[s/i/c]
Jogo e direito
Vejamos essas duas passagens, em distintos pontos, de Homo Ludens, do medievalista holandês Johan Huizinga:
"O jogo autêntico possui, além de suas características formais e de seu ambiente de alegria, pelo menos um outro traço dos mais fundamentais, a saber: a consciência, mesmo que latente, de se estar "apenas fazendo de conta". [p.26 da tradução brasileira, feita por João Paulo Monteiro para a Ed. Perspectiva]
"A possibilidade de haver um parentesco entre o direito e o jogo aparece claramente logo que compreendemos em que medida a atual prática do direito, isto é, o processo; é extremamente semelhante a uma competição, e isto sejam quais forem os fundamentos ideais que o direito possa ter". [p.87]
De fato, o julgamento, no tempo dos velhos rábulas em cidades do interior, assumia ares de circo. As pessoas iam assisti-los, como se ia ao teatro, antes do surgimento do cinematógrafo. Assim como na Idade Média ou pouco depois, ia-se assistir uma execução de morte como a um espetáculo público. Um "divertimento". Hoje assistimos tudo isso por meio de imagens. No cinema de ficção, nas reportagens adocicadas e breves. Não vemos a corda apertando o pescoço, o machado separando a cabeça do resto do corpo, a guilhotina decepando o colo, as balas varando o tórax. O sangue esguichando do corpo. A não ser por trucagens e efeitos especiais, que sabemos ser efeitos e especiais. A morte deixou de ser real. Seu rosto foi reduzido a pó. Em vez da intervenção direta do verdugo encapuçado, com o machado, com a corda, fazendo o outro morrer por seus músculos, temos algum anônimo que pressiona um botão para o corpo do condenado, sentado numa cadeira, contorcer-se com a passagem de uma carga voltaica. Tudo ficou mais limpo. Asséptico. Mais sem rosto ou jogo. Imagine-se as câmaras de gás nos campos de extermínio. De outro modo, essa arguta aproximação de jogo e direito, feita por Huizinga, talvez explique o porquê de gente ligada profissionalmente ao direito ser tão afeita a disputar por tudo. Como se vida, mais que um jogo, fosse um grande processo, onde é necessário nutrir-se de estratégias. Ao invés de alegrias, cautela e alguma boa-vontade.
Cronistas contam de Padre Mororó (Gonçalo Inácio de Loiola Albuquerque e Melo). Somente algumas semanas depois de saber da condenação à morte, trancafiado na Fortaleza de N. S. da Assunção, ele foi conduzido ao que é hoje o Passeio Público para ser executado. Foi no dia 30 de abril de 1825. Tratava-se de um homem de meia-idade. Mas ainda com a cor de seus cabelos. Ao sair à rua, todos os circunstantes se depararam com um ancião, cujos cabelos haviam ficado completamente grisalhos no espaço dessas poucas semanas.
Nossos sentidos diante de coisas assim, hoje só testemunháveis vicariamente, pelos meios de comunicação ou pela ficção do cinema, também se tornam mais e mais grisalhos numa velocidade muito maior e muito menos humana que no caso do malogrado líder da Confederação do Equador.
"O jogo autêntico possui, além de suas características formais e de seu ambiente de alegria, pelo menos um outro traço dos mais fundamentais, a saber: a consciência, mesmo que latente, de se estar "apenas fazendo de conta". [p.26 da tradução brasileira, feita por João Paulo Monteiro para a Ed. Perspectiva]
"A possibilidade de haver um parentesco entre o direito e o jogo aparece claramente logo que compreendemos em que medida a atual prática do direito, isto é, o processo; é extremamente semelhante a uma competição, e isto sejam quais forem os fundamentos ideais que o direito possa ter". [p.87]
De fato, o julgamento, no tempo dos velhos rábulas em cidades do interior, assumia ares de circo. As pessoas iam assisti-los, como se ia ao teatro, antes do surgimento do cinematógrafo. Assim como na Idade Média ou pouco depois, ia-se assistir uma execução de morte como a um espetáculo público. Um "divertimento". Hoje assistimos tudo isso por meio de imagens. No cinema de ficção, nas reportagens adocicadas e breves. Não vemos a corda apertando o pescoço, o machado separando a cabeça do resto do corpo, a guilhotina decepando o colo, as balas varando o tórax. O sangue esguichando do corpo. A não ser por trucagens e efeitos especiais, que sabemos ser efeitos e especiais. A morte deixou de ser real. Seu rosto foi reduzido a pó. Em vez da intervenção direta do verdugo encapuçado, com o machado, com a corda, fazendo o outro morrer por seus músculos, temos algum anônimo que pressiona um botão para o corpo do condenado, sentado numa cadeira, contorcer-se com a passagem de uma carga voltaica. Tudo ficou mais limpo. Asséptico. Mais sem rosto ou jogo. Imagine-se as câmaras de gás nos campos de extermínio. De outro modo, essa arguta aproximação de jogo e direito, feita por Huizinga, talvez explique o porquê de gente ligada profissionalmente ao direito ser tão afeita a disputar por tudo. Como se vida, mais que um jogo, fosse um grande processo, onde é necessário nutrir-se de estratégias. Ao invés de alegrias, cautela e alguma boa-vontade.
Cronistas contam de Padre Mororó (Gonçalo Inácio de Loiola Albuquerque e Melo). Somente algumas semanas depois de saber da condenação à morte, trancafiado na Fortaleza de N. S. da Assunção, ele foi conduzido ao que é hoje o Passeio Público para ser executado. Foi no dia 30 de abril de 1825. Tratava-se de um homem de meia-idade. Mas ainda com a cor de seus cabelos. Ao sair à rua, todos os circunstantes se depararam com um ancião, cujos cabelos haviam ficado completamente grisalhos no espaço dessas poucas semanas.
Nossos sentidos diante de coisas assim, hoje só testemunháveis vicariamente, pelos meios de comunicação ou pela ficção do cinema, também se tornam mais e mais grisalhos numa velocidade muito maior e muito menos humana que no caso do malogrado líder da Confederação do Equador.
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