Tiago Santana, 2003
Onde o sol dá xeque-mate à tristeza
Imagens do Ceará, de Herman Lima, Edições UFC, Coleção Alagadiço Novo, 1997.
Dos escritores cearenses poucos são tão prazerosos de ler quanto Herman Lima. Não falo dos incorrigivelmente cultos, corretos, de consagrada mestria. Se você anda atrás disso, é melhor se ocupar com Alencar, José Albano, Gustavo Barroso. Os livros de Herman Lima são irregulares. Salta-se de uma página admiravelmente composta para a seguinte, onde há pedantismos, incorreções, equívocos históricos, sentimentalismo em excesso. Mas isso não o diminui. Há algo nele que só encontra paralelo no Gustavo Barroso memorialista. Algo que brota da gratuita pulsão do colecionador. É assim. Herman Lima é possuído de um afeto que quer ressuscitar tempos, lugares. Literalmente. Sem mediação de ficção.
É claro que ele não consegue. E é também em parte por essa não consecução que sua obra de memorialista se estabelece em toda sua dimensão e humanidade. Não sendo a narração o forte de Lima, ele se especializou em captar atmosferas e anedotas -- quase todas coadas num filtro doméstico. É um perito em paisagens, climas, texturas, gestos coletivos, lentas artesanias intuitivas, cores, coisas apreendidas pelos sentidos. É bem mais efetivo -- mas não menos coletivo -- quando se afasta do épico, debruçando-se sobre o concreto dos pequenos afazeres que tomam tempos longos. Seus livros celebram um espécie de etnologia poética. Sua escritura é colorida e solar. Sinestésica. De cortes rápidos, descontínuos. Essencialmente visual. Muita atenta ao digníssimo reino dos detalhes. Às polainas dos dias.
Imagens do Ceará não está sequer na primeira linha da obra de Lima. Não tem o volume e a distância de Poeira do Tempo. Não é difícil perceber no livro inadequações, descontinuidades, falhas. E, no entanto, bem presente assoma essa marca amorosa do colecionador. Esse desejo, impossível, de retorno a tempos e lugares. Ou a vontade de legar para adiante uma cidade e um tempo irremissivelmente desmontados. Um proustianismo. Escrita feita expressamente desde experiência e testemunho.
O Ceará das imagens de Lima é Fortaleza e, quando muito (um único capítulo), deriva para os sertões jaguaribanos com o Aracati na foz. É só isso.
É só isso mas está lá, repleto de sensações. Está lá propiciatório. No sentido de nos inclinar para o resgate de dimensões históricas que estariam perdidas para sempre. De distendê-las, dimensioná-las com vasto senso de inscrição no fluxo do tempo. Um dos capítulos começa com uma definição da cidade de Nossa Senhora da Assunção que é quase um hai-kai: "Fortaleza é um tabuleiro de xadrez colorido, em que o sol dá xeque-mate à tristeza o dia todo".
Pode ser. Pode ser assim, solar. Mas o centro desse espaço é o sítio da família, no Meireles. Para onde tudo converge. Para onde Lima está sempre voltando de férias. É isso mesmo. Chega a ser engraçado, porque hoje o Meireles é um dos bairros mais verticalizados de Fortaleza. Mas, em meados do século passado, quando Lima vinha do Rio em férias, o sítio -- chegando cada vez mais perto da cidade -- ainda estava lá, em sua plenitude de quinta portuguesa, nos arrabaldes. Isso aí pelos anos 50.
Do sítio se sente tudo, até os cheiros. Estão lá os cajueiros, as guabirabas, mofumbas, pinhões bravos, jatobás, o alpendre com redes de varanda armadas, a aragem do mar quebrando ao largo, o ponto de passagem para o Mucuripe, o farol velho piscando lá, acima das dunas, as lagoas que encorpam nos invernos mais caudalosos, os três caminhos de acesso a Fortaleza. O que seguia para a Aldeota, então, atingia a cidade pelo Castelo do Plácido -- hoje, cruzamento da Santos Dumont com Monsenhor Bruno. Herman Lima é uma leitura que Miguel Angelo Azevedo (Nirez) deve fazer com um prazer tanto especular quanto labiríntico.
A marca amorosa do colecionador é patrimônio de ambos. É o eixo da escritura de Lima assim como das coleções de Nirez. Neles não há sistema, mas modos de sentir. Tempos e lugares escaneados pelos sentidos. No caso de Lima, que vive num exílio compensado por retornos esporádicos, o excesso de apego quase neurastênico às coisas passadas ronda o livro à cada página. Em certos trechos, tamanhos apego e sentimentalidade ameaçam amarrar de vez as páginas entre as capas. