sexta-feira, 1 de maio de 2009

Tudo que se afasta demais da fala, falha


[s/i/c]



O concretismo que não valsa na boca

-pequeno desvio sobre tradução


Em literatura, tudo que se afasta demais da fala, falha. Sobre a tradução da Bíblia, Frank Kermode inicia certo questionamento dispondo até que ponto se pode contaminar a língua de chegada com a de partida sem torná-la uma lingua-franca, sem atacar seu prosaísmo de língua. Aqui no Brasil, os poetas concretistas (Haroldo bem mais que Augusto) – talvez esteados nas rutilantes teses de Benjamin (que, no fim, são mais teoréticas que aplicáveis na prática) – às vezes, criam uma lingua-franca, que tanto se distancia do português coloquial a ponto de parecer um idioma mais estrangeiro, para nós, que o espanhol, que o galego, que o catalão. Com a desvantagem de conter soluções tão artificiosas e rococós que jamais passarão pela boca de um falante do português. Em Portugal, no Brasil, em África, em Goa, em Macau. Seja em que Timor for. Em algum dialeto exequível (como exequível é o dialeto "criado" por Guimarães Rosa). Por sua vez, com todo seus enviesos e inversões, as traduções de Homero feitas pelo maranhense Odorico Mendes são engenhosas. Estão "no" português e dão de de dez a zero nas de Haroldo de Campos. E Haroldo bem devia saber disso. De outro modo, ao traduzir o Eclesiastes, Haroldo traduz por "névoa-nada" o que usualmente é traduzido por "vaidade". Por que "névoa-nada"? Para apontar para a raiz da palavra em hebraico? Mas 'vanitas', em latim, termo consolidado pela tradição já dispõe, na raiz etimológica, esse senso de 'vazio'. É a mesma raiz de onde brota o termo 'vão', que quer dizer 'oco', 'vazio', 'informe' - aquilo que, portanto, é preenchido só pelo vento. Aqui, inclusive em se tratando de espaço arquitetônico: 'um vão de 50 metros'. Por que, então recorrer ao composto 'névoa-nada', a não ser por um preciosismo vão?

Tss, tss - como dizem as revistas em quadrinho (ou as 'bandas desenhadas', como querem os portugueses), numa onomatopeia bem mais ao alcance da boca de todos que o redundante 'névoa-nada' de Haroldo.

* * *


2 comentários:

  1. Essa tradução de vaidade por névoa-nada revela, na verdade, toda a vaidade do tradutor, que parece mais interessado em aparecer mais que o próprio texto.

    ResponderExcluir
  2. Eis que se pergunta depois de ler post e comentário:

    - Ney ou Ruy, qual o mais preciso?

    E o mundo responde:

    - Ambos. Ambos!

    ResponderExcluir