quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Um senhor meio: Oz

Vincent van Gogh, Paisagem com Neve, 1888


Amos Oz
Conhecer uma Mulher [Conoscere una donna, trad. de Alessandro Guetta, Feltrinelli, Milano, 2000]


Difícil aferir os méritos de um escritor quando ele não é lido no original.
Menos mal se a tradução é italiana. Os italianos, historicamente, desenvolveram a melhor escola de tradução da Europa. Uma que vem colhendo frutos desde a Renascença e, entre outros, é responsável pelo lema mais célebre nos domínios da tradução: “Traduttore, traditore!”
O certo é que Amos Oz escreve em hebraico. E nem todo mundo sabe hebraico. O hebraico é lido da direita para a esquerda e possui uma estrutura oriental e um alfabeto próprio onde não há vogais, ao menos no hebraico clássico. No hebraico moderno convencionou-se uma combinção de pontos e traços para designá-las, chamada niqqud. Além disso é a linguagem da maior parte da Bíblia. E da parte da Bíblia que é a mais essencial para a religião judaica, os cinco primeiros livros, a Torah
E isso de ser a linguagem da Bíblia pode ser algo intricado de manejar. Um dilema. Pois há, por exemplo aquela elevadíssima poesia que se pode encontrar em Isaías ou Jeremias; ou nos Salmos. E então há que estar vigilante para que uma volta no quarteirão até a banca de revistas e limpar o olho com a visão de uma bela mulher não reverbere esses ecos monumentais. Que um “oi, tudo bem?”, o comezinho e o cotidiano não ecoem como dentro da nave vazia de uma majestosa catedral gótica.
Além disso, o hebraico passou séculos como língua morta – a exemplo do latim ou do grego arcaico. E só foi reavivado no sec. XIX e, em quase sequência, incentivado pelo movimento sionista.
Amos Oz é um escritor bastante prolífico. Mas ao se pronunciar o nome de Oz, de imediato vem a mente Meu Miguel ou Meu Michael, o seu romance de 1967 que é lido como uma metáfora política. E é também a obra mais ressonante de Oz. Isso, a despeito de certa contrariedade do autor. Para quem a trama apenas narra a história de um amor malogrado a partir de um ponto de vista feminino.
Aliás, até os nomes próprios portam esse eco bíblico. Sendo El um dos nomes de Deus em hebraico, Miguel quer dizer “Quem como Deus?”
Mas não é sobre Meu Miguel que versaremos, senão sobre Conhecer uma Mulher, que é de 1989. O protagonista de Conhecer uma Mulher é um agente do serviço secreto Israelense. E o livro é um tanto quanto seu trabalho de luto pela perda da esposa. Uma cantiga de viúvo. E uma cantiga de viúvo tão bonita quanto o poema de Drummond – de resto musicado por Villa-Lobos:

CANTIGA DE VIÚVO

A noite caiu na minh'alma,
fiquei triste sem querer.
Uma sombra veio vindo,
veio vindo, me abraçou.
Era a sombra de meu bem
que morreu há tanto tempo.

Me abraçou com tanto amor
me apertou com tanto fogo
me beijou, me consolou.

Depois riu devagarinho,
me disse adeus com a cabeça
e saiu. Fechou a porta.
Ouvi seus passos na escada.
Depois mais nada...
acabou.

É este o motivo do Conhecer uma Mulher, de Oz. Yoel, o agente secreto, é de um temperamento irritantemente lógico e metódico. Furtivo, lacônico, esquivo. De medir cada sílaba, cultivar grande silêncio. Deixar esse canteiro de silêncio germinar. E cada uma dessas flores de silêncio, em geral, desabrochar em pétalas de ruminação. Ou seja, de como teria reagido a esposa morta numa situação xis de um aqui e de um agora onde ela não é mais. Ou de reminiscências dela: gestos, gostos, posturas, objetos, roupas, fotos...
Reiteradas vezes Oz tem dito que um de seus assuntos favoritos é a família. A família como uma instituição que não fez água, e está aí há milênios. Isso, por igual, tem a ver com uma visada mais judia que cristã, se vista a partir de um determinado ângulo. E esse ângulo referenda certa crença de Oz. Pois Para Oz o “o próximo” é algo abstrato e lato demais para ser, de fato, amado. E o que amamos está dentro do círculo de giz dos afetos e das amizades. Com o destaque de que o vero centro desse círculo de giz traçado no cimento irregular da calçada é a própria família. A que não se escolheu pertencer. E a que se optou por formar. Mas de cuja medula, se não se consegue equacionar certos fluidos, nada pode caminhar a contento para devir.
Mesmo que isso do próximo, de algum modo seja desmentido, ao menos em parte, nos relatos de Oz, esse absenteísmo diante do próximo é algo que Oz faz questão de sublinhar. E, no entanto, também contraditar no fio de sua própria narrativa pois, apesar de ser um tanto irônico e, por vezes deliberadamente bem humorado em relação a seus personagens, ele quase sempre os trata com grande senso de compassividade.
De resto, com uma formação em Filosofia, seu pensador predileto é, significativamente, Espinosa. Oz conta entre os adeptos de Espinosa que não creem que o autor da Ética se haja convertido ao cristianismo.Quando é certo que em trechos de seus escritos, Espinosa reconhece a divindade de Jesus. E paga até um alto preço por isso, uma vez que sofre uma espécie de “excomunhão” da própria comunidade judia de Amsterdam. Um herem. [O sentido da palavra em hebraico é o de banimento].
Também "excomungado" ou "banido" – quer dizer, separado do restante da humanidade pela perda da mulher – é como parece se encontrar Yoel, o personagem central de Conhecer uma Mulher. E, como se não bastasse, toda misteriosa circunstância da morte de Ivria, a esposa, a quem ele amava ardentemente, aponta para um adultério. E assim, o fato de Yoel aposentar-se precocemente e mudar de Jerusalém, a cidade em que o casal vivia antes da morte dela, para uma ampla casa nos subúrbios de Tel-Aviv, junto com a filha, a mãe e a sogra diz muito dessa obsessão de Oz pela família.
A relação entre pai e filha é, quase sempre, apenas protocolar. Mas cabe um universo de cuidado e delicados meandros nesse quase e nesse sempre. A filha sofre de uma espécie branda de epilepsia. E isso parece torná-la, aparentemente, presa fácil de uma auto-imagem pouco lisonjeira. E uma personalidade, de algum modo, vulnerável. Mas, aqui, entram muitos outros componentes, pois, sem hesitação, Oz herdou todas as indizíveis habilidades e magias dos grandes narradores judaicos. De Singer a Salinger. E, de muito antes destes, da própria Bíblia, onde relatos como os da Gênese ou do Êxodo, além dos livros sapienciais ao modo dos midrash, como Tobias ou Ruth, para não mencionar Jonas – este pequeno conto tão deslocado quanto cintilante inserido poesia dos profetas a meio – conformam a própria razão de ser do povo judeu. Daí que eles também sejam chamados – e com toda justiça: “o povo do livro”. Pois nenhum outro povo, nem mesmo os gregos com Heródoto et alli, possui um faro tão forte para narração a partir de uma narração previamente consolidada e aludida como fonte viva de unidade no seguir dos dias. E essa narração é, naturalmente, a Bíblia.
Ou ainda, se há uma característica marcante em Oz é a imensa habilidade em fisgar a atenção do leitor. Em seduzi-lo desde o princípio. Palavra a palavra. Frase a frase. Sentença a sentença. Parágrafo a parágrafo. Capítulo a Capítulo. E, assim, Conhecer uma Mulher, assoma vívido, por traçar com tanto vigor e energia sinestésica essa cantiga de viúvo. Esse cotidiano assombrado pela falta de uma e a relação de Yoel com as três outras mulheres sobreviventes: a filha, a mãe e a sogra da defunta. Assim como também sua ligação a mais alguns poucos amigos.
E aqui, sim, há tanta presentificação. Tanta localía. Tantos odores, sensualidades, texturas, climas, atmosferas, objetos, gestos, sabores que o leitor parece testemunhar esse cotidiano. Degustando a comida, assistindo a TV, podando a grama, lavando a roupa, fazendo pequenos trabalhos domésticos, entrando noites adentro, assombradas por uma ausência, acontemplando o mar à noite, visitando um velho senhor num Kibbutz – na que surte ser uma das mais bem-humoradas cenas do romance.
Mas romances acabam. E pelo que há nos primeiros quatro quintos de Conhecer uma Mulher o leitor aspira por um final digno desses quatro quintos. E é precisamente o que não ocorre. O livro tem cinquenta capítulos relativamente curtos. Mas quando se chega ao capítulo quarenta ele como que se acelera. E num mau sentido. Quase ao modo de um folhetim eletrônico, de uma telenovela. E então o desfecho já se pode pressentir bem menos misterioso ou sinestésico ou poético do que os capítulos que o precedem prometiam. Esses últimos capítulos parecem desprovidos dos tempos mortos, redundâncias, divagações, engenhosas associações presentificadas nos anteriores. É como se o fim não honrasse a dignidade do meio.
Agora, convenhamos é um senhor começo.
E um senhor meio.

* * *

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