terça-feira, 9 de novembro de 2010

Nunca berro boas-sortes a quem quer que seja: Salinger

[s/i/c]



J. D. Salinger

The Catcher in the Rye [O Apanhador no Campo de Centeio], para o grande público, talvez seja apenas o livro que Mark David Chapman portava consigo quando assassinou Lennon, em dezembro de 1980.
Posso lembrar disso. Da circunstância. Eu tirava um cochilo, quando meu irmão Ney me acordou. Um tanto a contragosto. Foram raríssimas as vezes em que lembro de ele haver me acordado para o que fosse, no tempo em que dividíamos o quarto e um par de violões. E então ele reportou o assassinato. E detalhou-o um pouco. E nos postamos diante da TV. Eu tinha dezessete, ele quinze. Depois fomos a uma vigília organizada no estúdio de uma estação de Rádio na Volta da Jurema. Havia as fotos dos quatro fora da cabine. Eram as fotos do interior do Álbum Branco. E a de Paul McCartney estava de cabeça para baixo.
Porém tudo isso é desvio. Voltemos ao apanhador, ao campo e ao centeio. Trata-se do primeiro livro, antes mesmo do On the Road, de Kerouac; de James Dean e Natalie Wood; ou dos filmes de Nicholas Ray; a diagnosticar que havia algo de errado com os mais jovens nos Estados Unidos da metade do século passado. Ou com a sociedade norte-americana em geral, que iria conhecer nos anos 50 o fim definitivo do propalado American dream.
O romance, originalmente publicado em 1949, é preciso. Há uma aura quase budista circundando-o. Mas, desde a primeira leitura, o sarcasmo de Holden - uma sorte de loner - o protagonista, que esconde um profundo amor por verdades humanas, nos colhe de roldão. O estilo é límpido. Frases curtas. E passa longe do exibicionismo vulgar, tardio e um tanto passadiço de, digamos, um Bukowski.
Em parte porque a prosa é fluida e posta quase em tom de conversa. 
E, muito em especial, quando Salinger evoca certas paisagens urbanas. E um senso de divagar por elas. Nem que em devaneio. Nem que em daydreams. Como quando Holden é expulso do colégio secundário, aos dezesseis anos, e seu professor de história, um velho senhor, derrotado e decadente fisicamente, o convoca para uma conversa daquele tipo. Quer dizer, do tipo que transpira certa estereotipada condescendência do mais velho em relação ao mais jovem. E em que Spencer, o velho professor, quase se justifica por haver reprovado Holden. Há aquele tom complacente, professoral. Tomemos este trecho. E, em seguida um outro. O elo entre ambos é o quanto são compelentes – senão eloquentes – no sentido de dar conta desse chasmo, desse abismo, entre gerações que iria explodir em todo seu som e fúria nos conturbados anos 60, assim como a boa fotografia de cenas urbanas, uma “fotoletria” da urbe moderna, tão presente no livro:

2.

[…]
“What you have done in my place?”, he said, “Tell the truth boy”.
Well, you could see he felt pretty lousy about flunking me. So I shot the bull for a while. I told him I was a real moron, and all that stuff. I told him how I would've done exactly the same thing if I'd been in his place, and how most people didn't appreciate how tough it is being a teacher. That kind of stuff. The old bull.
The funny thing is, though, I was sort of thinking of something else while I shot the bull. I live in New York, and I was thinking about the lagoon in Central Park, down near Central Park South. I was wondering if it would be frozen over when I got home, and if it was, where did the ducks go. I was wondering where the ducks went when the lagoon got all icy and frozen over. I wondered if some guy came in a truck and took them away to a zoo or something. Or if they just flew away.
I'm lucky, though, I mean I could shoot the old bull to old Spencer and think about those ducks at the same time. It's funny. You don't have to think too hard when you talk to a teacher. All of a sudden, though, he interrupted me while I was shooting the bull. He was always interrupting you.
“How do you feel about all this, boy? I'd be very interested to know. Very interested.”
“You mean about my flunking out of Pencey and all?” I said. I sort of wished he'd cover up his bumpy chest. It wasn't such a beautiful view.
[…]
Then we shook hands. And all that crap. It made me feel sad as hell, though.
“I'll drop you a line, sir. Take care of your grippe, now.”
“Good-by, boy”.
After I shut the door and stared back to the living room, he yelled something at me, but I couldn't exactly hear him. I'm pretty sure he yelled “Good luck!” I hope not. I hope to hell not. I never yell “Good luck!” at anybody. It sounds terrible when you think about it.

3.

