Detalhe da fachada do prédio do Instituto do Ceará
[foto: Ruy Vasconcelos, 2008]
Uma mais
- flanando por ruas e rastros
Hoje, mais uma incursão pelo Centro. O desolamento da Praça Cristo Redentor ao nascer do sol. Caminhada entre velhos armazéns no entorno do Centro Dragão do Mar. A estátua de Nepomuceno, com a batuta em uma das mãos, certo gesto maneiro na outra, e que parece estar enjaulada por um cacho de mastros de um lado e por um canteiro suspenso do outro, adiante do belo prédio da Secretária da Fazenda. Um edifício profusamente adornado, onde cabeças de leões com as bocas abertas e os caninos à mostra, um tanto gastos, parecem aqueles velhos calvos que proferiam palestras no Liceu.
Chega-se ao quintal do Paço, com suas escadarias. D'antanho, percorridas por prelados e monsenhores de meias roxas. Há algo de solene nelas. E eles atravessavam uma porta de caixilho denso, pesada e barroca, destoando da austeridade geral do sobrado para chegar ao ar livre. Como o ar devia ser mais livre ao se transpor aquela porta. Talvez a porta fosse uma metáfora.
O terraço do bispo reparte-se em três níveis, guarnecido por colunatas. Debruçava-se, então, sobre riacho e um ampla chácara a perder de vista, da qual uma talha restou por testemunho. O Paço segue em obras para reabrigar a sede da prefeitura. Vai-se colar a ele, sem lhe conceder qualquer perspectiva e escala, um prédio moderno, que mais parece um estacionamento vertical.
Tomar o café da manhã numa velha padaria, ali, cerca da Sé. Uma que me agrada pelo vasto espaço que há entre o batente de entrada e o balcão. E também gosto de certo ruído dos ventiladores martelando em piano, que, de algum modo, me remete para um instante agradável não sei bem onde ou quando. E todos aqueles casarões desfigurados das proximidades da Dom Manuel. Em ruas pouco extensas, como a Pedro Ângelo. Casarões que só seguem de pé graças ao improviso. Ao papelão no lugar da vidraça. Ao cordame com roupas íntimas na varanda onde antes samambaias, espreguiçadeiras e velhas senhoras debulhando terços, tricotando a alheia vida e fiscalizando a saúde das roseiras no jardim abaixo.
Mesmo onde antes as casas de beira-e-bica ainda resguardavam sua dignidade acanhada, hoje se vê aqueles anúncios com “n's” invertidos e má concordância: “vende-se gelados”, “aluga-se cômodos”, “pensionato familiar”. A pintura da fachada descascando. O império do limo metendo-se entre os ornamentos da platibanda que reverencia o Palácio da Alvorada, e os cinqüenta anos em cinco há mais de cinquenta anos atrás. A janela basculante vazada. E há aqueles arbustos que saltam da argamassa de velhos prédios de apartamentos como que atestando que condomínio e ficção já são só a mesma coisa.
E, então, a Escola Normal em que até a água da piscina parece destoar do alto avarandado que a circunda em “u”. Ou mesmo cujas colunas se assentam sobre um porão hoje fracionado em salas-de-aula. De modo que há um absoluto contraste entre o solene e altíssimo pé-direito das antigas salas-de-aula, de fato e de direito, ao longo do avarandado, e das que foram cavadas no porão, onde se pode, sem tirar os pés do chão, tocar o teto com os dedos da mão.
O olho se volta dali para toda presumível estrutura de ferro que está por trás do neo-gótico da Igreja do Pequeno Grande, na esquina do Colégio da Imaculada Conceição. Especialmente quando entrevista das janelas da cozinha da Escola Normal, pesadas, profundas, também endentadas nesse porão de internato suíço construído na linha do Equador.
Segue-se, então pelas ruas de comércio atacadista nas imediações da Governador Sampaio. Espécie de empório do grosso, do não retalho que, quando o Mercado Central ainda era, estava ali para provê-lo. Como um precursor das Centrais de Abastecimento. Mas sem a impessoalidade destas. Foi-se o Mercado mas a rua dos atacadistas permaneceu firme, impregnada de fealdade e olor de fumo em rolos.
