segunda-feira, 4 de maio de 2009

Uma e a mesma coisa


Pieter Brueghel, o Velho, Paisagem com a queda de Ìcaro, sec. XVII




Será o Benedito?

Spinoza – a life, por Stephen Nadler, Cambridge University Press, 407 ps.

O enredo começa antes. Quatro gerações. Em 1547, D. João III de Portugal, um tanto na contramão do papado, oferece amplas condições para o estabelecimento da Inquisição. Os judeus portugueses aceleram a migração para os Países Baixos. A meta inicial é Antuérpia, onde controlam o comércio de especiarias do Oriente, do açúcar brasileiro e das resinas africanas. Posteriormente o eixo se desloca para Amsterdã.
Mais ricos, cultos, cosmopolitas que os judeus do leste europeu (ou asquenázi), os marranos portugueses também se destacam pelo alto valor que atribuem à educação, às profissões liberais – especialmente a medicina –, e às artes. É neste ambiente que nasce e se educa Bento Espinosa (1632-1677).
A língua falada em casa era o português. Espinosa jamais escreverá com plena fluência em holandês. Comporá suas principais obras – como a Ética e o Tratado Teológico-Político – em latim (o inglês de então). Já adulto, Espinosa dirá numa carta: “eu teria preferido escrever na língua em que fui criado; quem sabe poderia expressar melhor meus pensamentos”.
A biografia Spinoza – a life (Espinosa – uma vida), de Stephen Nadler, segue – especialmente no início – um plano arriscado. Sabe-se muito pouco da vida de Espinosa em geral. Mas sobre sua infância e anos de formação não se sabe virtualmente nada.
Como representar esse período? O método de Nadler segue pelo desvio e pela intuição. Uma aguda intuição histórica. Via de regra, a primeira metade da vida de Espinosa nos chega bastante obliquamente. A maturidade um pouco menos, uma vez que passível de ser rastreada, via cartas.
Ambas são cristalizadas por um vigoroso exercício de reconstrução de época. Ou seja, pelas vidas de outros ao redor de Espinosa: familiares, amigos, professores, colaboradores, correspondentes, editores, tradutores, divulgadores, desafetos, protetores, mecenas, etc.
Nadler monta seu livro a partir de uma diligente cartografia de suposições. Expressões como “é provável”, “não seria absurdo supor”, “não é difícil imaginar”, “há terreno bastante para crer”, estão por toda parte. Tantas ressalvas podem nocautear qualquer biografia.
Não é o que acontece. Com sobras e muita destreza no manejo das fontes históricas, Nadler nos inteira do percurso deste homem de invulgar independência de pensamento. Desde excomunhão (sherem) pelas autoridades rabínicas até sua morte aos 44 anos – já consagrado como um dos maiores filósofos do sec. XVII – muita água corre pelos canais de Amsterdã.
Há também uma acessível – mas não rala – introdução à sua filosofia. Espinosa identificava Deus à Natureza, é verdade. Mas não de uma forma vulgar. Empenhou-se para assegurar a primazia do secular sobre o teológico na política e foi um crítico contumaz do que havia de superstição nas religiões institucionais. Entendia que a sabedoria maior do ser humano passava pela moderação das paixões – algo que tomou como base para sua própria existência. Fez parte de uma república internacional das letras que buscou a todo custo divulgar a filosofia de Descartes e os resultados das novas pesquisas científicas. Correspondeu-se com intelectuais do porte de Leibniz – que o admirava. E chegou a recusar um posto de professor na prestigiosa Universidade de Heidelberg. Embora reservado e cauteloso, interferiu decisivamente no destino dos Países Baixos que conheciam, então, sua época áurea e uma grande efervescência política.
A frugalidade, o desapego material de sua vida doméstica é tocante. Ele sustentava-se recortando e polindo lentes para aparelhos de precisão (telescópios e microscópios). Algo menos simples do que parece. A tarefa exigia uma imensa destreza manual e paciência, além de sólidos conhecimentos das mais recentes pesquisas em ótica e mecânica. A excelência das lentes que confeccionava foi louvada pela nata dos cientistas europeus de então. Podia discorrer longas horas sobre questões científicas e chegou a escrever um estudo sobre o arco-íris.
Seus passatempos, em casa, eram de uma puerilidade de todo insólita. Ele “gostava de agrupar aranhas e, de um ou de outro modo, pô-las em luta, ou jogar moscas em suas teias, criando ‘batalhas’, que tanto o entretinham que ele caía no riso ao observá-las”.
O livro de Nadler sobre Espinosa também traz muitas referências ao Brasil. Basta lembrar que Espinosa foi contemporâneo da Ocupação Holandesa no Nordeste e que uma próspera comunidade judaica estabeleceu-se à época por cá – especialmente no Recife, onde se ergueu a primeira sinagoga das Américas. Rabinos de renome como Aboab da Fonseca, vindos da comunidade “portuguesa” de Amsterdã, fixaram-se no Recife à época.
Quatrocentos anos depois há no Brasil um crescente interesse pelo pensamento de Espinosa. Marilena Chauí lhe dedicou um voluminoso ensaio intitulado A Nervura do Real. E, por tabela, Espinosa é leitura obrigatória para todo deleuziano que se preza.
Mas quanto à biografia há uma clara contradição no discurso de Nadler. A certa altura ele reitera, ainda que indiretamente – como usa ser seu estilo – que não está escrevendo uma hagiografia. Difícil acreditar. Afinal, qualquer relato sobre um homem dotado de tanta integridade, virtude, desprendimento, altruísmo, sabedoria e independência de pensamento, acaba por recair no discurso sobre uma vida exemplar.
E, pensando bem, não há nada de errado nisso. Ao longo de sua vida, Espinosa modificou duas vezes seu prenome. Adotou o Baruch judaico em substituição ao Bento português quando entusiasmou-se com seus progressos no aprendizado do hebraico. Ao se afastar do judaísmo, optou pelo latinizado Benedictus – à exemplo de Erasmus, um nome que convinha para alguém disposto a dialogar com o cosmopolitismo filosófico do sec. XVII.
Todos três nomes, no entanto, querem dizer uma e a mesma coisa: abençoado.




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