[s/i/c]
Cuidado, Lei, Medida, Extensão, Monstro
Para a vida.
No amor, no amor. Parece que fundamental é cuidar. Não é “possuir”. Pois possuir indica poder. E, em consonância, desnível, desequilíbrio, pender de gangorra para mais um dos lados. Não é encantar-se. Mesmo que haja tanta importância, aqui. O deslumbre, o êxtase, o impulso, o entusiasmo diante da materialidade das coisas. Sua beleza, sensualidade, erotismo. Embora importem, extinguem-se mais rápido que o crepitar de brasas encarvoadas ao vento.
Porém cuidar envolve um longo tempo. Cotidianos. Que se dilatam ou se contraem sem cessar. Como fogo. E, em especial, fogo amarelo e azul em uma boca de fogão, onde uma família prepara o que come. Onde é possível se conhecer. Ou como se dizia antes: “comer juntos um saco de sal”. O próprio verbo “cuidar” já esteve rente ao amarelo e ao azul desse fogo. Quase sinônimo de amar em português. Quer dizer, quando o português e o galego (ou galaico) ainda eram um só.
E então os trovadores do Medievo falavam de “cuidado”, em português, como algo que podiam ofertar a – e receber em troca de – suas “Senhor”. Ou seja, de suas damas, senhoras, velidas. O termo “senhor” era, àquela altura, comum aos dois gêneros.
E mesmo de quando se produziram as mais belas páginas escritas em português, isso no sec. XVI, por Camões, António Ferreira, Sá de Miranda & Cia Ltda., o termo “cuidado”, então ainda em reflexo da Idade Média, era sinônimo de “ocupar-se, ao menos em pensamento com alguém”. Preocupar-se, com alguém, melhor dizendo. Daí os versos – todos aqueles decassílabos de uma elegância irreparável. Em Camões, por ilustração, pode-se deparar, volta e meia com algo desse “cuidado” na esteira dos decassílabos:
“Que nem mudar as causas em cuidado.”
Ou:
“E que os outros cuidados condenais.”
Ou ainda, em um das mais belas aberturas de soneto em qualquer língua:
Aqueles claros olhos que chorando
Ficavam, quando deles me partia,
Agora que farão? Quem mo diria?
Por ventura estarão em mim cuidando?
Nós, modernos – ou além de modernos – somos educados, desde cedo, para esquecer esse senso de cuidado. Aqui, vivemos sem uma medida diante dele, completamente “descuidados”. Ou, em reverso, “descuidantes”.
Aliás, esse senso de medida era entrevisto também como uma sorte de “lei” de fora para o verso. Ou seja, uma ética que veio de fora e se aninhou na letra. Uma poética que podia abstrair da palavra as duas primeiras letras. Uma das primeiras coisas que um olho educado seguia e segue em poesia era e é, naturalmente, a perspicácia que está posta pelo poeta ao fim de cada verso. Em outras, simples, palavras: como a/o poeta acaba a linha. Como ela ou ele propõe o final de cada linha.
Nos verdadeiros poetas esse senso de concluir a linha (para retomá-la depois, obviamente) segue pleno de verve, espontaneidade, sabedoria. Reforça uma espécie de agudeza sintática. Um senso de medida. Uma “lei”. Esse senso de extensão guarda também um sentido moral. Um cuidado. Daí que se empregue para alguém que cai em desgraça junto a uma comunidade a expressão: “Fulano não tem lei”. Ou, “é um sujeito sem lei”, para designar alguém de caráter questionável ou mesquinho. Alguém que não tem “medida” no sentido de se impor limites pessoais. No sentido de vazar um mal-estar para os demais, para quem está à volta. Aqui, praticamente todas as metáforas raspam algo que tem a ver com espaço e com auto-controle:
“Não tem domínio de si” [não sabe até onde vão os seus domínios territoriais e começam os do próximo. Não sabe até onde acaba seu corpo].
“Perdido” [ou seja, sem orientação espacial].
“Perverso” [virado às avessa; feito em desacordo com as regras e os costumes (ou leis – um monstro, com a pele por dentro e as nervuras por fora)].
“Selvagem” [que vem da Selva, onde não há normas, senão a “lei da selva”, "a lei do mais forte", etc.]
A poesia longe de ser um deslimite da imaginação, é um estado mais próxima da ascese, de um limite – em grego, a palavra “ascese” quer dizer “exercício”. E assim o poeta seja alguém que proponha um limite. Uma medida. Daí que mesmo para o poeta da época do modernismo mais radical, da época da vanguarda e dos “ismos”, a ideia do “verso livre” tenha assomado como problemática ou repelente. Afinal, só se pode cuidar do que tem limites. Do que tem medida. Do que conforma um corpo. Um todo. Como um poema. Como o humano corpo. Desde sempre.
Tome-se qualquer dicionário sério em nosso idioma. Nele se perceberá, entre outras coisas, que “aborto” é sinônimo de “monstro”.
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