quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Paula Ney e o Espírito da Sátira

A Confeitaria Colombo, emblema do Rio Belle-Époque

Quando Morre a Divindade

Francisco de Paula Ney era figura carimbada nos círculos boêmios cariocas ao tempo de João do Rio, Emílio de Menezes, Olavo Bilac, do grande Lima Barreto. Sua presença de espírito era assunto de antologia. Jornalista, também escreveu versos. Mas ninguém lembra dele por isso. Ou talvez, mas sem querer. Indiretamente. É que um vestígio perto de imperceptível de soneto vive muito ao lado da gente. Paula Ney é o autor do mais célebre – e improvável – aposto à Fortaleza: “a loira desposada do sol”. 

Em 2012, Paula Ney acerca a inexistência. Tirante o professor Sânzio de Azevedo, um ou outro erudito por dever de ofício, ninguém mais o lê. Mas há a expressão – que todo mundo adora, e está nos lábios dos fortalezenses. De resto, é tudo que sabemos – quando sabemos – de Paula Ney. E também mal podia antecipar Paula Ney que um século depois de haver escrito mais um soneto aparnasianado, uma prefeita loura – mas não propriamente desposada do sol – iria usar e abusar da expressão em eventos públicos. 

Difícil explicar o porquê dessa loura desposada - e logo de quem - fazer tanto sucesso. Talvez por estar disponível, vá saber. Casar com o sol não requer juiz de paz. Não é casar com o próximo, bem entendido. Ou quem sabe, disponível, mas também bronzeada como manda o figurino. Embora se estivesse casada com o Pedro, o Nogueira, o Luís ou o juiz de paz, não estaria menos. Bronzeada, fique claro. E há por igual o fato de a metáfora para uma cerveja gelada ser uma loura, e vivermos debaixo de um sol de rachar. E não é uma tremenda, deselegante injustiça associar as louras àquele maldoso clichê que envolve testes de QI?


Por outro lado é de admirar que o politicamente correto ainda não haja reivindicado a cabeça do aposto em nome das ruivas, das morenas, das afro-brasileiras, das judias, das teuto-sulamericanas, das ítalo-brasileiras, das albinas, das sírio-libanesas, das descendentes dos povos indígenas, das polacas, das nisseis, das que assoviam mascando chicletes, das que que trazem aquele meio centímetro de queixinho dividido, das que implantaram botox, das que guiam cabriolés... Manuel Bandeira foi mais direto ao ponto quando disse que as "mulheres são lindas, inútil pensar que é do vestido".

Mas, então, contam de Paula Ney que a sua - que não se sabe ao certo se era loura - saiu-lhe ao encalço e antecipando em meio-século a canção de Vanzolini. É Sexta-Feira da Paixão e estamos naquele Rio de Janeiro Belle-Époque. Pode-se ver o filme. A trama é universal, claro. E, aqui, todo homem tem a Penélope que merece. A de Paula Ney, por fim, encontra-o no boteco - que bem podia se chamar Bar da Circe - entre amigos, amigas pandeiros, tangos, fandangos.
Resignado, ele então ergue-se, um pouco trôpego. E ela:
Chico, até no dia em que o Senhor morreu!
E ele:
Querida, veja, quando morre a Divindade, a humanidade cambaleia.

* * *


APPENDIX


O que o fortalezense preza, por vezes sem dar conta, em tipos como Paula Ney é a presença de espírito. Certa saudável molecagem que satiristas como ele e Quintino Cunha abriram por marteladas de humor. Foram eles que cavaram os veios de onde se entrever em certo caráter cearense - aqui, é saudável fintar a palavra identidade - a afinada sintonia com a estação FM do humor e da sátira, depois confirmada na televisão. Logo, não são os arabescos e literatices do texto o que ficou. De um modo misterioso essa presença de espírito, de boêmio profissional, infiltrou-se, deixou algum travo no sensabor desses versos excessivamente estilizados - ou bilaqueanos de um jeito mau. De qualquer modo, segue abaixo o soneto ufanista de onde se extraiu a expressão. O melhor dele, além do consagrado aposto, vem pelo travo incongruente dessas "ondas azuis dos verdes mares" ou desses "matagais" onde paira certo espírito de porco e sátira. O resto está repleto de hóstias de luz, verbenas, pipilos e dormitares, como era praxe à época. Pode-se, de outro modo, ouvir ecos dele em diferentes tempos e letras de música, como na "Praia de Iracema", de Luís Assumpção:



Fortaleza

Ao longe, em brancas praias embalada
Pelas ondas azuis dos verdes mares,
A Fortaleza, a loira desposada
Do sol, dormita à sombra dos palmares.

Loura de sol e branca de luares,
Como uma hóstia de luz cristalizada,
Entre verbenas e jardins pousada
Na brancura de místicos altares.

Lá canta em cada ramo um passarinho,
Há pipilos de amor em cada ninho,
Na solidão dos verdes matagais...

É minha terra! a terra de Iracema,
O decantado e esplêndido poema
De alegria e beleza universais! 



[Estação de Chuvas, 2012]

* * *

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