homens, incorrem nos mesmos erros do mundo machista. E, evidente, não se importam nem um pouco se sua conduta implica na destruição de tudo à volta delas, desde que elas se tornem o centro mesmo do mundo. 
Mas uma capital do mundo em nada original, porém como antes, os homens, a esfera do masculino, já a tinham erguido. Pois esse processo de sair da subalternidade estúpida e injusta a que as mulheres foram sujeitas por séculos não se tem caracterizado pela criação de um espaço novo, inventivo, díspar, transgressor, sugerente, descomprimido, arejado, não ressentido e especificamente feminino. Mas, do contrário e via de regra, apenas reproduzido os mesmíssimos vícios de procedimento e manipulação de poder característicos do mundo machista e capitalista. E pode-se entender que, se há um avanço em termos de igualdade de oportunidades, por outra via, o que a mulher perde em seu processo de liberação é justamente um de seus trunfos: a sutileza, a astúcia, a sabedoria de enxergar o mundo de outra maneira. Quer dizer, da maneira da(o) que esteve à margem. E por ser alguém que passou séculos na condição de 'outro' em relação às manipulações e corrupções inescapáveis ao poder e seu entorno, propostas pelas ratoeiras machistas. Desde que a mulher sai desse aperto, também perde a perspectiva dos apertados e injustiçados, para conformar-se ao conforto refrigerado dos vencedores e da norma constituída.
Algumas feministas mais sectárias acusaram Peckinpah de misoginia. Ou de glamurizar a violência na cena do estupro, em Straw Dogs - uma cena um tanto forte, controversa (para o tempo e o contexto em que foi proposta, acrescente-se). E, no entanto e sem se dar conta, o que elas hostilizam é menos a cena em si do que a desconcertante ambiguidade moral da vítima,  sobre a qual, bem entendido, o próprio Peckinpah cala-se, ao fim de tudo.
Um bom intinerário para se chegar a Peckinpah passa por começar ou com Straw Dogs (Sob o Domínio do Medo) ou com The Wild Bunch (Meu Ódio Será sua Herança) e seguir até Bring me the head of Alfredo Garcia. Neste último, ele pratica um cinema, aliás, muito próximo em tema e forma de alguns realizadores brasileiros da época em que o Cinema Novo deságua na Boca do Lixo. No mínimo, Bring me the head... é um dos mais estranhos road movies já concebidos. E onde ressalta ainda uma vez o antiheroísmo de um ator como Warren Oates. 
Oates está para Peckinpah como Liv Ullmann para Bergman, Mastroianni para Fellini ou Monica Vitti para Antonioni. E, de resto, pode-se reconhecer que há poucos filmes onde a ternura e a brutalidade são separadas por uma membrana tão tênue como nas películas de Peckinpah. Nelas a realidade debocha da fantasia em tal grau que se converte em fantástico pesadelo. E nelas, feito em certos contos de Kafka, algo na vida assoma amaldiçoado de um modo estranhamente espontâneo e irreversível. Embora essa maldição não torne o sol menos esplêndido. O sol que cai sobre as poeirentas trilhas de um Oeste já em franca modernização, e nem por isso mais justo. Muito ao contrário. E a maldição apenas está lá, como um atributo da vida. Ou como quando as crianças brincam com formigas e escorpiões ao início mesmo de The Wild Bunch.  E os malvados não são propriamente as formigas e os escorpiões.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Matemática e semiótica


John Chamberlain, 1961

será que se as múmias fossem craques em solucionar teoremas, os números seriam múmeros?

Que não sabem o que é redundância



Nos lugares certos

uma vez sentiu que ela queria pular no seu colo à primeira margem aberta. Mas não seria boa ideia. Ela que era tão distinta. Só que não podia ser assim, é claro, naqueles casos. A carne de sol e a macaxeira, não estavam nada más. O pequeno restaurante era limpo, deserto, na Zona Oeste. Parecia um sonho? Ou uma transparência naquele verão com friagens? Chegava-se e saia-se dele por táxi e com aquela sensação de nunca mais, insuperabilidade. Mas o fato de ela estar toda trincada não era nada bom para a caixinha de música. E melhor não misturar consolo com prêmio de consolação. E ainda havia amiga, inabilidades, uma longa língua. Ter de lidar com isso quando voltassem à província 

as distintas não perguntam certas coisas. Coisas com coisas. O fio da elegância não lhes dá criar vogais entre consoantes. Ou pãos, pãos, queijos, queijos. Jamais dizem perempitório. Dizem peremptório, e olham em volta apenas duas vezes para não descentrar conversa ou parecer aquelas atrizes que dizem assim “é aquela coisa do”, ou “sabe” ou “gente, eu amo”. E é de particular delícia quando descem à vulgaridade, e se conhece a mulher. Nem profissionais fazem tão bem. E quando os anos passam - ah, por quê? por quê? - por mais arredondas e matronas que se tornem, não perdem nunca essa destreza invulgar de haverem sido as mulheres bonitas nos lugares certos nos lugares certos

