sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Um conto, um porto, um ponto de partida

Aspecto de Camocim, em maio de 2008



O Prefácio do Mar


Em algum lugar, que prefiro não buscar com sistema, na obra de Simone Weil, ela nos diz que “a cada forma de ser da alma humana corresponde algo físico. À tristeza corresponde água salgada nos olhos”.

Posso tomar isso como ponto de partida. Como porto de partida para buscar entender minha relação com o mar. Nascido diante de uma água que é quase mar, mas não chega a ser mar, porém um prefácio de mar – porque o estuário, a foz de um rio – minha relação com o mar nunca foi das mais plácidas. E no entanto, algo de uma centralidade e presença absolutas para minha constituição não só como escritor – o que, convenhamos é algo menor – mas como gente.

É algo menor como escritor, porque como nos diz Nicolas Bouvier: “não é o fato de ser escritor que nos propõe as questões, mas o fato de ser”.

Então, uma das coisas que mais aprecio vem do fato de provir de famílias, tanto pelo lado materno, quanto paterno, que, ao mesmo tempo extraordinariamente litorâneas - onde a água, seja salgada, doce ou salobra verte-se por todos os poros - gostam de contar histórias. E onde o senso do passado é quase espontâneo, ininterrupto como o bater das ondas. O regime das marés. É como respirar ou fritar um ovo. Desconhecendo qualquer antagonismo em relação ao presente. Uma sorte de continuidade. Em que os mortos nunca estão totalmente mortos. Do contrário, assomam bastante suplementares em relação ao agora.

Nos únicos dois anos em que meu pai passou, por dever de ofício, em uma cidade longe do mar, longe das marés, da rebentação, ainda solteiro, foram torturantes para ele. Nunca que ele disse isso abertamente. Mas isso de dizer coisas abertamente não é de seu feitio. É preciso pescar esse mal-estar a partir de brechas em anedotas e pequenos fatos, que narra. E nessas anedotas há uma espécie de tempo cristalizado. Mas cristalizado a partir de referências tão concretas – da paisagem ou da atmosfera das cidades de ao final da década de 50 – que para bom entendedor, meia-palavra.

Desse senso de contração do tempo em pequenas anedotas cristalizadas – relacionáveis entre si, notáveis pela sabedoria ou humor latentes – e dessa contação de micro-histórias, em ondas sucessivas, em diferentes épocas, sobre diferentes aspectos mas envolvendo quase sempre esse prefácio de mar, essa mesma paisagem ou algo relacionado ou relacionável à ela – deriva um mar de histórias em família. O mar de histórias que me forneceu a vontade de recontá-las. Porque sentia a necessidade de, ao refletir sobre elas – por senti-las minhas, no fim das contas –, tentasse delas retirar algumas gotas. Algumas gotas de algo que está completamente fora de compasso: uma espécie de moral. Ao modo das fábulas.

Talvez não se deva, aqui, falar de um mar de histórias. Porém mais propriamente de uma foz de histórias. De um estuário de histórias. A evocação desse passado profundamente enganchado numa circunstância ao mesmto tempo local, mas que sempre impele para além, foi o que me abriu um caminho. Para um devir não só abstrato, mas geográfico, extremamente concreto. Pois que não se refere só ao presente ou ao devir, mas sobretudo aos tempos passados, vivificando-os. Mas também – e isto é pedra angular – a algo alcançável pelo olhar, pelos sentidos. Um prolongamento material dessas histórias.

Daí que eu possa perfeitamente pensar o porto de Camocim, onde nasci, sem mim. Ou seja, quando eu ainda não existia. Não era. Até porque na limpidez de suas praias, nos tempos da infância, havia um resto desse “não era” bastante visível; depositado na forma de areais, seixos, conchas, búzios, vieiras, cracas, ostras, recifes, corais que estavam lá, às camadas, há séculos, como nos sambaquis, muito antes de eu nascer.

E havia também uma diferença entre o prefácio de mar, que era o estuário do rio, e o mar aberto, o mar oceano.

As águas da foz do rio, como limiaridade composta – ao mesmo tempo salgada e doce (salobra para todos os efeitos) – eram ao menos tão importantes para mim quanto o vasto mar aberto. Entre outras coisas por me ligarem a uma paisagem exuberante que se encontrava na outra margem, conformando, assim, do contrário, mais algo que me aproximava ao modo de estrada dessa paisagem – de dunas e mangues, de vastas luas cheias erguendo-se a leste sob a bela espessura dos mangues ao prenúncio da noite – do que algo que me separava disso tudo. E tendo a entendê-la como uma paisagem que ensina a sintaxe do local por contraposição ao Atlântico, que se abre para a África e a Europa – e, logo, para um mundo mais vasto, fora do alcance da minha vista. Perceptível, num primeiro momento, apenas pela mediação da foto, do filme, da enciclopédia, do dicionário e, após eu ter cinco anos, claro, da TV.

O mar aberto era o livro aberto. O outro lado do rio era o caminho concreto, ao alcance da fala. Esse prefácio de mar era um caminho. Um caminho para aquilo que qualquer camocinense designava como O Outro Lado. Como se, aqui, se tratasse do outro lado do mundo. Ou da própria vida.

E, claro, o modo como se chegava até esse outro lado, esse avesso, esse contrário, onde sequer havia cidade, onde tudo era natureza, uma “não-cidade”, dava-se através das águas. E a forma de chegar até ele, sua mediação, não era o livro – como no caso do mar aberto - mas a canoa. A canoa que porta o nome de uma mulher. E, portanto, guarda todo o mistério do mundo. A despeito de gerá-lo. Ou por isso mesmo. Uma vez que as causas últimas das coisas são indevassáveis.


No fim de tudo, pode-se concordar com Gérard de Cortanze quando ele nos avisa que um "escritor se mobiliza para pisar o país do silêncio: o da reconciliação com suas origens e suas leituras da infância". 


Do anyone need to go further?





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