terça-feira, 2 de novembro de 2010

Eu pensei que...

Jannis Kounnelis, Bells, 1993




Um pouco mais de miolo

Rua Raul Pompéia. Pompéia. Zona Oeste. São Paulo. Terceiro andar.
No Dia de Finados de 2001, fui dormir de madrugada. O sono foi intenso, mas curto. Acordei pouco antes da manhã. Uma sexta. Talvez com um fiapo do que andara lendo ainda a espiralar no sonho. Tratava-se dos Comentários de São João da Cruz à Noite Escura da Alma. Pela janela entreaberta, filtrava-se a frialdade. E uma perna de bairro - mais desolado e belo - fazia-se ao claro-escuro. Escrevi um poema e tomei um pouco de leite. Enviei o poema, por imeio, para alguns amigos.
E fiquei meio lendo, meio cochilando até quase o meio-dia.
Então desci à pequena padaria do supermercado 24 horas. O dia estava encoberto e ameno. Uma leve friagem percorria as ladeiras íngremes. Sentei-me a uma mesa de onde podia divisar a rua pela vidraça e corri os olhos pelas manchetes da Folha. Pedi um café com leite e um pão com manteiga, passado na chapa; salada de frutas; suco de acerola; algumas fatias de queijo; apresuntado de peru; geléia de goiaba.
A balconista era certamente novata. Havia algo de estranhamente desajustado em seus gestos. Em menos de meia-hora e um quarto, tomei meu café e li um pouco mais do jornal, tomando algumas notas em um minúsculo caderno. E também notei que o pão viera sem o miolo. Um desses garotos descabelados e rotos me pediu algo em voz baixa. Minha resposta, em voz baixa, o dissuadiu de insistir por algo.
Após pagar no caixa, acenei para balconista novata, e disse-lhe em reserva — ela, surpresa, debruçando-se além da conta debaixo do avental sobre o balcão:
Achei interessante que o pão tenha vindo sem o miolo. Às vezes, eu até gosto assim. Mas, talvez, nem todos os clientes vão achar simpático.
Ela me interrompeu com um sorriso constrangido, onde havia um mau dente incisivo:
É que o pão tava quentinho, eu pensei que…
Sabia um tanto do que ela havia pensado. Ou o adivinhava, de algum modo. Ou pensava que adivinhava: o quanto no Nordeste há esse hábito de pelar o pão. E se deixar brincando, dedos involuntários, a modelar formas com o miolo. Formas que, por vezes, algo sugerem. Nem que apenas nuvens mais carregadas em um dia límpido, sem qualquer migalha delas.
Ao sair do supermercado, com o feriado estendido, desacelerando horas, me ocorreu ir até um café, e passar o resto da tarde lendo por lá. E tomar alguma cerveja para abrir o apetite. O feriado, desde o sol-posto da véspera, despovoara um tanto as ruas. Os paulistanos haviam descido para as praias. Estava agradável caminhar. Notei cordões bem finos enroscados, como delicados cipós, ao longo dos fios de telefone, e que isso me agradava. Passei por um homem, com sacolas de supermercado. E ele, soerguendo uma das sacolas, não sem alguma dificuldade, lambia algo que parecia ser um selo. E, porém, sobressaltou-se quando notou que era notado. Uma jovem, bela como um anjo, passeava seu advento. Sem timidez. Nem expansão. Mas um certo, espontâneo, aloofness. Uma mulher loura, madura e branca, excessivamente contida, em formas densas, sob um jeans, prendeu meu olhar por um lapso, próximo a um ponto de ônibus. E lembrei de um poema. De Pessoa: “Dá a surpresa de ser/ É alta, de um louro escuro/ Faz bem só pensar em ver/ Seu corpo meio maduro”. Chegando ao café, dei com todas as mesas à calçada, vazias. Dispostas de certo jeito que gosto. Um tanto obliquamente em relação à travessa. Mas um impulso me disse para não sentar ali.
Segui até o fim do quarteirão. E desatei um passeio pelas ruas em volta. Um tanto à deriva. E de novo me veio a visão e o sabor daquele casca de pão, a manteiga liqüefeita, por cima, como se da terra. E de novo me veio o sorriso da balconista. Seu mau dente. Minha fria formalidade.
Pensei em direitos do consumidor. Está na moda. Como o politicamente correto. Certa compulsiva ênfase para se falar em discriminação. Meio à norte-americana. A bobagem de todos se mostrarem infinitamente complacentes e expeditos com os aidéticos. Ou com os homossexuais à frente de câmeras e de microfones abertos. Para depois nutrirem as mesmas posturas de sempre, em piadas torpes, por botecos e botecos, pelo país afora. E, em meio a toda essa massa sem fermento, os tais direitos do consumidor. Mas que argumento de pão mais sem miolo! O que, no fim de tudo são os direitos do consumidor?
Por exemplo, o que são os direitos do consumidor diante do que se deve ao próximo? Nada são, em certas circunstâncias. Quando muito, a ratificação mais extrema da insanidade. E ainda mais diante daquele constrangimento da balconista. De seu mau dente. De seu primeiro dia de trabalho. De seu acanhado, belo sotaque nordestino com aqueles “t’s” tão liguadentais. Tão dignos. Talvez pernambucanos. Ou caririenses. De sua perene divindade. De ela apontar que, de fato, Deus é – porque falta tanto para tantos. Do fato de estar ali desde manhã, e de haver tomado um ônibus para ali estar, desde antes de manhã; enquanto se pode escrever poemas, passar imeios para amigos em cidades distintas, em países outros, deambular pelo bairro tranquilo. Entrever comportamentos estranhos. Belas mulheres. Finos cordões enroscados na fiação telefônica. Relembrar-se de um poema de Pessoa. Ler São João da Cruz – e guardar tão pouco! Do fato de ela mal saber ler, enquanto se pode fazer pós-graduações insípidas, tão sem sentido, tão inúteis diante do essencial, do fato matinal que é um café com leite com pão e manteiga postos à mesa.
Mesmo sem miolo.
E pus os óculos escuros, para disfarçar que a uma certa tristeza corresponde água salgada nos olhos.
Então, voltei para casa, porque a vida que se faz entre livros é, por igual, faina que parece não ter fim. E pão repassado na chapa. E, por vezes, exige um sangue frio, que não pode ceder a essas sentimentalidades. Mesmo de um exilado. Ou à essa talha de uma comoção mais forte na manhã de um feriado. E é um tanto palha, no fim de tudo. Lucerneira. Um entristecer da carne – se não a ela se põem limites. Como o de caminhar por ruas semi-desertas quando um dobre de finados, nos sinos da Igreja de Nossa Senhora da Pompeia, anuncia tempos idos. Uma época em que, quem sabe, se não descia às praias para desfrutar do feriado que, então, se chamava "Dia Santo".
Ao dobrar o jornal sob a axila, para abrir o portão do pequeno edifício, sentia-me refeito. Feliz, por lesado em meus direitos de consumidor. E, eventualmente, com um pouco mais de miolo.
[Inícios do Verão, 2001]




Nota — Texto originalmente publicado na já extinta revista (especializada em crônicas) Nariz de Cera, em 2004.

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