as que não sabem o que é redundar

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Erotomania

Malgorzata Buczek

-ou Devaneios Eróticos na Era do Virtual

vá pensando. o virtual como luva nas mãos daqueles que fantasiam. 
porque ela ou ele ouviu tal música, assinalou a leitura de tal livro, viu tal filme. 
ou seja, por causa dessa cláusula secreta, que mesmo os dois que presumidamente a compartem nunca a declararam, love is in the air. 
(is it really?)
*
é como não olhar para além do espelho diante do qual se faz caras e bocas aos dezessete. e há ainda os que vão adiante, e não cabendo em si ao descobrir que ela ouviu “r.i.p” com rita ora ou anda lendo d. h. lawrence, postam textinhos para informe do mundo: olha, gente, estão apaixonados! não é original? e são certamente correspondidos. nem que seja só no fundo de suas cacholas. ou no fundo sem fundo dos devaneios erotômanos.
lambisgoias e lambisgoios gastam tempo e energias nisso. sirigaitas e sirigaitos fazem a glória da indústria de cosméticos e da indústria esotérica e das fábricas de reflexos e dos centros de fisicultura. para não falar dos terapeutas e nutricionistas. reais e virtuais. abra uma janela chamada espelho. e a chame de 'mon amour'. não importa o navegador. Espelho era uma das poucas janelas virtuais que você podia chamar de sua antes da chegada do digital e seus brinquedinhos amorosos
muitos amores imagináveis depois (e, claro, muita punheta e siririca escorrendo, digamos, um tanto pelo ladrão - pois está na regra, arnaldo), os caras imaginam até o piercing no umbigo, o tema musical, a decoração da capela, o garbo dos padrinhos, o gosto dos salgadinhos e aquela respiração entrecortada, no suposto futuro cônjuge (ou amante de 'ersatz').
então, no estalar dos dedos enchem blogs e mais blogs de flores, versinhos & presumidas bondades, como se tivessem dezessete ou o mundo fosse nutrir-se dessa extrabundância de salgadinhos imaginários e virtudes não menos. esquecem que esses salgadinhos não se exportam à china. que essa generosidade virtual não muda a vida de ninguém em calcutá. e será que existe alguém, em si e de fato, com uma vida interessante o bastante para ser acompanhada em tempo real? todomundo é suficientemente artista para ser seu próprio personagem e ter seus dias publicados assim nas revistas como personalidades em roupas de baixo?
motivos e valores positivos, adiante de seu tempo. e todos maneiros, heróis de si. nas suas próprias postagens ao menos. e, assim, derramar-se em posts e mais posts ao modo de diário. ah, querido diário. mesmo que não tenham mais como volver a los diciesete. como se ao menos na escrita o sensabor dos dias pudesse ser convertido em algo menos acachapante. caramelizado para algo menos doentio. como se valesse tudo y más alguna cosa. en la virtualidad, muy bien, se puede carajo. a por la virtualidad.
alguns, feito certa atriz – tinha que ser atriz ou ator, faz parte - tentam tirar uma lasquinha, otários que não são e acabam por ser mais. pois a emenda termina pior que o soneto. o soneto, no caso, supostamente surrupiado. quem terá a pachorra de parar e olhar as fotos de uma sirigaita nua, quando há bilhões de sirigaitas nuas, mais ou menos jovens e muito mais curvilíneas, insinuantes, estimulantes e, melhor, até interativas ao redor do planeta? e essa moda não foi antes lançada por scarlett johansson - que convenhamos até possui, digamos assim, mais argumentos - antes de chegar nestes trópicos quase sempre por demais tristes e reincidentes? e agora, para fechar o ciclo da mimese vertiginosa só falta uma personalidade "local", "da terra" ter suas fotos íntimas afanadas... e aí o ciclo fecha seu logro: de nova york para o rio, do rio para fortaleza. é sair de johansson para a atriz carioca, e desta para quem? para uma das tigresas de joão inácio jr.?
tá certo, ninguém vive sem migalhas de fantasia. o diacho é quando não se consegue mais nadar de volta, na ressaca braba de fevereiro, e tomar pé da realidade. maré para casco nenhum botar defeito: o braço dos nadadores fraquejando o crawl. e não mais se obtém viver com uma migalha de realidade. ainda que virtual.

 será que ontem ela ouviu sixpence none the richer?

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Fragmento sobre Literatura e Fotografia




Ao contrário de um ponto, não existe uma foto final. Mesmo que a foto seja composta de pequenos pontos, cada vez mais imperceptíveis. Ou por isso mesmo.
*
[Alguns dias depois, e a proposição talvez devesse ser refeita]:
Ao contrário de um ponto final em um texto, não existe um ponto final em uma foto. mesmo que a foto seja composta de pequenos pontos, cada vez mais imperceptíveis. Ou por isso mesmo. 

[Há um tempo interior na foto que é como que reciclável. Ou seja, o tempo na foto não tem fim ao contrário do tempo no texto].

terça-feira, 22 de maio de 2012

Sigmállysson Nobody, o Seu Lunga urbano



era domingo àquela hora em que o sol escalda mais forte, e ∑llysson Nobody voltava do supermercado com as compras. ∑llysson seguia, volta e meia, trocando os sacos de uma para outra mão no intento de acomodar melhor o peso. ia catando com os olhos as ilhazinhas de sombra. sonhava chegar em casa a tempo de ver o começo do primeiro tempo. e com os lábios rogava pragas a quem inventou a matéria plástica, o sol, o fuso horário e a tv por assinatura:
-ei, moço, sabe onde fica a antônio augusto? - disse o sujeito grisalho da janela do carro, articulando pés de galinha e abrindo um pouco de olhos entre bolsas de gordura.
llysson depôs as compras na calçada, coçou a cabeça. A expressão incrédula oscilava entre a infinita doçura e um “é cilada, bino”:
-1242 da antônio augusto, moço. sab'onde é? - reincidiu o sujeito de vastas olheiras sem por favores ou obséquios, como de praxe em Fortaleza.
llysson pegou um pouco de ar ainda sem crer que acontecera com ele. o suor descendo pelas frontes, pelos lóbulos cheios de pelos, pelo pescoço tatuado:
-em primeiro lugar, ancião, moço eu não sou, como dá pra ver. em segundo, autarquia, você deve estar me achando com cara de gps. terceiramente, que nome de rua mais ridículo é esse, minha joia: antônio augusto? esse miserável não tem sobrenome, não?
o sujeito engatou logo foi uma segunda. e se foi na cantoria dos pneus joão cordeiro abaixo.