Chega-se, assim, à Sena Madureira, antiga Rua Direita dos Mercadores. Quem propôs à rua esse nome devia ser um tremendo gozador, porque é uma das poucas ruas tortas do Centro de Fortaleza. Ela seguia o curso do riacho, que lambia os muros do velho Palácio do Governo. Ao atravessá-la, sobe-se os degraus para a Praça dos Leões.
No piso da praça, em reforma recente, um arquiteto mais bem informado fez demarcar com pedras de revestimento escuro as antigas linhas de bondes: a que saía detrás do prédio da Assembléia e a que passava ao largo da Igreja do Rosário. Os Leões é hoje uma praça agradável, em que vagabundos dividem os bancos com Rachel de Queiroz e o General Tibúrcio sob densos ficus. E à frente deles, a Igreja do Rosário às moscas. Como uma miniatura, uma caixinha de música. O sol da manhã coando-se por sua rosácea sem cor para banhar um coro que há muito não ouve corais. E, ainda assim, parece haver alguma história na porção do piso que ainda é de tábua corrida. Daquela mesma que estala, ainda quando um adestrado na arte zen de caminhar sobre o papel de arroz nela dá dois passos. História, sim. E em especial, na pedra do batente ao limiar, com seu peso de volume desgastado, poroso, que só se entrevê nos mosteiros de Olinda. Separado dela por uma viela de nada, o caco do antigo Palácio dos Governadores, que é hoje a Academia de Letras – os usos dos prédios são eloqüentes quanto à importância deles ao longo das décadas.
Atravessa-se esse quarteirões que se fizeram do loteamento da área do antigo palácio. Passa-se pela Praça da Polícia. Ao longo de toda decrepitude da Solón Pinheiro, casarões como os da antiga sede do Ibeu ou da ABCR rotos, semi-abandonados, mirando um Parque da Criança em que há de tudo – inclusive um lago em lama sob frondosos oitis – menos crianças. Que não se volte o olhar para a Praça do Coração de Jesus. O perigo é virar estátua de sal. E por uns mais quarteirões que nem é bom falar, se está de repente diante da Igreja do Carmo. Essa igreja, erguida em 1906, por irmandades que há muito já tem todos seus confrades debaixo da terra, encontra-se no centro de uma praça. É talvez a mais bela de Fortaleza. E, diante dela, há uma estátua em mármore da Virgem com o Menino Deus, e, à cimeira do pedestal, a palavra paz em latim.
Aliás, tudo recende a missa em latim fora e dentro da Igreja do Carmo. Do lado de fora, sobretudo nessas janelas redondas – chamadas óculos – que seguem acima de cada uma das portas no comprido do edifício. Dentro, um balcão de onde se assistia ao serviço como se num teatro. E dessa frisa, ao se olhar para fora, possível entrever, para além da copa dos oitizeiros, o sobrado do Instituto do Ceará, antigo palacete Jeremias Arruda, impecavelmente zelado.
Tornando o olhar para dentro, há o ferro forjado do púlpito, com a escadaria em espiral, para o pároco erguer-se acima dos fiéis quando do sermão. Isso no tempo em que o sermão era sermão. Outro coro ás moscas anos à fio domina a nave. E as estreitíssimas escadas que vão dar no campanário, com dois sinos, um a sul, outro a oeste das janelas em arco. E, na que se abre a norte, para a fachada, uma imagem de Nossa Senhora do Carmo de não mais de um metro, que, em tempos idos, devia contemplar um mar de telhados, quintais com cataventos e, ao fundo, o mar mesmo, ao invés do panorama cinza, enxovalhado, dos atuais edifícios do Centro.
