Jean (Hans) Arp, Enak's Tears, 1917
Que a lágrima não se verta em vão
O momento é para celebrar. Mas que a lágrima, mesmo a de alegria, não se verta em vão.
O Brasil dividiu-se literalmente no mapa dessas eleições. Basta debruçar-se sobre os índices de vitória em cada estado para perceber que o Brasil expressamente – e, por vezes, inescrupulosamente – taxado de arcaico, atrasado, pobre, miserável, analfabeto, venceu o pseudo-Brasil-moderno, pseudo-europeizado, pseudo-cosmopolita, pseudo-desenvolvido, pseudo-sofisticado.
O mesmo que tratava seu corpo mais ao norte como uma sorte de colônia. Que o parasitava a todo custo. Que, pela força da grana, engolia seus filhos nas indústrias paulistas. Que os importava, como gado, para fazer os serviços mais rasteiros – justamente os mais essenciais. Serviços em que eles próprios não desejavam sujar as mãos: limpar a casa, da sala à privada; tomar conta dos filhos, enquanto as mulheres e homens saíam para ganhar a vida, "liberados", como se diz. Que abocanhava esses seres humanos para serem humilhados em portarias de prédios, balcões de padarias, bocas de fogão, flanelas de engraxar, volantes de táxis, estivas, carregar de malas; mutilados pela força mecânica e automática das máquinas nas indústrias. Que transformavam seus corpos esquálidos em utensílios, como um liquidificador. Como uma betoneira. Como um guindaste. Uma trituradora. Uma ceifadeira. Para passarem o dia inteiro, na faina sem fim, de cortar cana nos canaviais das grandes produtoras de etanol, no interior de São Paulo, do Paraná. Transportados em ônibus ensardinhados, em trens de subúrbio caindo aos pedaços, nas grandes metrópoles. Exilados de sua terra e de seus afetos. Sem poder comprar o mínimo essencial de nutrição para pôr à mesa, sem perspectiva de educação para os filhos. Sem férias na Argentina, que fosse.
Sem esperança.
Essa vitória é também a vitória de Canudos. É Canudos revertendo-se sobre a voragem inescrupulosa e o egoísmo dos que sempre se recusaram a perder a migalha que fosse em partilha com seus próprios concidadãos.
Por outra via, é mais ou menos óbvio que há muitas incógnitas pairando no ar. Com três mandatos consecutivos, pode o PT tornar-se um partido tão espúrio quanto o PSDB? A que nível de autoritarismo pode chegar um partido permanecendo tantos anos no poder? Terá Dilma voo próprio como executiva? Ou será uma espécie de marionete de Lula? Poderá ela, de fato, governar para todos os brasileiros, como apregoa? Ou reforçará ainda mais uma tendência: uma espécie de petetização do poder, de cargos administrativos que requerem bons administradores, ao invés de afilhados (ou afiliados) políticos? Será que Rousseff aproximar-se-á perigosamente de regimes autoritários, como o de Chávez? Irá flertar com uma censura velada? Sair-se-á tão bem no embate com a conjuntura externa como seu habilidoso predecessor?
Isso tudo o país terá de conferir nos próximos anos. De olhos atentos.
Porém, de momento, a hora é de comemorar. De celebrar o grande feito de uma mulher chegar pela primeira vez à presidência. E não pelo voto do Sul Maravilha. Porém pelo dos descamisados, dos mais frágeis, dos mais vulneráveis. Dos que têm de despender mais suor para pôr menos pão à mesa.
P.S. – E nisso tudo, louve-se o desempenho de outra mulher: Marina Silva. É de se esperar e torcer para que ela não saia da vida pública. A expressiva votação que conquistou – inclusive no Nordeste – faz prometer o nascimento de uma terceira via. De um partido ainda não tão maculado por alianças espúrias com siglas de aluguel para permitir o mínimo de governabilidade. Mas também a votação em Marina Silva nos indica outra dádiva: uma preocupação maior do povo brasileiro com uma questão chave: a ambiental. É algo, enfim, a conferir. Uma perspectiva.
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