Francis Bacon, 1949
Para passear por fora do próprio crânio
The most obvious, ubiquitous, important realities are often the ones that are the hardest to see and talk about. [David Foster Wallace]
Os perigos de pensar que o estético é auto-suficiente é também o perigo de desistir da perspectiva realista em arte.
É o momento terrível de se pensar que se perdeu de uma vez e para sempre as chaves de decifração do mundo. A possibilidade de contato com ele. É contra isto que se insurgiu a mente brilhante de, digamos, um David Foster Wallace. Ele percebeu algo contra o qual se insurgir em sinceridade: o cinismo e a hipocrisia contida na estética de alguns dos prosadores pós-modernos que vieram antes dele, por mais brilhantes que fossem enquanto escritores dotados de uma técnica: Pynchon, DeLillo, Coover, Burroughs, Gaddis, Barth.
O experimentalismo em arte não pode se auto-nutrir. Ou ser feito deixando os outros de fora. Os outros estão no mundo, concretamente. Ainda não existe um corpo virtual. Não se pode escolher uma outra humanidade, virtual, para conviver com ela nos termos ideais que se deseja por capricho ou volubilidade.
Ora, deixar os outros de fora, equivale a deixar o mundo de fora. A se estar completamente vedado dentro de si mesmo. Sem um canal de comunicação com a realidade que passe pelo mínimo poro do corpo. O que sai do devaneio narcisista, do fechar-se-sobre-si a partir de referências livrescas ou profusocitações, de alguns, é apenas ruído. Narcisismo inconsistente, vanguarda árida, dandismo inconseqüente. Mas não arte. Ou sequer pensamento estruturado em honestidade.
Esses prosadores pós-modernos, de início, tinham uma missão que parecia de todo razoável. Sua missão era a de denunciar que o modo realista como a literatura estava tentando traduzir o mundo, à altura dos turbulentos anos 60, era equívoco – porque suas convenções já estavam desgastadas, rotas, cansadas, convencionadas e aclichesadas demais – para dar conta do mundo. Então, era necessário apontar essas fissuras e debilidades. Ou o modo como elas eram tomadas em naturalidade. Mais ou menos como o cinema de montagem “invisível” hollywoodiano foi denunciado pela perspicácia dos “jovens turcos” franceses, do cinema-novo.
O que tornava o realismo clássico – bisneto de Flaubert, neto de Joyce e Hemingway, filho de Bellow – inviável para a época, era que a própria realidade já nem de perto era a mesma dos tempos desses heróis do modernismo. As sentenças criptográficas de Pynchon; os artefatos auto-canibais de Coover; as intrusões narrativas de Barth, o cinismo programado de Borroughs, tudo isso se arregimentava para estilhaçar a hipocrisia de uma sociedade pós-industrial complexa, monstruosa, excessivamente afeita ao consumo, à abundância, ao mesmo tempo que desprovida de qualquer idéia de sacrifício por parte do indivíduo. O ponto é que ao desenvolver tal projeto, essa geração de escritores conseguiu apenas legar a seus leitores e epígonos hábitos de escrita e normas estilísticas como um valor em si. Ou seja, a segunda parte do caminho, o reencontro com o mundo, restou secundarizada e amesquinhada no processo. Ou simplesmente não existiu.
Portanto, esses prosadores, de meados dos 60 aos 90, se empenharam mais em denunciar a má representação do mundo por uma realismo cansado – tarefa negativa – do que em achar uma alternativa possível para essa representação. E, assim, a meio-caminho ficaram presos, siderados pela própria perspicácia de sua denúncia. Deslumbrados com suas habilidades de artesãos da denúncia. Como artesãos eles agiram, malcomparando, como carrapatos: sugaram o sangue do cavalo que parasitavam – e que se chamava realidade – mas foram incapazes de plantar seu próprio de comer no solo dessa realidade-cavalo. O mundo foi abandonado em favor de um universo estético fechado, repleto de devastadoras ironias e cinismos sem referencialidade. Uma grande farra estética. Vigorosas demonstrações de virtuosismo, como naqueles longos solos de guitarra onde, por vezes, há mais datilografia veloz que propriamente melodia, paixão, engenho e algum sentimento humano: seja suave, seja sonoro e furioso.