-obrigado, viu! – ainda ouviu, lá muito atrás, no engatar da terceira, o grito de ∑lisson a reenganchar a alça dos sacos nos dedos das mãos com a sacrossanta expressão de um resignado monge budista que acabara de declinar um mantra essencial para o bem-estar da humanidade.

Nos Circuitos da Naturalidade e dos Mascotes



Torço para quatro times: um na Inglaterra, um na Alemanha e dois no Brasil. Nenhum deles está ganhando. Mas eu tenho uma cachorra. E pelo fato de ela ser de raça inglesa, ter nascido no Rio, e o ex-dono ser alemão, finjo que a bichinha torce Chelsea, Fluminense e Borussia Dortmund. Faço ela ver todos os jogos. 
Minha pupuquinha está ganhando tudo. E não deve ser pecado torcer um pouquinho pelos times de quem nos faz feliz.

É? Ah, não sei. Assim de cabeça, não sei. Mas Mamãe diz que sou competitiva.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Ao redor do mundo e pelo menos

Prédio atingido por terremoto este fim-de-semana no Norte da Itália

O Chelsea, com seu futebol de ferrolho, sagrou-se campeão da Champions League numa final que sabia à anti-clímax antes mesmo do apito inicial, na tarde do sábado; e novo fôlego foi dado ao futebol de resultados. A morte do ex-Bee Gee Robin Gibbs. François Hollande assume como novo presidente da França. Um terremoto na Emilia-Romagna, norte da Itália, causou danos intensos a prédios históricos. Morre no Reino Unido o último líbio acusado de terrorismo no caso Lockerbie. Eduardo Saverin, um dos sócios do Facebook, nascido no Brasil de pais judeus (e atualmente residindo na Indonésia), renunciou à cidadania americana para pagar menos impostos. Os primeiros dias do Festival de Cannes geram especulações sobre os filmes que podem alçar-se a algum prestígio de público e/ou crítica (o festival, que começou dia 16, termina dia 27 próximo). O futuro da democracia no Egito equilibra-se na corda bamba. O México parece haver herdado os sérios problemas com traficantes de drogas que já foi negro privilégio da Colômbia: um massacre tirou a vida de dezenas de pessoas. Especialistas indicam que a saída da Grécia da União Europeia está por um fio e alguns dias. Estudos apontam que os cavalos foram domesticados há seis mil anos entre a Ucrânia e o Cazaquistão.  Por aqui, foi necessária a intervenção do governo para que os preços de hospedagem durante a Rio+20 sofressem algum abatimento; e o Brasileirão larga tão pouco inspirado quanto oportuno. Estes foram alguns dos assuntos comentados ao redor do mundo, semana passada. E pelo menos não se falou de nenhuma atriz que teve as fotos íntimas afanadas de seu HD. 

"Mágico, mundo, alguém-eu", novela em 3 atos: I. Magia ou O Incorrespondível Desejo


Francis Bacon

As pessoas tem um desejo enorme que um punhado de letras traduza uma complexidade, barafunda de sentimentos, sensações, condições, estados de espírito que são elas próprias. Que essas letras, coitadas, sintetizem isso tudo. Como se fosse possível uma correspondência. Ou, mais adiante, uma coincidência. 

domingo, 20 de maio de 2012

"Mágico, mundo, alguém-eu", novela em 3 atos: II. O Que Coincide Não Tem Olhos Para Fora De Si


Francis Bacon

Mas o que corresponde tem três dimensões e é, no mínimo, do reino animal: cachorro, golfinho ou saguim. E o que coincide não tem olhos para fora de si. E jamais poderia ver a coincidência mesma, ficando para sempre aprisionado nela, e de nascença. Pois coincidências e prisões cercam do mesmo jeito. Têm o mesmo termo em latim no nome científico. E nenhuma janela para fora. Só um terceiro excluído pode vê-las. 

sábado, 19 de maio de 2012

"Mágico, mundo, alguém-eu", novela em 3 atos: III. Violenta Necessidade de Espelhos


Francis Bacon

Mas então há uma necessidade tão violenta de espelhos, que letras despertam lágrimas. E não por serem parecidas com pessoas. Mas por despertarem nelas o desejo de se acharem parecidas tout court. De se acharem parecidas com paus e pedras. Marés e rios. Sextas-feiras e o alfabeto cirílico.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