Eu não entendo quem diz que Fortaleza não tem história. Mas também, claro, para se achar a cidade, é necessário estar com ela à mão. Possuí-la, com a gana de um garoto de dezesseis anos. De um namorado zeloso, cujo ciúme faz entrever que a beleza da prometida é apenas mais sutil. Ou mais exigente que as demais. Algo como aquele dito popular sobre amar o feio. Cavar a beleza por veios assim subjetivos. E, então seguir pisando leve sobre a calçada, de mãos dadas com ela, como num longo plano ao final de um filme de Chaplin. Daqueles que parecem prolongar-se para além do fade.
Chega-se ao quintal do Paço, com suas escadarias. D'antanho, percorridas por prelados e monsenhores de meias roxas. Há algo de solene nelas. E eles atravessavam uma porta de caixilho denso, pesada e barroca, destoando da austeridade geral do sobrado para chegar ao ar livre. Como o ar devia ser mais livre ao se transpor aquela porta. Talvez a porta fosse uma metáfora.
O terraço do bispo reparte-se em três níveis, guarnecido por colunatas. Debruçava-se, então, sobre riacho e um ampla chácara a perder de vista, da qual uma talha restou por testemunho. O Paço segue em obras para reabrigar a sede da prefeitura. Vai-se colar a ele, sem lhe conceder qualquer perspectiva e escala, um prédio moderno, que mais parece um estacionamento vertical.
Tomar o café da manhã numa velha padaria, ali, cerca da Sé. Uma que me agrada pelo vasto espaço que há entre o batente de entrada e o balcão. E também gosto de certo ruído dos ventiladores martelando em piano, que, de algum modo, me remete para um instante agradável não sei bem onde ou quando. E todos aqueles casarões desfigurados das proximidades da Dom Manuel. Em ruas pouco extensas, como a Pedro Ângelo. Casarões que só seguem de pé graças ao improviso. Ao papelão no lugar da vidraça. Ao cordame com roupas íntimas na varanda onde antes samambaias, espreguiçadeiras e velhas senhoras debulhando terços, tricotando a alheia vida e fiscalizando a saúde das roseiras no jardim abaixo.
Mesmo onde antes as casas de beira-e-bica ainda resguardavam sua dignidade acanhada, hoje se vê aqueles anúncios com “n's” invertidos e má concordância: “vende-se gelados”, “aluga-se cômodos”, “pensionato familiar”. A pintura da fachada descascando. O império do limo metendo-se entre os ornamentos da platibanda que reverencia o Palácio da Alvorada, e os cinqüenta anos em cinco há mais de cinquenta anos atrás. A janela basculante vazada. E há aqueles arbustos que saltam da argamassa de velhos prédios de apartamentos como que atestando que condomínio e ficção já são só a mesma coisa.
E, então, a Escola Normal em que até a água da piscina parece destoar do alto avarandado que a circunda em “u”. Ou mesmo cujas colunas se assentam sobre um porão hoje fracionado em salas-de-aula. De modo que há um absoluto contraste entre o solene e altíssimo pé-direito das antigas salas-de-aula, de fato e de direito, ao longo do avarandado, e das que foram cavadas no porão, onde se pode, sem tirar os pés do chão, tocar o teto com os dedos da mão.
O olho se volta dali para toda presumível estrutura de ferro que está por trás do neo-gótico da Igreja do Pequeno Grande, na esquina do Colégio da Imaculada Conceição. Especialmente quando entrevista das janelas da cozinha da Escola Normal, pesadas, profundas, também endentadas nesse porão de internato suíço construído na linha do Equador.
Segue-se, então pelas ruas de comércio atacadista nas imediações da Governador Sampaio. Espécie de empório do grosso, do não retalho que, quando o Mercado Central ainda era, estava ali para provê-lo. Como um precursor das Centrais de Abastecimento. Mas sem a impessoalidade destas. Foi-se o Mercado mas a rua dos atacadistas permaneceu firme, impregnada de fealdade e olor de fumo em rolos.
Chega-se, assim, à Sena Madureira, antiga Rua Direita dos Mercadores. Quem propôs à rua esse nome devia ser um tremendo gozador, porque é uma das poucas ruas tortas do Centro de Fortaleza. Ela seguia o curso do riacho, que lambia os muros do velho Palácio do Governo. Ao atravessá-la, sobe-se os degraus para a Praça dos Leões.