Esse louvor da arte como um valor em si (no fundo, aurático, religioso – e logo, idólatra –) é a mesma pasmaceira que se nota em alguns artistas por toda parte hoje em dia. [E, inclusive, claro, também aqui pelo Brasil, em diversas áreas: poesia, audiovisual, dança, artes plásticas, etc.]. Artistas que, cheios de ilusão – e não de fantasia radicada no real – entendem que o pequeno mundo que constroem dá conta de ler as realidades que estão lá fora. Ou ainda pior, estão convictos: é impossível lê-la.
O ponto, aqui, é que as obras gestadas por esses artistas sequer se põem a serviço de apaziguar o espírito do próprio artista que, mesmo sem nelas acreditar, necessita continuar elaborando-as “daquela” maneira niilista para não se ver face a face com sua própria hipocrisia ou mediocridade. A renúncia ao realismo – a um realismo complexo, sopesado, buscado, de nova estirpe – conforma também um auto-consumo da própria arte como uma sorte de droga em nada diferente do tabaco, do álcool, da maconha, da cocaína, da heroína, do blogue como purgação do tédio, do fumo de mascar, das horas na academia esculpindo o corpo, das telenovelas ou das bandas de forró que soam uníssonas.
Dependência que vive de si. Para si. Que causa paralisia. Que é vício, não virtude. Engessa. Mesmo quando se pensa estar produzindo feito um escravo de Jó. Essa dependência torna o artista incapaz de saltar para fora de seu ciclo auto-semovente. De seu umbigo repleno de hedonismos, bocejos, ironias e pseudo-sofisticações. Artefatos exóticos, esquisitos – supostamente bebidos em fontes da cosmópolis, porque alavancados pela internet –, mas formalmente ocos é o que surge desse deplorável mundo novo em que o artista posta em segundo plano o que é necessário em favor do como é necessário.
Uma perspectiva maneirista, fechada sobre si mesma. Tumular. É nessa perspectiva, amaneirada, afrancesada nas idéias, muito afeita a sofisticar coisas simples, que muitos optamos por viver. Dos nacos de uma linguagem prolixa, que, apesar de criar conceitos em espantosa voragem, não resiste quando é torcida pelos dedos ásperos do cotidiano – como se torce café num daqueles velhos panos enodoados pelo uso. Aqueles que por mais que se lave, ainda se fica com impressão de que a alma dos grãos de café nele restam como por um golpe de inércia ou pela misericórdia do ato enquanto rotina inescapável.
Porém há mais dignidade nesse pano enodoado pela necessidade de se fazer, diariamente, com paciência e método, com experiência, uma boa medida de café, forte e aromático – para se saborear melhor a manhã antes de se lançar à rotina dos dias – do que nessas trívias espúrias de tornar a arte o lenitivo químico da vez: tolas instalações de panos ou lençóis pendendo de um varal, por exemplo.
A questão aqui é que o varal da instalação não resguarda um segundo moral do varal real, em que a lavadeira estende com mãos rachadas a sua roupa recém-lavada. Porque são precisamente as ranhuras nas mãos rudes da lavadeira, grossas como uma casca, o que empresta dignidade ao lençol que a brisa agita, feito uma bandeira branca sopre o capim da várzea à volta da lagoa. É o costume, a rotina desse estendimento o que não vaza para a instalação. O gesto do costumeiro. O relógio das tarefas longas e pacientes, onde o amor reside de modo tão pouco atraente. Porque as verdadeiras formas do amor nada tem de glamour. Pois, sendo as mais belas, conseguem ser também as mais úteis.
E, portanto, são essas as mãos que sempre ficam do lado de fora das instalações. Justo as que mais precisariam ser internalizadas, porque conhecem seus assuntos desde dentro, a ponto de serem só um com eles. E, logo, a instalação se situa milhas náuticas de distância de qualquer possibilidade de interação com a história e com o passado comum. Afinal, “o mundo não pode ser representado ou revelado”.