A Pianista


Piano de cauda redesenhado e fabricado pela Audi

- ou Nem Toda Ternura Para Quem Inventou a Vigília

Com uma apruma-se o chapéu. Com a outra - de outra pessoa, aliás - recolhe-se a moeda caída sob o jasmineiro em flor. Simultaneamente. Para ser tocado, o piano demanda uma estranha independência entre as duas metades do cérebro; e, de uma para outra mão, um esquecer do que se faz. O piano é o instrumento mais completo. Seu universalismo pouco gera cepticismo e, assim, aproxima-se do sonho. E logo, sonhar tocando piano, como ela certa vez sonhou, é sonhar à segunda potência. 
*
E se o piano segue no sonho, é por onde ela podia ouvir e refazer não só a toada da orquestra inteira, mas também os cantores. Ou os dedos da mão esquerda assoviando no braço das guitarras. E se duvidar, até os passos do solista para os bastidores. Os aplausos. Ou o eco desses passos no assoalho do corredor, de volta, refeito no pé cravando o pedal. E espichando sons. Ou glissandos executados com mais desenvoltura do que se escorre o dedo no visor do iPhone. Tudo isso no sonho ela dominava com rematada perícia. Na certa havia anos de estudo do instrumento por trás. Mas no sonho ela ficava só com o bem-bom: tocar maravilhosamente bem.
Pelos ouvidos dela os sons penetravam como uma quente e dilatada glande nas suas fendas. E o que vinha depois. Depois da cabeça. E aquele seu sonho estava completo: tocava piano como quem conversa no salão de beleza. E expressar o que não se pode com as limitadas palavras. Exprimia algumas notas na suavidade de sedas. E grunhia como uma porquinha em desenho de Disney. Lipatti e Gould, rá, eram fichinha. Nada de excepcional. Pressionava as teclas certas no tempo certo, e o instrumento tocava-se.
Ressuscitava amigos. Amava todos, todos de direito no filme de sua vida. De direito e de torto. Alternadamente e de uma vez só. Uma suruba violenta e piedosa. Não foram poucos. Ia ter com eles. Com todos. Com um. Com os que a tinham desprezado, guardava um sopro de fôlego para, mais adiante, gastar com aqueles que a tinham refeito de novo e para a vida; mas, diacho, sem menos - como usa ser, como ousa ser - por aquela soma de acasos, erraram-se; e nenhuma pista em Facebooks, nenhuma busca nos Googles da esquina iriam remediar, repor, reparar certas coisas ditas, não ditas. Ineditismos. Fantasia. Falências. E umas poucas de arapucas virtuais.
Em sonhos, é tão bom ter tudo de volta à volta. Até o irrevoltável. Aquele dia em que subiram na caixa d'água e, bem ao amanhecer, atiraram a garrafa de chianti vazia lá de cima. 
Ou a natural plástica de quando se tem dezenove. E é reacomodar as coisas na sua primitiva forma de grandeza. Cheia de devaneios e fibras. Arranhados pelo cimento craquento da caixa d'água. Ou no aconchego do quarto de solteira. E com uma direção de arte tão precisa que é feito seguir por noites de dezenove de novo. E reencontrar aquela briba, branquinha, que ficava ali na parede, atônita, olhando para eles, através dos únicos pontos pretos do corpo, enquanto eles brincavam. Era a Antônia. 
Só que agora, Antônia ficara para trás. E ela já sabia brincar com uma agilidade a mais acumulada no corpo, feito um dínamo. Já podia lançar-se ao impromptu, como no jazz. E com certa, não se diga sabedoria, mas passagens por cascas e alhos dentro da cabeça (em si já mais próxima de uma cabeça de alho, embora não menos oca. Mas isso só por dentro ou alegoricamente). Por fora do papel celofane do sonho, claro, tudo selvageria e dezonove aninhos. Grisalho algum. E aqueles dedos tirando sons lindos como linhas da vida inscritas na mão suada de quem muito se quer.
À certa altura, ela puxava C. pelo braço, e ambos caíam no sofá refestelado e macio do sonho, cheio de penumbras e sons. Como nos anúncios. E sentia os volumes do corpo dele e de novo, atrás do jeans. Arestas e ângulos. Mas logo o jeans, junto com a camisa de manga longa e os All-Stars, estavam largados pelo chão. E uma barba malfeita arranhava de leve no rosto dela. E, ao mesmo tempo o piano incessante, a desfolhar estranhas regras de tempo e pingares de líquido na escala. E ele tinha quantos braços? Só dois? Mentira. E, de repente, que coleção de elásticos faziam sua cintura ter mais ginga que a da professora de pilates? 
Agora estava claro. E ficou claro. Ainda mais. Bem claro, Carol. Cristalino. Como numa cantata de Bach. E os contornos do bairro começaram a surgir, de novo, para além da janela. Como o dedo dela obturando fotos em branco e preto na contra-luz de um dia chuvoso. Ou o dedo dele apertando a campainha. E ela a ferver éfes nos lábios. Ou ele de novo enfiando-se, por detrás, nas algas dela. E mais poses. E fotos em que, depois, devidamente photoshopados – e nem precisava - ela assomava radiante, sentada à mesa do café, manhã seguinte. Sorriso de um lado ao outro do hemisfério. Nos sonhos coisas reluzem com brilhos de anúncio de margarina ou sedã.
Mas nada ou ninguém lhe devolvia prazer maior que tocar piano com aquela fluência de virtuose e contornos de gala. E seguir descascando tampos na laranja e tempo nas teclas. Ou comendo-as com a ponta dos dedos. Ou sentindo-se perfurar por mais de uma entrada. E aquele arrepio subindo-lhe ao olho. Ou então, os dedos devidamente esquecidos, permanentemente aquecidos. Fluidos. Como cavalos passando obstáculos. Ou pequenos ginastas de buriti saltando por cima de barras, a transcreverem-se por notas dissonadas, sem prévia adivinhação. Pois finalmente, finalmente, ela tocava piano como quem joga conversa fora no salão de beleza ou a fia no boteco. Ou ainda possui aquele descascar laranjas no piloto automático. Por que demorara tanto para chegar àquele estágio? E até onde a torpe necessidade de fingir não ia vogar mais, se isso não era bom?
E aí, sem perder compasso, desembaraçadamente, o metrônomo marcando nos camarins do cérebro, acocorava, para catar com a mão esquerda a ponta do cigarro que, antes, acomodada na borda do instrumento, caíra no chão. E, então acordava: poçinha de cuspe junto aos lábios, dedilhando teclas invisíveis sobre a colcha de índigo. E num compassar que ainda provinha do último fiapo imaginado antes do plano geral sobre o qual se aplicara o The End do sonho: o indicador a pressionar sucessivamente a dominante, em pedal e ralentamento. Lá fora uma betoneira troava, e bulldozers terraplanavam a rua.
*
Miseravelmente só e ainda um pouco tonta.

E pior, era domingo. Birrenta, uma mosca insistia em voltar ao mesmo ponto na maçã de seu rosto. A dor de cabeça no mundo e súbita lembrança: o disk-água do bairro estava fechado. Será que ainda tinha absorventes no armário? Um cheiro de pizza, cigarro e cerveja ambiente. E maldizendo quem inventou a vigília. O cachorro, um pouco desconsolado, cheirava as pontas de seu sutiã no assoalho gasto.

E para a puta que o pariu essa necessidade cruel de se mudar a programação da TV no domingo. 

