domingo, 9 de novembro de 2008

Panorama de manhãs sentidas com ênfase de idade pouca


[s/i/c]


O arquiteto no telhado - uma reminiscência


É típico de nossa mentalidade voltada, às quatro patas, para consumo, que qualquer forma de nostalgia tenda a ser entrevista com suspeição. Como uma espécie de confissão de fraqueza. É como se a revelação de certo apego pela realidade física que nos cerca, por seu zelo ou conservação, fosse o indício de uma falha moral. De uma sorte de pecado. Afinal, temos de dar tudo ao presente. De viver para "o novo". E o espaço físico que nos cerca, de tão remodelado e remodelável, necessitasse ser exaltado apenas pelo que é no presente. Não mais. E qualquer forma de desmanche ou reforma devesse, então e inevitavelmente, ser vista como necessária, em nome de comodidades e confortos recentes.

Na contramão disso, no entanto, tenho saudade de varandas, paredes, janelas, jardins e quintais que me cercavam em outros tempos. Quando criança, costumava subir no telhado da casa de meus pais. E contemplar lá de cima, os quintais e telhados das casas à volta. Era como se algo que estivesse dentro daquele pequeno sótão aos fundos da casa que dava para a Rua João Carvalho me dissesse respeito. Fosse virtualmente habitado por mim, de algum modo difícil de exprimir. Ou como se, sem ter brincado, tivesse brincado à sombra da densa mangueira que havia no quintal da casa de trás, que dava para a Rua Carlos Vasconcelos. Lá, bem ali, onde moravam avós cujos netos já eram crescidos e não mais brincavam à sombra de mangueiras.

De meu posto avançado de observação, próximo à junção das águas, à cumeeira, desfrutava de uma sensação aeronáutica, de ar livre. E era quase como planar sobre o bairro a bordo de um daqueles teco-tecos que o sobrevoavam mais rentes, de manhã cedo, no rumo do aeroclube, bem mais distante, a sul. E, quando mais adolescente, certa sensação de que a garota de meus sonhos podia estar atrás daquela janela de sótão, acima de uma garagem, sobre a qual, ao romper da manhã, se esquecera uma luz acesa, que esmaecia, quando o dia encontrava seus contornos mais vivos. A janela, de vidro corrido, um pouco entreaberta, as cortinas cerradas, oscilando à brisa.

Não entendo quem não tenha vivido algo ao menos próximo disso. Ou quem não possua uma ligação mais densa com o espaço à sua volta. Espaço em seu senso mais rasteiro. O da paisagem que nos envolve ao longo dos anos. Não de uma forma casual. Mas intensa. Sentindo cheiros. Divisando formas, superfícies, reentrâncias, revestimentos, volumes, texturas. Traçando relações de equivalência, medida e substância.

Na biblioteca de meu pai, havia alguns livros de arquitetura, com plantas baixas e croquis de residências. As soluções eram proto-modernistas. Algo da arquitetura da década de 50. Um pouco pré-Brasília. Um tanto parecidas com a de nossa própria casa, então. Havia algo que via lá de cima do telhado que alongava a leitura desses livros. Eis porque acho que sou, entre algumas outras opções descartadas, um arquiteto frustrado. Um arquiteto que não passou da contemplação das outras casas a partir do teto da casa em que passou a infância. Casas que, vistas ali de cima, de um ângulo tão diverso do chão, eram uma espécie de ilustração ao vivo, em cores, no ar mais livre, sob a profusa luz que só em Fortaleza, dessas plantas baixas vistas nos livros. Dessa vocação para fruir espaços.

Era como observar um feudo. Digo isso, porque estudávamos Idade Média, na escola, e era algo que me empolgava. Agora, um feudo, onde eu, de meu posto elevado de guardião ou senhor, pressentisse uma igualdade que independia da tirania de meu olhar. Da utopia de que aquelas manhãs não acabassem nunca, com seus quintais, fruteiras, sótãos, varandas, e aqueles sonhos de menino, que vamos largando aos poucos nos limiares dos tempos. Nas concessões que precisam ser feitas em nome da vida séria, profissional, que se tem de ganhar para se manter neste mundo completamente avesso a devaneios de tal sorte.

Obviamente, hoje não subo mais em telhados. Mas, ao menos em imaginação, me lembro daquelas manhãs onde havia uma selvageria de percepção em tudo. Uma vontade de devassar o mundo com os olhos. De olhá-lo de uma outra perspectiva. Pois ele parecia reter alguma ordem, algum desenho lá de cima. Um ordenamento, um desenho, que era impossível apreender ao nível do chão. Um diagrama que era preciso reter comigo, ao modo de um mapa. Até como forma de pôr em roteiro todos os sonhos mais improváveis. E não só para mim. O sol caindo ainda suave sobre as fieiras de telhas das casas à volta. O vendedor de chegadindo brandindo o triângulo. O vendedor de doce americano batendo no tabuleiro. O remendão gritando - "quer conserto?" - em seu refrão distorcido, pelo quarteirão adiante.

3 comentários:

  1. Até o ano passado subia nos telhados aqui de casa, agora a cerca elétrica do vizinho dificulta. Em Piracicaba foram muitos, seja atrás de pipas ou por pura contemplação.

    ResponderExcluir
  2. ñ tinha dúvidas, gabriel.

    aliás, é exatamente por isso q., desde o 'aprazível', estamos trabalhando nesses projetos. ou seja, pela pós-gradução de observar o mundo a partir dos telhados. estou pensando até em propor uma disciplina nova na faculdade. um novo ramo do conhecimento humano: a belvedéria. ou seja, o aprendizado do mundo a partir dos telhados.

    abs.

    ruy

    ResponderExcluir
  3. De passagem por aqui, relendo textos antigos, copiando alguns e enviando para minha filha...

    Lindo esse post; eu cheguei a levar coberta para passar a noite..

    eliane

    ResponderExcluir