E é pensando por aqui que também se pode divisar: não se pode assumir o mundo como capricho. Com o espírito do volúvel. Do tipo, resolução repentina: agora vou inovar. Ou isso é ingênuo demais, ou embute má-fé. Má-fé consciente ou sub-reptícia. Mas mesmo quando sub-reptícia, ela se vai explicitando, ao longo das horas, dos dias, dos anos. As possibilidades de uma inovação verdadeira, em arte, sabemos, são escassíssimas. E radicam também num mapeamento do local. O local aqui no sentido mais prosaico: os vizinhos, o boteco, a rua, o bairro, a cidade, as palavras que te cercam.
Toda a vontade legítima de inovação aponta para um ângulo inevitável: a superação do que já foi feito. Ora, superar o que já foi feito, ou, no mínimo, expressar-se com a unicidade de uma voz achada, requer horas queimando pestanas e apurando o que de melhor já foi gestado, imitado, jogado, brincado, citado, digerido, variado, tresvariado, dissonado, etc. E isso vinculando a área específica em que se age com o contexto amplo, macro, do atual, da circunstância. Mas, aqui, pelo menos, há duas coisas: 1. a necessidade de se aprender com o passado – única possibilidade real de se estar no presente de modo alerta, à altura do presente e 2. ascese (que, originalmente em grego quer dizer “exercício” e, portanto, rotina, esforço continuado e também atenção – no sentido de concentração extrema, extática: êxtase).
A raiz da palavra ascese não indica apenas o esforço do místico para se lavar das impurezas do mundo, mas, indo bem mais longe, um exercício capaz de tornar esse mundo mais cômodo e habitável. Fruível. Também para os outros. O custo disso está encascado na mão da lavadeira. Mas é só por conta dessa casca que o mundo torna-se um lugar menos insalubre para os que virão depois de nós. Sobre esse segundo ponto, o da ascese, Auden nos diz que “rotina num jovem é sinal de [boa] ambição”. Sobre o primeiro argumento, o da necessidade da memória e do passado – de onde se decalca, entre outras, toda a obra de Benjamin – há a afirmação de outro mestre alemão, Karl Kraus: “o historiador é como se fosse um profeta olhando para trás” (e quem aqui não lembra, é quase automático, do Agelus Novus benjaminiano?). Mas claro, só após esse exercício das articulações do pescoço, do olhar para trás sem virar estátua de sal, é que se pode divisar melhor os próprios dias que correm. Os dias em que moramos, no dizer de Larkin.
George Oppen, escritor acima de qualquer suspeita – pois passou quase 25 anos sem escrever poesia porque havia coisas “mais importantes” onde empregar as mãos – é um testemunho disso. Quando o poeta Richard Wilbur insinua que é preciso afastar-se da esfera do discurso – ou seja ocupar-se com experiências que nada tem a ver ortodoxamente com a área lingüística, da poesia, para poder retornar à poesia com a precisão do artesão – ele está também indicando que não se pode escrever a não ser a partir de experiências sedimentadas com o mesmo vagar com que os detritos, os pequenos seixos, o cascalho, as cracas, ostras, algas, sargaços, restolhos e restos de mariscos se deitam no leito de um rio, ao longo de anos, décadas, séculos – tempos sem tempos – conformando o próprio leito do rio. Tornando-se um com ele. Em causalidade e tempo longo. Ao mesmo tempo ele e sua memória. Eis a imagem para o artista e sua arte.
Na escrita – ou em qualquer outra linguagem – se dá o mesmo. E esse sedimento de experiência, essa crosta do já vivido, é tão preciosa quanto a própria vida do artista, porque assenta nas suas reminiscências. Cair na ilusão de uma arte que sai de tua cachola sem relacionar-se com a concretude – inclusive material, apalpável, farejável, degustável, visível, memorável – do mundo é conversa para um rebanho de búfalos cochilar, mesmo se com os cascos afundados na lama mais densa dos charcos e igarapés – com vivazes vitórias régias e profusos aguapés – da Ilha de Marajó. Tentar tornar arte e memória, arte e história compatíveis é uma das poucas tarefas que restam a um escritor, a um artista. Foge da gratuidade de uma arte que se compraz apenas de virtuosismos irônicos e jogos de estilo.
O resto, é recepção acrítica de teorias da recepção, classes de redação criativa, escombros do politicamente correto e as prolixas lições pós-modernistas à francesa.
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