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Fórmula Bachiana

Pere Portabella, The Silence Before Bach

Nada de excepcional. Pressiona-se as teclas certas no tempo certo, e o instrumento toca-se.
                                                                                                                                                       [J.S. Bach]


Em música devia ser: “Glória a Bach nas alturas. E paz na Terra aos homens que não cessam de ouvi-lo”. 

quarta-feira, 16 de maio de 2012

No Centro de um Império Equivocado: a Centralidade do Inglês, Tradução e Astúcia



Deslocamento e dessincronia. A tradução é o campo em que a linguagem é mais provisória nos domínios da literatura. Na tradução, tudo reflecte desconforto, inadaptação, estranhamento, insatisfação, nostalgia, foras de hora e lugar. Ela é um gênero literário de extrema importância, mas quase nunca é olhada assim.
Na verdade, ela sequer é investigada como gênero. Ou tomada como relevante em estudos especializados, salvo raras excepções. E a tradução pode ser tão transparente que vemos através dela sem nos darmos conta desse através. Ou sem lembrarmos que estamos lendo não apenas Dostoiévski, mas também Paulo Bezerra. Ou não só e.e. cummings, mas Augusto de Campos. Não Homero, mas Odorico Mendes. Algo análogo ocorre com a montagem invisível em filmes clássicos. Assim ela é tomada como um naturalismo que não corresponde ao/ ou estranha o/ grau de artificialidade e convenção necessário à tarefa de produzi-la.
Boa parte da importância da tradução reside em prosseguir a ser um corpo a corpo com a linguagem ainda não exaurido pela diarreia das teorias literárias contemporâneas ou pelo exercício oco da criação, por si, de conceitos, apenas para retroalimentação acadêmica. 
A tradução, enquanto gênero, foi uma dos poucos aposentos na vivenda da literatura a não ser ocupado inteiramente, a escapar de ser colonizado ou parasitado pela teoria acadêmica e, assim, posto a serviço de uma ideia. Ideologizada de algum modo. E ideologizada, a mais das vezes, desviando-se do texto. Ou propondo-o a serviço de algo supostamente “mais estratégico”: seja político, seja ambiental ou comportamental. E, assim, mais urgente, em hipótese. Porém, na verdade, atirando o texto a uma servidão sectária, de algum modo. Pois vivemos num tempo em que os estudos literários são precedentes à literatura. A primazia recai sobre eles, não sobre a letra dos textos. E, no caso, por suas especificidades, a tradução permaneceu uma das poucas formas de literatura imunes a essa hiper-ideologização. [1] E, portanto, apontando para o texto em sua letra mais letra.
É preciso entender que tais causas ou temas - feminismo, opções sexuais, imigrantes, populações em meio pré-industrial, desenvolvimento sustentável, potencialidade dos hipertextos, máquinas de traduzir, acessibilidade ao virtual - são sumamente importantes. E não se deve perdê-los de vista. Mas que nem sempre os melhores textos literários são os que necessariamente os reflectem ou passam por eles. Já que eles são conjunturais. E não há nada que nos assegure que serão prioritários daqui a cinquenta anos. Ou que não se prestem a profundas manipulações e inverdades. Isto é, manipulações e inverdades a serviço de "causas políticas" pontuais e um tanto facciosas ou intransigentes, tal como é possível encontrá-las em algumas aparas dos ditos Estudos Culturais.
A tradução, do contrário, é um derradeiro corpo a corpo com a linguagem, onde se refugiaram aqueles para quem o trato com ela ainda está envolto em certo pudor. Em certas reservas e interditos de se estar tratando com algo às raias do sagrado. Um bom combate. Um embate ao modo de Jacob. E não há forma de humor verdadeira que exclua a dimensão do sagrado. Huizinga, em seu Homo Ludens aponta bastante bem para tal: o atrofiamento da dimensão lúdica na modernidade.
De outro modo, em meio a isso tudo, quando se volta para a arquitetura, a ideia de poder sempre esteve nitidamente vinculada a edifícios grandiosos. Que ameaçam arranhar o céu ou desfazer a linha do horizonte. Daí a tradução - mediante o esfacelamento da língua única em várias línguas - ser apresentada como uma espécie de segunda queda ou segunda expulsão do Éden. Ser proposta como resultado do soerguimento de uma torre, que ameaçava o monopólio das alturas e da sabedoria celestial. É a imagem bíblica e recorrente dessa ambição insatisfeita: a torre. Mas o verdadeiro tradutor também pensa por peças de Lego. Ou muito mais por meio delas que pela opressora totalidade da torre.
O que há de fálico, fáustico e arranha-céu em Babel, há também de saudades da terra, do chão, do ctônico, da água, dos canteiros de flores. Do pisar o chão e ser de manhã. Do mergulhar em fluxo e rio. Do encontrar-se exilado das possibilidade de estrada. E das encruzilhadas e outras ciladas da linguagem. Em particular, daquelas que qualquer imigrante experimenta no exílio. Estar no alto da torre é solitário e insosso.
Mas também tudo mais torna-se provisório ou des-urgente diante dessa instância do exílio. A precariedade vaza por todo lado. Traduzir, então, é esse estar o tempo inteiro consciente dos limites - de nenhum modo apenas metafóricos - dos idiomas. Ou seja, é estar o tempo inteiro indo e vindo através das fronteiras deles. Percebendo não só a suplementaridade dos diversos idiomas, mas, sobretudo, o tanto que essa suplementaridade aponta para uma espécie de idioma ideal, que de nenhum modo pode ser expresso. A não ser imperfeitamente, através dos cacos, dos pedaços de Lego, imperfeitos - e nem sempre amoldáveis entre si - dos idiomas concretos. 
Pelas labilidades, virtudes e falências desses idiomas, quando contrapostos a essa língua total, ideal e perfeita - que só pode ser mobilizada nas junções e articulações das línguas particulares - segue o tradutor. É preciso importar e exportar bastante de um para outro idioma, no plano do sentido e no da forma, para consolidar uma tradução estimável.
O contrabando não é pequeno. Pela astúcia, faz lembrar o de uma contrabandista idosa, em certa crônica de Stanislaw Ponte Preta. A obstinada velhinha cruza diariamente, ida e volta, várias vezes, a fronteira do Rio Grande com o Uruguai, montada numa lambreta com um saco à garupa. Não há nada no saco, a não ser areia, que o guarda aduaneiro já mandou para análise mais de uma vez. É terra mesmo, com esterco, minhocas e tudo de direito. Mas então, pergunta ele: o que contrabandeia?
Fácil, numa segunda leitura, perceber que ela contrabandeia lambretas. E o fato de a velhinha importar e exportar o próprio veículo em que se movimenta nos remete para esses veículos supremos, sem fim, que são os idiomas. 
