quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

O Pessoal do Ceará - ou o elogio do exilado


Gabriel Andrade, 2006





O tamanho da Estrada de Santana
- sobre o ‘Pessoal do Ceará’

Naquele tempo e por uma série de razões a canção popular era um veículo opulento. O mercado ainda não estava tão estruturado. E havia um limite, um constrangimento à criação, que, paradoxalmente, a desafiava: a falta de liberdade de expressão. Mas havia também o fato mais ou menos cru de que os consumidores de disco eram quase que exclusivamente de classe-média. E, claro, de uma classe-média que pela primeira vez na história do país se beneficiava de uma educação universitária massificada. A década de 70, no rescaldo dos inquietos 60, viu surgir pólos de criação onde houve universidade forte fora do eixo Rio-Sampa: na Bahia, em Minas, no Recife e em Brasília. Mas Fortaleza também esteva presente e de forma marcante.
O que se convencionou chamar de Pessoal do Ceará não é uma ficção. Mas um grupo que de forma mais ou menos organizada soube repartir tarefas. Entre intérpretes, compositores, letristas, instrumentistas, produtores, vimos surgir nomes como os de Raimundo Fagner, Belchior, Ednardo, Petrúcio Maia, Fausto Nilo, Brandão, Téti, Rodger Rogério, Ricardo Bezerra, Manassés de Sousa, Cirino, Augusto Pontes, Marta Lopes e tantos outros.
Em particular, salta aos olhos a inata qualidade literária do texto de certas canções. Brandão, Belchior e Fausto Nilo contribuíram bastante neste sentido. As letras de Brandão são como poemas autônomos que por acaso foram musicados, tal sua excelência. Belchior foi, então, um atento ouvinte de Dylan, de Cohen e de outras grandezas do universo pop. E Fausto Nilo, uma mente arejada o suficiente para pensar a palavra em música como uma amplidão de espaço que vaza para fora do som -- embora, antes amolde-se bem a ele. A diferença aqui é que todos os três não pensavam apenas em música. Pensavam mais longe, em algo que sendo uno é diverso, e responde pelo nome de arte. Como a vida.
Por seu turno, há um aperreio e um improviso muito grande em certas gravações se contrapostas à assepsia sonora de hoje. Quando se escuta coisas como “Estrada de Santana” dá para perceber o quanto há de bricolagem nessas sessões de estúdio. Algo que está sendo resgatado, no momento presente, pela pesquisa esquizofrênica e ousada de Dustan Gallas: soar artesanal dentro de um estúdio digital. No caso dessas sessões de estúdio nos 70 eram quase gravações ao vivo. Ou pouco mais que isto. Havia uma comovente simplicidade e falta de atavios, que faz lembrar velhas (e doces) senhas: “da rodoviária para o estúdio”, “arrumar o cabelo e seguir”, “meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem”.
Sofisticada artesanalidade. Tempos de constrangimento geram uma arte exigente assim. Há algo de muita emergência em canções como "Estrada de Santana". Algo que nos compele a percorrê-la de novo a cada vez que a escutamos. O lirismo misterioso, tenso e brilhante desse texto vale por dias bonitos de chuva: "Quem ouviu passarinho cantar,/ao meio dia, no silêncio de um lugar,/sozinho e sozinho esperou/que a noite trouxesse a esperança do sonho/ e a companhia do luar".
O que seduz nessa canção não é apenas sua vivaz referência à paisagem de um interior qualquer do Ceará. Mas o modo como ela nos instala lá: os passarinhos, o riacho temporário, a mata, o pequeno cemitério rural, etc. E, no entanto, escutando-a com melhores fones-de-ouvido, percebemos que essa vivacidade vem menos por conta da descrição da paisagem e mais pelo fato de ela ser evocada por um exilado: "Mas sou eu que não posso voltar//Não, não, não corro a Estrada Velha de Santana [...]". Essa impotência de estar nos lugares da eleição pesa nas carnes do cearense como uma maldição de proporções devastadoras, bíblica mesmo.
