quarta-feira, 9 de maio de 2012

Interdito, Voz

Barnett Newman

O interdito é parte integrante de qualquer cultura. Na cultura judaica há alguns interditos vinculados a questões de representação – como o da representação da divindade por imagens - que recorrem com metronímica frequência. E causam mesmo uma inflexão no fluxo em que se propõe o argumento. 
Não menos intrigantes, como todo interdito, essas questões da representação devem também ser entrevistas por suas funções retóricas: lançar uma acolhedora sombra de mistério e reverência, silêncio e contemplação, onde anteriormente só havia a cegueira da luz do meio-dia. A aspereza lógica. Ou palavras até dizer chega.
Esses interditos, como não poderiam deixar de ser, vazam para as teorias mais ou menos laicas de autores judaicos como Benjamin ou Flusser. Em Benjamin, um interdito está presente, por exemplo, na sua teoria da tradução. Precisamente quando ele veda a possibilidade de se traduzir a partir da tradução; abrindo, no entanto, uma única exceção entre todos os textos: as Escrituras.
Em Flusser, há um interdito logo no início de sua teoria do exílio. (E seria mesmo necessário lembrar o quanto exílio e tradução andam de mãos dadas?):

Este ensaio não irá explorar nem as conotações existenciais tampouco as religiosas do conceito em torno da palavra exílio. No entanto, devemos manter em nossas mentes a história cristã da expulsão do paraíso e da entrada no mundo, o místico relato judaico do exílio do espírito divino no mundo, e a versão existencialista do homem como um estranho no mundo. Todas essas histórias devem ser mantidas no fundo de nossas mentes, sem ser verbalizadas. Pois a intenção, aqui, é a de interpretar a circunstância do exílio como desafio à criatividade.
[Flusser, “Exílio e Criatividade”, grifos nossos]

Esse interdito à expressão, essa proibição da fala, parece tanto mais solene e ritual- na tradução como no exílio - quanto uma fórmula de apelo a certa pobreza de meios que não hesita em não adentrar na seara, em abster-se de uma questão outra - muito mais sagrada e complexa: a do(s) nome(s) de Deus.
Os que têm experiência no estudo dessas questões de representação e mística, tal como, entre outros Auerbach, Scholem, Huizinga, Levinas ou Celan podem sentir na pele a carga poética dessa mudez, desse interdito, ainda quando tomados exclusivamente de um ponto de vista laico.
E até mesmo porque em poucas situações retóricas há tanta voltagem poética como quando uma expressão da tradição religiosa é recebida em respeito, e ecoa – mais ou menos em surdina ou sombra – no vão de um discurso laico. Isso é, de resto, um efeito difícil de atingir em português. E não deveria ser, pois em português passou-se uma das tradições mais brilhantes do pensamento sefardí, e que desagua em ninguém menos que Espinoza. Bento Espinoza, para quem o português era a primeira língua - e, logo, a língua-urgente; ou seja, a língua em que ele efetivamente "pensava". E, no entanto, certo anti-clericalismo raso, empedernido (que bebe na mesma fonte do positivismo que pôs "ordem e progresso" em nossa bandeira) infiltrou-se de tal forma em nossos esquemas de pensamento, que valorizamos Espinoza apenas na medida em que ele é recomendado por um pensador - aliás, muito menor do que ele - que é Deleuze. 
Ora, deve-se ler Espinoza - a exemplo de Vieira ou Gracián ou Pascal - porque sua obra é um manancial de boas ideias sobre vários aspectos da vida e da experiência humanas. E não por ser prescrito, programaticamente, por um importante filósofo contemporâneo.  Espinoza não é apêndice de ideias marxistas, como em Marilena Chauí ou cabide para um pensamento da pós-estrutura, como em Deleuze. Espinoza merece a melhor das chances: ser lido pelo que efetivamente pensa e diz. E não a partir de como querem fazer seu pensamento e sua expressão soar. Ou seja, tão-só pô-lo a serviço de uma postura política conjunctural e imediata. Falar de Espinoza e não ressaltar que foi provavelmente um dos maiores conhecedores da Bíblia de seu tempo, por exemplo, é  jogar seu pensamento à indigência e à ganância imediatista de teses e teleologias.  Elas próprias desprovidas de qualquer humor ou ludismo. O mesmo ludismo presente no espírito menino do Espinoza que, já adulto, se divertia em seu pequeno aposento pondo aranhas, moscas e vespas para guerrear. 
Intérpretes, aliás, passadas certas etapas de prospecção e algum aprendizado, só atrapalham. Ainda mais hoje, quando instrumentalizam de forma rasa o pensamento de um autor, que merece ser lido diretamente. E apenas para que esse pensamento não seja mais que notas de rodapé em textos, nos quais, não só não há nenhum interdito, como nada de realmente novo é proposto. 

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