Mas também para outras questões à beira do tráfego do traduzir. Ou seja, à beira da auto-insuficiência. Ou ainda seja, para o malogro e aparente modéstia exemplar dessa tarefa, se ela não consistisse também numa das mais ambiciosas: levar e trazer, re-levar e re-trazer, os grandes textos de um para outro idioma, e não especificamente apenas em função daqueles que não podem lê-los em fluência no idioma em que foram escritos inicialmente. Mas, sobretudo, pela importância intrínseca desses textos. Daí que o número de versões traduzidas seja proporcional à relevância do texto. Ao modo como o texto, por si, clama para ser posto em outras línguas, porque está prenhe de sentidos e belezas. 
Por que uma canção como "Águas de Março" ainda precisaria ser gravada após a versão de Elis e Jobim? Não está tudo lá? E, contudo, a canção é tão misteriosamente plena, que necessário ressoar sua beleza sob outros prismas e concepções de arranjo, atmosfera, timbre, instrumentação. E pois então, qual a necessidade de se traduzir de novo um texto que já se encontra traduzido, a não ser pela sensação de que a tradução deixou algo de fora, ou não ressonou determinados aspectos da forma ou do fundo? Ou segue muito veloz? Ou por demais lenta? Ou não refrata as mudanças de andamento, apresentando-se em insossa uniformidade? E isso se dá porque o resultado final, flagrante da tradução é visivelmente, em sua imediatez, o retrato do provisório e da incompletude. Ou ainda, deve-se recordar da insatisfação gerada pelos resultados imediatos dessa tarefa: quando todos dirigem sua atenção para um detalhe mais lustroso, e a proeza do tradutor propôs outro, muito mais árduo e sutil – mas, diacho, esse outro passa despercebido.
*
Entre muitas outras coisas, Susan Sontag, a ensaísta norte-americana, também foi tradutora. Mais que isso, ela leu bastante, vorazmente em traduções. (E o que é o tradutor, senão um leitor elevado à máxima potência?) E leu abrindo-se a novos autores, que se encontravam bem ao largo de um cânone sedimentado, onde, aliás, Sontag tinha tudo para ter ficado, numa zona de conforto. Pois o aconchego não era dos menores, e o ar refrigerado amenizava os rigores do verão, assim como a calefação central, os do inverno. Em torno todos falavam inglês: a vida já nascera mais ganha que outras, digamos assim. E, no entanto, ela resolveu seguir para outras latitudes. E até demorou-se, com inusual vagar, nos trópicos. Ela, que nasceu e esteve bem ao centro mesmo desse cânone, e, astuciosamente, percebeu o logro dessa centralidade.
Essas leituras de Sontag pela “periferia” do Ocidente, esses seus passeios pelo “lixo Ocidental” - na expressão pop e precisa que Fernando Brant cunhou em anterioridade e na outra face mesma da moeda - a fizeram amar autores que só muito superficialmente são conhecidos no todo-poderoso universo de língua inglesa. Sontag deleitou-se com a leitura de ensaístas, ficcionistas e poetas do Leste Europeu, ainda pouco conhecidos ou divulgados à época em que escreveu sobre eles. E eles parecem conformar a sua última paixão - ela morreu em 2004.
Mora aqui um paradoxo. Nos seus últimos anos, Sontag propunha um estranho diagrama da Europa enquanto ideia. A de que os países “periféricos” no Velho Continente – os mais pobres, os recém-saídos de ferrenhas ditaduras stalinizantes, alargadas por décadas de estúpida satelização em torno da União Soviética - pareciam, contraditoriamente, mais vivos, decentes, únicos e mesmo diversos, culturalmente falando, que os da propalada União Europeia. 
Estes tinham um quê de novos-ricos, de América má re-transplantada ou regurgitada à Europa. Deleitavam-se em consumir, entregar-se à bandeja dos novos triques e brinquedinhos tecnológicos. Ao mar de consumo: régias consultorias, preguiçosos bem-estares, e aposentadorias que ainda não eram quando Buñuel filmou Las Urdes, na Extremadura espanhola, com europeus morrendo como piolhos de fome e malária, e sequer com um tostão furado para migrar para Luxemburgo, França, Alemanha, Brasil, Canadá ou Austrália. Nesses mesmos tempos, adolescentes transmontanos eram fotografados no estuário do Tejo, sob roupas rotas e semblantes descarnados - embora cheios de esperança - a aguardar a saída do vapor para o Rio ou Durban.
Sontag também manteve um vivo caso de amor com a língua portuguesa, sobretudo via Machado de Assis, a quem ela dedicou um texto, ao final do anos de 1980, e a quem fez questão de nomear em um ensaio tardio e um tanto subestimado: “O Mundo Enquanto Índia – A Conferência São Jerônimo Sobre Tradução Literária” [presente na coletânea publicada três anos após sua morte (Ao Mesmo Tempo: Ensaios e Discursos, p. 167, 2007 - na edição brasileira, Companhia das Letras)].
Nesse sumário de posições sobre a tradução, ou mais especificamente sobre a tradução literária – o que chamamos de “os importados que importam” - Sontag alerta para o que há de nefasto na excessiva centralidade do inglês enquanto idioma da modernidade. Quer dizer, aponta para o que há de injusto no peso desigual das línguas, ainda esteado em pesados preconceitos (aqui, sim, justificáveis serem mencionados como preconceitos, ao contrário de muita coisa no político e no escorreito), que reduzem o cânone e impedem novos alargamentos de fronteiras. E, por que não, da própria inclusão dessas culturas um tanto estigmatizadas, superficializadas, aclichezadas, puerilizadas na categoria de humanidade. Na humanidade densa, para lá de Ocidental.
As preocupações de Sontag são relevantes. O diagrama que traça da modernidade segue esteado em autores imprescindíveis, como Nietzsche, Benjamin, Bazin, Barthes, Ciorán... Mas, como já ressalvado, passando também por escritores do Leste Europeu, obscuros ou relativamente pouco conhecidos. Ou mesmo por ocidentais que não chegaram a um público mais amplo, caso do alemão W. G. Sebald. E, no entanto, tão essenciais quanto os mais famosos. Ou por Machado de Assis, que – para o azar mais deles que nosso - poucos conhecem em Paris.
Ela parece divisar com nitidez um ponto de vista: onde o Ocidente enxergar possibilidades de poder - mínimas que sejam - essa possibilidade será captada e potencializada, de modo a extrair da situação em crivo uma espécie de “vantagem ética”. Coringa a ser mantido na manga e em estratégia. Argumento em proveito próprio. Falácia. E, nítido, é a partir dessa espécie de mais-valia, desse excedente de “ética”, que relatos como os de V. S. Naipaul ou Marjane Satrapi - que não são mencionados por Sontag, mas bem poderiam - prestam-se tanto a serem laureados - sagrados que foram como prepostos da herança do Ocidente em terras outras - pois também calam, miseravelmente, sobre a outra metade da empresa: o grau de barbárie exercido pelo Ocidente para operacionalizar essas outra formas de civilização. 