Em "Estrada de Santana" o migrante exilado mal dimensiona, de fato, o pedaço de vida que lhe foi roubada - embora sinta na carne que o foi: "Sem jamais entender o que alguém perdeu./ E perdeu, e ficou assim." Este "assim" ganha uma função adjetiva, como na fala popular. Algo que se aproxima de "desalento", "desesperança". Segue para além de uma simples e casual troca de estado de humor. Implica algo mais fundo: uma mudança na personalidade por razões de saudade de casa.
Ora, nenhum outro povo do Brasil, como o cearense, é mais especialista nisso: saudade de casa. E porque vivemos no mundo. E, claro, nem sempre por escolha. Assim "Estrada de Santana" assoma como mais uma das grandes canções de exílio que povoam o cancioneiro cearense. Um ilustre conjunto que vai de Catulo da Paixão Cearense (que era filho de cearense migrado para o Maranhão) ["ah, que saudades do luar da minha terra!"] e passa pelo ciclo de letras composto por Humberto Teixeira para músicas de Luiz Gonzaga e que incluem clássicos como "Asa Branca".
No início de "Tudo Outra Vez", Belchior nos diz: "Há tempo, muito tempo que eu estou longe de casa/ E nessas ilhas, cheias de lembrança/ Meu blusão de couro se rasgou". É claro que estas palavras possuíam, à época, uma ressonância e uma urgência política mais vasta, mas não menos radicam nessa tradição do exílio. A mesma cantada por Ednardo ("Eu venho das dunas brancas/ De onde eu queria ficar"). É apenas notório que, por razões óbvias, os duros anos de ditadura tenham acerado ainda mais essa condição de exilados.
Mas também em “O Astro Vagabundo”, de Fausto Nilo, há inquietações de sobra para traduzir esse período. Qualquer coisa de muito sombrio e belo habita nessa canção. Nela o exílio capaz de driblar uma espécie de apocalipse ao mesmo tempo iminente e cotidiano – ou seja, feito daquelas simultaneidades possíveis só em sonhos – é a clássica imagem dos trovadores para o órgão sexual feminino: o pequeno jardim cercado, o Éden. Dormir nesse jardim é o lenitivo. Esquecer por um lapso o pesadelo da realidade. O arranjo de cordas (que é de Wagner Tiso), os teclados, a amargura, o dilaceramento da voz de Fagner, exaltando-se na segunda parte, tornam a canção de uma sinceridade irresistível.
A lista é longa e a letra é breve. Se pode falar desse período como daquela “noite posta sobre a mesa” de “Asa Partida” – onde, aliás, há este verso que praticamente resume tudo: “eu não queria a vida desse jeito”. Ou seja, essa saudável inquietação diante de uma realidade extremamente defeituosa. O Pessoal do Ceará pôs essa noite sobre a mesa com uma impressiva nitidez. Há o magistral (e majestoso) final de “Pavão Mysteriozo” ("Eles são muitos/ Mas não podem voar"), carregado de utopia como nuvens densas num sertão de muitos meses de estio. Quer dizer, "eles" - todos que não os migrantes - são muitos, também no sentido de poderosos. Mas não tem a dimensão do vôo, do sonho, alimentados por essa torturante saudade de casa que ensina mais do que qualquer escola, porque constitui em si uma odisséia. O tema também reincide na delicada geografização de “Pequeno Mapa do Tempo”, de Belchior, com seus requintes de analogia entre a sonoridade das palavras e a concreção dos lugares citados. E em que tudo segue em suave crescendo até se chegar à "estrela do norte/Paixão, morte é certeza", que repõe Fortaleza no seu devido lugar - como uma espécie de Jerusalém. Ou, ainda antes disso, claro, essas velas do Mucuripe saindo para o risco e para uma intemporalidade maior do que a morte.
