segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Uma mendacidade na cor da romã

Philip Guston, The Clock, 1957




Há uma demora. Um vagar. Um coágulo de tempo em que nada de muito importante se passa. Há uma inesperada dublagem do nada. Quem tem meios-termos não tem estradas. Há um abraço entre fim e fado. Há entre as pessoas vizinhas apenas vozes. Há o sol filtrando-se pelas persianas como um tapete não persa. Há a luz dos intervalos de sol estriando o assoalho. Há essa tarde a meio. Há uma dama fora dos naipes do baralho. Uma caminhada não feita. Um não ter de ir à oficina para consertar a trava da porta traseira direita. Um procrastinar de ir receber um cheque numa instituição por conta de um curso no mês passado. Certo desejo de não ir ao cinema. Um enxame de coisas a fazer e elas debatem-se entre si para ver qual será a primeira. Há uma chave no bolso, outra na porta. Há uma cartela de tabletes e uma bula repleta de nomes de substâncias terminados em “ina”, “ol” e “ida”. Há um rosto de mulher, seus olhos profundos, úmidos. Há uma contração de membranas e músculos. Há um escrever com o pensar dos outros. Há a certeza de que as melhores coisas não passam pela inteligência; passam pela negação dos falsos fundamentos de nossa vida social. Há uma mendacidade na cor da romã se vista sob determinado ângulo às quatro da tarde. Há o ininterrupto abismo entre o que se quer e o que há. E há os ponteiros dos relógios, que não se detêm por conta disso. Há um incêndio no parque e os perigos do espelho. Há que se testemunhar mais que explicar. Há os cabelos dela sacudindo-se no meante da risada. Há bem-te-vis e sebites cantando para ninguém. Há um ruído de jato passando sobre a cidade. Há que partir. Mas para qual alhures? Quantos bondes foram perdidos ao longo de décadas, cidades, países, gentes, ondes? Há que se comer outras espécies para estar vivo. Há uma consciência que não vem das palavras. Há a certeza de que todos os sistemas possuem mais furos que queijos suíços. E há o mundo, que é muito mais fecundo. Há os óculos escuros flectidos sobre o computador. Há o pequeno estojo laranja farto: uma embalagem com grafites 0.9, dois adaptadores para plugs, três pen-drives, dois cortadores de unhas, duas pilhas palito, quinze palhetas de guitarra, um pequeno bilhete em papel vermelho sob um plástico, uma pequena lupa, seis moedas, um parafuso, uma colmeia de pequenos clipes. Há o impulso do corpo de alguém que varre, lá fora. Há as palhas da vassoura raspando a ardósia. Há uma doçura nos ruídos da tarde. E o rumor do circulador de ar ligado. 

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