No piso da praça, em reforma recente, um arquiteto mais bem informado fez demarcar com pedras de revestimento escuro as antigas linhas de bondes: a que saía detrás do prédio da Assembléia e a que passava ao largo da Igreja do Rosário. Os Leões é hoje uma praça agradável, em que vagabundos dividem os bancos com Rachel de Queiroz e o General Tibúrcio sob densos ficus. E à frente deles, a Igreja do Rosário às moscas. Como uma miniatura, uma caixinha de música. O sol da manhã coando-se por sua rosácea sem cor para banhar um coro que há muito não ouve corais. E, ainda assim, parece haver alguma história na porção do piso que ainda é de tábua corrida. Daquela mesma que estala, ainda quando um adestrado na arte zen de caminhar sobre o papel de arroz nela dá dois passos. História, sim. E em especial, na pedra do batente ao limiar, com seu peso de volume desgastado, poroso, que só se entrevê nos mosteiros de Olinda. Separado dela por uma viela de nada, o caco do antigo Palácio dos Governadores, que é hoje a Academia de Letras – os usos dos prédios são eloqüentes quanto à importância deles ao longo das décadas.
Atravessa-se esse quarteirões que se fizeram do loteamento da área do antigo palácio. Passa-se pela Praça da Polícia. Ao longo de toda decrepitude da Solón Pinheiro, casarões como os da antiga sede do Ibeu ou da ABCR rotos, semi-abandonados, mirando um Parque da Criança em que há de tudo – inclusive um lago em lama sob frondosos oitis – menos crianças. Que não se volte o olhar para a Praça do Coração de Jesus. O perigo é virar estátua de sal. E por uns mais quarteirões que nem é bom falar, se está de repente diante da Igreja do Carmo. Essa igreja, erguida em 1906, por irmandades que há muito já tem todos seus confrades debaixo da terra, encontra-se no centro de uma praça. É talvez a mais bela de Fortaleza. E, diante dela, há uma estátua em mármore da Virgem com o Menino Deus, e, à cimeira do pedestal, a palavra paz em latim.
Aliás, tudo recende a missa em latim fora e dentro da Igreja do Carmo. Do lado de fora, sobretudo nessas janelas redondas – chamadas óculos – que seguem acima de cada uma das portas no comprido do edifício. Dentro, um balcão de onde se assistia ao serviço como se num teatro. E dessa frisa, ao se olhar para fora, possível entrever, para além da copa dos oitizeiros, o sobrado do Instituto do Ceará, antigo palacete Jeremias Arruda, impecavelmente zelado.
Tornando o olhar para dentro, há o ferro forjado do púlpito, com a escadaria em espiral, para o pároco erguer-se acima dos fiéis quando do sermão. Isso no tempo em que o sermão era sermão. Outro coro ás moscas anos à fio domina a nave. E as estreitíssimas escadas que vão dar no campanário, com dois sinos, um a sul, outro a oeste das janelas em arco. E, na que se abre a norte, para a fachada, uma imagem de Nossa Senhora do Carmo de não mais de um metro, que, em tempos idos, devia contemplar um mar de telhados, quintais com cataventos e, ao fundo, o mar mesmo, ao invés do panorama cinza, enxovalhado, dos atuais edifícios do Centro.
Eu não entendo quem diz que Fortaleza não tem história. Mas também, claro, para se achar a cidade, é necessário estar com ela à mão. Possuí-la, com a gana de um garoto de dezesseis anos. De um namorado zeloso, cujo ciúme faz entrever que a beleza da prometida é apenas mais sutil. Ou mais exigente que as demais. Algo como aquele dito popular sobre amar o feio. Cavar a beleza por veios assim subjetivos. E, então seguir pisando leve sobre a calçada, de mãos dadas com ela, como num longo plano ao final de um filme de Chaplin. Daqueles que parecem prolongar-se para além do fade.
Nota - não é de modo algum "natural" o tom deliberadamente arcaizado desta crônica.
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