quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Fábula sobre a fala: voltar para as palavras, como se volve sempre ao amor


Barnett Newman, The Voice, 1950


A fala da aldeia

Era uma vez, o caçador havia passado longo termo ao largo de sua velha aldeia. Errara por terras frias, muito verdes. Mas sem dunas e desertos à beira-mar. Muitas vezes, sem sequer beira-mar e entreluzes.

Poucos dias depois do retorno. Talvez ainda vestido um tanto ao modo das terras estranhas, ele estava no ponto do ônibus. E então chegou uma senhora e disse-lhe:

-Ei, meu filho, você sabe onde fica a Delegacia da Mulher, héin? A Delegacia da Mulher?

O rosto da mulher que perguntava pela Delegacia da Mulher era descarnado, sulcado por fundas rugas. Um semblante em desfiladeiro esculpido. Sofrimento grafado na carne. Tão diferente dos rostos neutros, seguros, cheios de si - e, no entanto cheios também de certo ressentimento - que mesmo os pobres das terras frias e verdes possuem.

Não havia polidez alguma, "por favores", "por obséquios", "se não forem pedir demais". Só esse "ei". O vocativo não era "senhor", "moço". Mas um "meu filho" em que a última sílaba era toda tragada. Não como se traga o suculento bife, mas ao modo de papa. E também havia essa redundância de parte do predicado - como se tudo devesse ser dobrado para fazer sentido. Fazer sentido em meio a esse acento anasalado. Um esforço para tornar real algo que semelhava provir de um impasse entre virtualidade e confirmação. E, embora sincera gratidão houvesse, também não havia "obrigados".

Só então, o caçador não teve dúvidas. Tinha voltado, de fato, à sua aldeia.

Tinha voltado.

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