Quase como último espasmo coletivo, houve o disco-coletânea Massafeira. O disco surgiu como o registro e o subproduto mais notável de um evento mais amplo, envolvendo artes plásticas e performances que ocuparam o Theatro José de Alencar e marcaram época em Fortaleza. Um empenho pessoal de Ednardo, com co-produção de Augusto Pontes, que sempre foi uma sorte de coringa ou eminência parda da galera. Massafeira, o álbum duplo, marcado pela diversidade, é uma espécie de limiar entre gerações. Hoje, um notável cult. Em “Frio da Serra”, a interpretação de Marta Lopes é preciosa. Vívida. Cheia de frescor: "Lá embaixo, no espaço/ as casas estão com frio". Há algo mais cearense do que o modo como ela pronuncia palavras como “poste” [pósti], com esse "s" tendendo a 'sh'; ou, sobretudo, “dinheiro” [dim-êro], onde o "h" é quase supresso, na bela letra de Brandão? [Coisas assim são de grande vigor cultural, embora passem longe do estereótipo ou do sotaque da telenovela]. Outros destaques vão para a barroca balada “Atalaia” ("paisagem de agreste clarim") interpretada à Fagner por Ferreirinha [Francisco Casaverde]; o bandolim do multinstrumentista Zé Maia em faixas como “Vento Rei”; o espontâneo talento de Wagner (depois Tazo) Costa - à época pouco mais que um menino - em "Isopor" ("Eu vou sair desse jogo malvado,/ Você só quer me ganhar"); e a copla medieval “Aurora”, cantada por Ednardo e Belchior, onde ocorrem versos como “sonhos de aurora eu sonhava/ no colo de minha irmã”, ou ainda: “abre as janelas, manhã”. Aqui, a manhã entra em vocativo. Conversa-se com ela. E essa prosa parece remeter para uma daquelas casas sertanejas: brancas alpendradas, de pé-direito baixo, perto de um açude. Casas de onde nunca deveríamos ter saído, fosse este mundo mais justo. Ou nossa república menos imperfeita.
A importância de Massafeira, tanto enquanto evento como em seu registro fonográfico, ainda resta por ser dimensionada. A impressão, para quem a testemunhou, era a de uma tempestade pop, que até então só víamos no cinema, desabando ao vivo e em cores, durante quatro dias, em Fortaleza. Para descrever o evento, usou-se no encarte do álbum duplo a expressão "carnaval fora de época". Até entende-se o que se quer dizer com isso. Porém Massafeira foi muito além do que esta expressão tenta traduzir. Afinal, carnaval fora de época - hoje em dia - está mais para algo como a micareta, o Fortal ou alguma estupidez do gênero. O que seduzia na imensa festividade, no exótico, na diversidade, naquele sobejo de contracultura - o fetiche das guitarras e amps, a tal "velha roupa colorida", os cabelos invariavelmente longos, desgrenhados - era a atmosfera em si. E isso tudo numa acanhada capital do subúrbio, em plena linha do Equador. Na periferia da periferia do mundo. Aquelas guitarras rascantes ecoando pelas galerias e entornos de seu pequeno e charmoso teatro. Era algo de uma notável sugerência de novidade e vida. E, melhor, de novidade na diversidade. E num tempo em que, por mordaças várias, estávamos apenas começando a saborear a delícia de expressar-nos sem censuras. Inclusive as das patrulhas ideológicas de esquerda. Para um povo, como o cearense, tão pouco afeito a manifestações assim - mais gregárias, em que o herói são todos e nenhum - o evento resta quase como um marco, nota dissonante. Mas de uma dissonância alegre, espontânea e promissora. O que Massafeira legou foi uma enorme fé na capacidade de elocução coletiva a partir de uma Fortaleza, convenhamos, bem mais provinciana que hoje. Não por acaso, chegou a despertar ciúmes em outros estados. Daí que não poucas matérias ao se referirem ao evento, ou a seu registro em disco, insinuarem que a gravadora CBS - a hoje Sony Music, uma das mais poderosas multinacionais da indústria fonográfica - ser acrônimo de Cearense Bem Sucedido, em referência ao poder de barganha do grupo (em especial de Fagner) junto à direção da empresa.