Quer dizer, autores como Naipaul ou Satrapi são muito eficientes quanto a denunciar a pasmaceira terceiro-mundista - corrupta, ineficiente, retrógrada, autoritária - que grassa nos países ditos “periféricos”. Ou os maus tratos desses países aos recursos naturais, um tanto como se a história nos países ditos “centrais” fosse de todo diferente. Ou ainda o aparente barbarismo que reveste certos hábitos e costumes, mais próximos de uma visada menos laica, ocidentalizante. 
E, no entanto, pontos de vista consagrados como os de Naipaul ou Satrapi, conveniente e rapidamente absorvidos e premiados, são simultaneamente incapazes de vislumbrar que é exatamente esse estado de coisas - esse status quo que os premia - o que sustenta e, em larga medida, legitima o consumismo cínico, deslavado, refrigerado, aquecido e aparentemente auto-suficiente e colarinho-branco dos países ditos pós-industriais. Lá, onde, não é de hoje, o outsoursing empurra aos imigrantes o trabalho de facto. E o trabalho sujo, o de suar e deformar-se, é, por seu turno, cada vez mais transferido para a periferia do mundo, junto com as fábricas e as fazendas. 
Tarefas de se encher de hérnias e acidentes de trabalho na execução das mesmas. A de executar repetições aviltantes à beira da linha de produção, do fone de telemarketing, ou da apuração da informação na internet. O trabalho, enfim, que embrutece. Que lembra o instrumento de tortura que está na raiz latina da palavra. 
Enquanto isso um adolescente em Nova York consome mais os recursos não renováveis do planeta durante um ano que uma família de sete pessoas em Bangladesh durante cinco. E, no entanto, é o adolescente novaiorquino quem está vinculado a uma organização contra o desmatamento da floresta tropical na Indonésia. Ou se indigna e protesta contra isso. 
Será que algo está errado?
A análise de Sontag a respeito de como jovens indianos são educados em call-centers para agirem, portarem-se e até possuírem tiques, emitirem gracejos e dados biográficos de norte-americanos, é impagável. Uma análise muito pouco condescendente, complacente, concessiva, como usam ser investigações do gênero. Ou ainda, muito longe da unilateralidade confortável das soluções de Naipaul ou Satrapi. Nestas, todos os valores “legítimos” e estimáveis são ocidentais. E os “maus” encontram guarida fora deles.
Outrossim, é aqui que Sontag clama para um aspecto pouco evidente: a vontade que todos temos de sermos – o quanto mais possível – de língua inglesa. De uma ou de outra forma. Ou da forma mais disponível. Como no caso desses jovens indianos desdobrando-se em horas extraordinárias nos call-centers e fazendo-se passar por norte-americanos. E não apenas por contexto de trabalho. 
No íntimo, desejando ardentemente um visto de residência e uma vida sob as benesses do idioma inglês, longe de seus cotidianos na Índia. Ou uma biografia menos ficcionada do que as que lhes foram repassadas pelas firmas contratantes, para amenizar, maquiar a terceirização desse trabalho sub-pago desde matrizes no dito Primeiro Mundo. E, então, fazer de conta que os consumidores norte-americanos são, ao fim de tudo, atendidos ao telefone por norte-americanos e não por jovens indianos sub-pagos e treinados às pressas em Mumbai ou Calcutá. E, ainda aqui, o que aguça nos indianos é o real desejo de se converterem em...americanos. Quer dizer, a possibilidade de passar, via língua inglesa, de Bollywood a Hollywood.
De fato, muito pouco restou enquanto pro-jecto a um europeu num país qualquer da União Europeia [à excepção talvez da Alemanha, onde o pro-jecto nitidamente rima com dominação], além de dizer: “pelo menos eu não nasci na Índia”. Atualmente, ser europeu e receber essa chancela, esse prêmio de consolação, já parece ser alguma coisa, junto com haver passado pouco mais de meio-século sem deflagrar guerras de escala continental ou mundial. Por enquanto esse tem sido, aliás, o grande feito da União Europeia enquanto projecto. Vamos até onde vai dar a atual crise com seus componentes crônicos, e é tratar do imponderável.
E há o futuro, sem o qual ninguém vive. E todo ser humano precisa de algum senso de grandeza. E de sentir-se parte da construção dessa grandeza. Uma das poucas casas que um homem tem é a sua geração: o sentir-se um pouco mais ao abrigo entre aqueles que passaram por experiências e eventos mais ou menos comuns. E, se o mundo tem globalizado esses eventos, é de se supor que certo senso de experiências comuns também se tenha internacionalizado. E uma referência a elas pode suscitar empatias e impulsos de companhia.
Ora, o paradoxo, aqui, é que cada vez mais indianos adentram nas classes-médias e perigam, no correr dos anos, levar padrões de vida similares aos europeus em termos de conforto material. E com isso, junto com os chineses e outros emergentes, levar a um paroxismo a exploração dos recursos naturais do planeta. E, convenhamos, eles têm todo o direito de aspirarem um padrão de vida confortável. Quem não o tem?
Muitos – mas ainda uma flagrante minoria -  já vão além: vivem igual ou melhor que a média dos europeus. Mas estes são uma elite de empreendedores, líderes do processo: políticos, empresários de grupos transnacionais, funcionários comissionados, especuladores da bolsa, profissionais liberais bem sucedidos, et alli. Em geral, não são nem mais, nem menos corruptos que seus pares ocidentais. Mas são fortemente taxados como tais. E assim postos na mídia. O homem mais rico do Reino Unido nos diascorrentes é, por sinal, um bilionário indiano. Talvez se comparado à lisura de um Berlusconi ambos não saiam exatamente limpos da revista. E, no entanto, o Ocidente no momento de criticar os desmandos políticos e a corrupção no dito terceiro-mundo, bem que esquece de seus Berlusconis ou de seus banqueiros de Wall Street.
Então, a partir de Sontag, pode-se propor algumas outras questões. E quem sabe a violenta alteridade cultural presente nas instigantes narrativas de V. S. Naipaul deva ser observada como apenas uma das faces da moeda. E que ao calar sobre a hedionda outra face, sobre a coroa dos imperialismos, que trouxe até Trinidad, nas costas da América do Sul, um punhado de indianos para operar melhor, sob gerência britânica, as plantações de cana-de-açúcar, movidas por braços africanos, talvez Naipaul nos indique à imaginação o suplementar as lacunas desses horrores.
Aliás, o trecho em que Sontag menciona Machado de Assis, em “O Mundo Enquanto Índia”, bastante esclarecedor, nos dá mostras da perspicácia, da astúcia de alguém que reconhece-se no especioso centro de um império equivocado:

