quinta-feira, 7 de maio de 2009

Janelas existiam para esfriar tortas


Carl Barks, década de 80


Voltar a Patópolis

por Demitri Túlio [publicado na coluna Das Antigas, O Povo, em 25.08.07]


POR TEMPOS FREQUENTEI Patópolis. Ficava em qualquer esquina onde tivesse uma banca. Entrava por lá e me perdia, tardes e tardes, perambulando por suas praças coloridas e ruas de calçamento. Patópolis recendia a páginas novas de revistinha recém-chegada. Um aroma de pão quente com manteiga desfazendo-se no café preto ao mergulhar o pão no copo.

CHEIRAVA TAMBÉM A TORTA de maçã da vovó Donalda, esfriando na janela. Pensava eu, que janelas e parapeitos existiam pra esfriar tortas. Porém, maçãs não nasciam lá em casa. Goiabeiras. A não ser que padecêssemos da garganta e nos atacassem com Bezetacil pra desinflamar as amídalas de sorvete. As argentinas vinham como remédio e desejo canelau. Enroladas em seda roxa de encomenda e infância.

VOVÓ DONALDA NÃO ERA minha avó, mas desejava ir nas férias ao sítio dela e topar com algum urso na Aratuba. Acreditava que lá existiam macieiras, pés de amoras doces e morangos. Tudo verdinho, e no inverno nevava. Bom pra brincar de fazer boneco de neve quando chegasse o Natal e encontrar Huguinho, Zezinho e Luizinho com um gorro de Noel.

EM PATÓPOLIS, COMECEI a encafifar, só havia sobrinhos, tios, avós. Nem pai, nem mãe. Patos órfãos e psicologicamente perturbados. Um unha-de-fome, outro esquizofrênico, um que se achava sortudo. Cachorros patetas, rato metido a herói e dono de um Pluto, cavalos mal resolvidos, papagaios malandros e um periquito inventor.

AS FEMININAS, COITADAS, eram chatas e titias. Namorados que nunca se decidiam e o tempo passando em almanaque. Toda moça que virava coroa, pra mim, era Margarida. Minnie, Clarabela. E, engraçado, geralmente tinham uma bundona, eram gulosas e combinavam o laço vermelho do cabelo com a calçola de bolinha.

MINTO. OS IRMÃOS METRALHAS [gostava deles] tinham mãe. Malvada e boa. Mas o Mancha, o João Bafo-de-Onça, o Ranulfo, a Madame Mim, a Maga Patalógica e o Patacôncio, não. Nem o Morcego Vermelho, o Super-Pateta [e o super-amendoim], o Super-Pato ou o Lampadinha. Nem uns meninos da minha rua.

ANDEI COM ESSE PESSOAL por muito tempo. Brinquei. Foram eles que me ensinaram a ler. Depois fui apresentado a uma boneca de pano que falava, um sabugo de milho que decorava a tabuada e um vidro azul que pensava. Vez ou outra, volto a Patópolis. E nunca achei que o Pato Donald é gay (se fosse não teria problema) ou que o capitalismo é a melhor coisa da infância.


Demitri Túlio



Nota- sou fã de carteirinha da coluna Das Antigas, de Demitri Túlio. Este texto, em particular, é um que invejo—no melhor sentido—não haver escrito. Acho que há uma sabedoria nessa arqueologia de expressões, palavras, gestos e até objetos que eram tão característicos de um determinado passado recente. Há em Das Antigas uma espécie de inventário do imaginário que povoava a mente dos fortalezenses nas últimas décadas. Em especial, a mente das crianças e dos adolescentes que cresceram ao longo dos 70 e 80. E tudo pinçado com uma argúcia muito própria. Em geral, entendo que tanto o Diário quanto [mais ainda] O Povo possuem um excesso de colunistas. Mas a Das Antigas é uma coluna imprescindível dentro da economia estética de nosso jornal mais antigo. Para saber mais sobre Carl Barks, o mago criador do Tio Patinhas, clique AQUI ["O Borges dos quadrinhos"].




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Um comentário:

  1. Mesmo eu, nascida nos finalmentes dos 80, tenho benquerença pelas personagens de Carl Barks. Influência de pai. Também volto a Patópolis, mas quando vou pro interior, onde deixei a coleção de revistinhas.

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