I'M THE MOST TERRIFIC liar you ever saw in your life. It's awful. If I'm on my way to the store to buy a magazine, even, and somebody asks me where I'm going, I'm liable to say I'm going to the opera. It's terrible.

Excerto dois:

8.

[...]
Usually I like hiding on trains, especially at night, with the lights on and the windows so black, and one of those guys coming up the aisle selling coffee and sandwiches and magazines. I usually buy a ham sandwich and about four magazines. If I'm on a train at night, I could usually even read one of those dumb stories in a magazine without pucking. You know. One of those stories with a lot of phony, lean-jawed guys named David in it, and a lot of phony girls named Linda or Marcia that are always lightning all the goddam David's pipes for them. I can even read one of those lousy stories on a train at night, usually. But this time, it was different. I just didn't feel like it. I just sort of sat and did anything. All I did was take off my hunting hat and put it in my pocket.

[J.D. Salinger, The Catcher in the Rye, copyright, J. D. Salinger State, 1949]

2.

[…]
“O que você teria feito em meu lugar?”, ele disse, “Fale a verdade, garoto”.
Bem, era possível ver que ele sentia-se péssimo por haver me reprovado. Então eu comecei a encher linguiça por um instante. Disse-lhe que eu era de fato um idiota, esse tipo de coisa. Disse-lhe o quanto eu teria feito exatamente a mesma coisa, se estivesse no lugar dele, e o quanto muitos não dimensionam o quão duro é ser um professor. Esse tipo de coisa. A velha linguiça.
O fato engraçado, no entanto, é que eu meio que pensava em outra coisa enquanto buscava algo para encher linguiça. Eu vivo em Nova York, e estava a pensar sobre a lagoa do Central Park, ali perto de Central Park South. Considerava a possibilidade de ela estar congelada quando eu voltasse para casa e, se ela estivesse, qual o paradeiro dos patos. Ponderava comigo para onde os patos seguiam quando a lagoa jazia fria e enregelada. Eu me perguntava se algum sujeito vinha num caminhão e os levava para algum zoo ou algo do gênero. Ou se eles simplesmente revoavam.
Tenho sorte, no entanto, eu podia encher linguiça para o velho Spencer e pensar naqueles patos ao mesmo tempo. É engraçado. Não é necessário pensar a fundo quando se conversa com um professor. Mais que súbito, contudo, ele interrompeu minha encheção de linguiça. Ele estava sempre a interromper.
“Como você se sente diante de tudo isso, garoto? Isso me faz bem curioso. Bem curioso.”
“O senhor quer dizer a respeito de minha reprovação em Pencey e tudo o mais?” Eu disse. E desejava que ele cobrisse seu tórax verruguento. Não era uma visão auspiciosa.
[…]
Então apertamos as mãos. E todos esses salamaleques. O que me entristeceu um bocado, no entanto.
“Vou postar umas linhas ao senhor. Por ora, cuide da gripe”.
“Até logo, garoto”.
Depois que cerrei a porta e perscrutei a sala de estar, ele berrou algo para mim, mas não pude ouvi-lo nitidamente. Estou convicto de que ele berrou um “Boa Sorte!”. Espero que não. Nunca berro “Boas Sortes!” a quem quer que seja. É terrível.

3.

SOU O MAIS TERRÍVEL dos mentirosos que você jamais encontrará em vida. Uma praga. Se estou tão-só a caminho da banca para comprar uma revista, sem mais, e alguém me pergunta para onde vou, é provável que diga que para a ópera.
[…]



Excerto dois:

8.

[…]
Em geral gosto de andar de trem, especialmente à noite, com as luzes acesas e as janelas tão negras. E um desses caras vendendo café e sanduíches e revistas. Costumo comprar um sanduíche de presunto e umas quatro revistas. Se estou num trem à noite, posso até ler um desses contos das revistas sem enguiar. Você sabe. Uma desses contos com um monte daqueles improváveis caras chamados David, de esguias mandíbulas, e um monte de improváveis garotas chamadas Linda ou Marcia que estão sempre a acender os malditos cachimbos dos Davids em favor. Posso até chegar a ler um desses abomináveis contos em um trem à noite, em geral. Mas desta feita era diferente. Não me sentia disposto. Eu meio que queria estar ali sentado e não fazer nada. E tudo que fiz foi remover meu chapeu de caça e pus no bolso.

P.S. – Interessante perceber que provavelmente foi um desses obscuros Davids, improváveis e quase anônimos; um personagem mal-concebido em um conto. Sem glória. Meio borrado. Sem senso de caráter. Como, de resto, os presentes nas revistas lidas durante um passeio noturno de trem em O Apanhador no Campo de Centeio, quem matou Lennon.




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