But, as many have observed, globalization is a process that brings quite uneven benefits to the various peoples that make up the human population, and the globalization of English has not altered the history of prejudices about national identities, one result of which is that some languages – and the literature produced in them – have always been considered more important than others. An example. Surely Machado de Assis’s The Posthumous Memories of Brás Cubas and Dom Casmurro and Aluísio Azevedo’s The Slum, three of the best novels written anywhere in the last part of the nineteenth century, would be as famous as a late-nineteenth-century literary masterpiece can be now had they been written not in Portuguese by Brazilians but in German or French or Russian. Or English. (It is not a question of big versus small languages. Brazil hardly lacks for inhabitants, and Portuguese is the sixth most widely spoken language in the world.) I hasten to add that these wonderful books are translated, excellently, into English. The problem is that they don’t get mentioned. It has not – at least not yet – been deemed necessary for someone cultivated, someone looking for the ecstasy that only fiction can bring, to read them.

[Porém, como muitos observaram, a globalização é um processo que traz resultados um tanto desiguais para os vários povos que compõem a população humana, e a globalização do inglês não alterou a história dos preconceitos sobre identidades nacionais, cujo corolário é o de que algumas línguas – e a literatura produzida nelas – têm sempre sido consideradas mais importantes que outras. Um exemplo. Está claro que Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, de Machado de Assis, assim como O Cortiço, de Aluísio Azevedo, três dos melhores romances escritos ao final do sec. XIX, deveriam ser tão famosos quanto qualquer obra-prima desse tempo, não houvessem sido escritos em português por brasileiros, mas em alemão, francês ou russo. Ou inglês. (Aqui, não é uma questão de línguas grandes contra pequenas. O Brasil não tem poucos habitantes, e o português é o sexto idioma mais falado no mundo). Apresso-me a acrescentar que essas obras estão traduzidas, esplendidamente, em inglês. O problema é que elas não são mencionadas. Que elas não foram propostas – pelo menos até o momento – como necessárias para alguém cultivado, alguém em busca do êxtase que só a boa ficção pode ofertar.]

Susan Sontag teve a lucidez e a coragem de nos indicar que quem não domina o inglês em nosso tempo é não só uma sorte de analfabeto, mas também de excluído do mundo digital. E, por outro lado, quem só o domina (ou apenas se obceca por esse domínio) é, possivelmente, um analfabeto ainda mais rematado.

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[1] Entenda-se, aqui, a tradução enquanto tarefa, enquanto prática. O resultado do ato de traduzir. O que lemos, quando tomamos o texto de uma autor escrito inicialmente em outro idioma. Pois é até inferível que o tremendo grau de ideologização movido por uma necessidade de teleologizar tudo em volta como justificação de um sistema de pensamento que não se mantém de pé por mais de uma década, teria que deixar suas marcas também na teoria da tradução como a boca do bebê nos mamilos da mãe.