Em tempo, há dois discos que decretam o ponto final desse impulso: o próprio Massafeira, no plano coletivo; e o álbum Beleza (1979), de Fagner, na esfera mais individual. O álbum é de uma formosura dilacerante. Poucas composições. Arranjos opulentos, sob a supervisão de João Donato. Um time de músicos estelar. Não há uma única faixa onde não reincida o título do disco. Inclusive a própria faixa título, com letra de Brandão que é verdadeiro achado ("e quando se vê o arame/ que amarra toda gente/ pendendo das estacas/ sob um sol indiferente"). A plangência da voz de Fagner chega a seu paroxismo. Guarda mesmo algo de indizível, limítrofe. Em todas as trilhas, tudo é asa partida, dor. Por exemplo, em uma canção (por sinal subestimada) como "Quer Dizer". Pode-se sentir a cinco quadras de distância a potência elegíaca desse conjunto de canções tristes. A suíte de um trabalho de luto. Luto individual, mas que também se pode entender como canto de cisne ou estender como mortalha dessa fase heróica do Pessoal do Ceará.
Não é nehum segredo de estado, aliás, que os três nomes mais rutilantes do grupo não são propriamente os melhores amigos na face da terra. Mas é ao menos um consolo relembrar que, em tempos idos, eles já se envolveram em colaborações mais estreitas. Desde então, Belchior tem trabalhado anos a fio na estrada, em turnês - sobretudo pelo interior de São Paulo e pelo Sul. Ednardo exerceu trabalhos diversos a partir do Rio, sua base. E Fagner, após um começo fulgurante - a exemplo dos dois outros - em que teve discos tão experimentais como Orós, com colaboração de Hermeto Pascoal - cortejou o mercado de forma mais agressiva e popularesca.
Mas o tempo passou. Será que hoje ainda seria possível produzir, por acaso, um disco conceitual com a contundente amargura de Beleza? Ou um exeperimental com as mirabolâncias de Orós?
Difícil responder. Os tempos são outros. A própria noção de disco é já tão outra. A importância das grandes gravadoras foi alvejada em cheio pelas novas mídias digitais. O que era um sonho distante, remoto, só possível no Rio ou em São Paulo lá pelos já distantes anos 70, é algo que está ao alcance de qualquer cantor de banheiro: gravar um disco. Levas de cd's produzidos e gravados em Fortaleza são despejados no mercado mês após mês. Mas qual de fato a importância da primeira geração que, de modo coletivo, dotou o Ceará de uma voz e de um sotaque bastante distintos?
O tamanho dessa Estrada de Santana é uma boa medida para se sair atrás de uma resposta. Daquelas capazes de preencher a moral de uma história. O momento foi ímpar. E eles eram jovens. Não houve solução de continuidade. Ou sequer uma geração subseqüente que soubesse abiscoitar essas finezas. Dialogar com elas. Como quase tudo neste país, esse momento não se desdobrou para fora de si. Cristalizou-se. E claro, a vida não estava ganha. E era preciso ganhá-la. Nesse processo, se foi um pessoal. Alguns devotaram-se a um sucesso um tanto tacanho. Outros desapareceram dentro daquela noite. E a mesa em que ela estava posta, por um mau agouro, talvez se tenha convertido apenas num balcão para negócios sortidos e bem menos espontaneidade e arte.
Quantos de fato souberam do tamanho dessa estrada?





Nota - artigo originalmente publicado no jornal O Povo, em 2003, em versão abreviada. Dica: é possível baixar na íntegra o álbum duplo Massafeira (1980) pela internet.



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