Salvador Dalí
Todo o texto a seguir, mas em especial o primeiro parágrafo, deve ser lido como se lê um programa.
Tenho que tentar dizer o que é necessário de um modo acessível e o mais universal possível. Mas sem perder a dignidade da ideia, que é o que ocorre hoje nos meios de comunicação: a perda da dignidade da EXPRESSÃO. A expressão sacrificada em nome da ampliação de seu alcance.
/Exemplo/
Passando ontem pela Vulgata, saíram estas duas versões, sem muito sistema. E qual, então, o propósito? O propósito é mostrar como alguém que desconhece latim pode “traduzir” do latim apenas pelo sedimento de leituras no português. O sentido específico destes movimentos de tradução é o de lançar o leitor “para dentro” de outras línguas. Neste caso, para dentro do latim, que nem mesmo sei ou domino, (mas sinto), imergindo-o por meio: 1. de uma violenta rigidez sintática; e 2. pelo som, mais do que pelo sentido das palavras. Vejamos como isto é possível:
/Liber Genesis/
/Livro Gênesis/In principio creavit Deus caelum et terram. Terra autem erat inanis et vacua, et tenebrae super faciem abyssi, et spiritus Dei ferebatur super aquas.
Dixitque Deus: “Fiat lux”. Et facta est lux.
Et vidit Deus lucem quod esset bona et divisit Deus lucem ac tenebras.
Appellavitque Deus lucem Diem et tenebras Noctem. Factumque est vespere et mane, dies unus.
No princípio, criou Deus o céu e a terra. A terra, então, era inane e vã, e a treva sobre a face do abismo, e o espírito de Deus ferrabrava sobre águas.
Disse Deus: "Faça-se luz". E luz foi feita.
E Deus viu a bondade da luz. E dividiu a luz da treva.
Apelou Deus a luz de dia. E a treva, noite. Feitas foram véspera e manhã, dia um.
/Evangelium
Secundum Ioannem/
/Evangelho Segundo João/
In
principio erat Verbum, et Verbum erat apud Deum, et Deus erat Verbum.
Hoc erat in principio apud Deum. Omnia per ipsum facta sunt, et sine
ipso factum est nihil, quod factum est; in ipso vita erat, et vita
erat lux hominum, et lux in tenebris lucet, et tenebrae eam non
comprehenderunt.
Em princípio era verbo, e verbo era aposto a Deus, e Deus era verbo. Ele era em princípio aposto a Deus, a união por Ele foi feita, e sem Ele nada do que foi feito foi feito. Ele era vida. E vida era a luz humana. E a luz luziu nas trevas. E as trevas não a compreenderam.
/Ressalva e Paráfrase/
Tudo bem. Podem parar de rir. Já sei. Quer dizer, suponho que sei a primeira coisa que alguém vai implicar com. E naturalmente é com esse “ferrabrava”. Não existe o verbo “ferrabrar” em português. Mas o termo foi lapidado para equivaler ao som no latim “ferebatur super aquas” (“movia-se sobre a água”). O termo, de resto, repassa uma ideia de convulsão, de movimento. Algo como um ferreiro forjando seu ferro. Esforço análogo ao do Senhor ao criar o mundo. E por outro lado, o termo não esquece da infância da gente, vizinha de nossa própria criação. Ou seja, do tal gigante Ferrabrás, de quando éramos pequeno.
Feita a ressalva, podemos prosseguir.
Talvez o que mais pasme nos jovens, é que eles são todo intuição. Ora, isso por um lado é excelente: intuição é mais da metade do caminho. É aquilo que se oferece de graça ao espírito sincero e, portanto, ao jovem. E, contudo, o resto do itinerário da escrita é árduo. É feito queimando combustíveis fósseis ou orgânicos. Quer dizer, um duro danado foi dado por sucessivas gerações no passado. E é esta faina incessante, que "ferrabra" ao longo dos séculos, o que mantém a chama acesa e nos dá de comer. É dela que nos nutrimos, quando falamos no palavrão que os jovens mais detestam: forma. E é uma pena que detestem. Pois sem ela é impossível comer beleza ou digeri-la.
Forma nada mais é que o corpo e o sangue dos escritores que vieram antes de nós. É como se para escrever fosse preciso queimar algo na noite, como se queima a cera das velas, o querosene dos miasmas, o azeite das mamonas, o sebo dos círios. Esse combustível orgânico ou fóssil chama-se tradição, chama viva que passa de uma geração a outra sem apagar. E a tradição é pesada. Sobretudo a todo aquele que a desconhece ou a nega, pois para este ela se converte num fardo. Tradição, aqui, não tem a ver com algo conservador em termos políticos ou psíquicos. Bem ao contrário, trata-se da única forma de agir revolucionariamente. É reacendendo certos valores da tradição – que são implicitamente bons, mas que a convenção social em hipocrisia deformou – que se muda para melhor uma sociedade. A rigor seria escamar a tradição do que se entende erroneamente por tradição e não é. Quer dizer, sobretudo saber separá-la de certo moralismo tacanho ou catolicismo de sacristia. A revolução nada mais é, assim, que um des-deformar esses valores. Em arte, como nos explica Ortega y Gasset, o modernismo agiu desse modo. Por oposição.
Um pintor ao apelar para a deformação do traço, quer reachar o traço, ao apelar para a cor básica e tosca, quer reachar o sentido original da cor, perdidos que foram de tanto esses traços e cores serem empregados em hipocrisia e mimetismos doentios por uma sociedade deformada. O perigo de doutrinas como o politicamente correto mora justamente aqui. Contra o que elas se insurgem é, mais das vezes, pertinente. E, no entanto, ao eliminar o problema, elimina-se junto a solução – que passa pelo filtro da tradição.
Um pintor ao apelar para a deformação do traço, quer reachar o traço, ao apelar para a cor básica e tosca, quer reachar o sentido original da cor, perdidos que foram de tanto esses traços e cores serem empregados em hipocrisia e mimetismos doentios por uma sociedade deformada. O perigo de doutrinas como o politicamente correto mora justamente aqui. Contra o que elas se insurgem é, mais das vezes, pertinente. E, no entanto, ao eliminar o problema, elimina-se junto a solução – que passa pelo filtro da tradição.
Dizer, por exemplo, que vale tudo, que não se deve apelar para uma norma culta no português ou deixar de ensiná-lo, via essa norma culta nas escolas, é algo terrível. Ainda assim, há linguistas que defendem isto. A exemplo de Bagno. Como pode ser? Porque se este ponto de vista for validado, assumido pela sociedade, em umas poucas gerações a língua não só será “esquecida”, como fragmentar-se-á em diversos dialetos e idioletos não comunicáveis entre si. O resultado seria uma confusão medonha. Uma verdadeira babel. Alguém do Acre seria incapaz de se comunicar com uma menina no Espírito Santo. Ou compreender um programa de TV produzido na Paraíba. O que, em última instância “dá liga” para que diferentes regiões, países ou temperamentos culturais – e tão importante quanto, diferentes tempos também – se comuniquem é a obra dos grandes autores do passado.
Por outro lado, a forma de manter a chama acesa é ler, entender, amar os clássicos. Porque neles está sedimentado o combustível fóssil necessário para manter acesa qualquer modalidade de escrita.
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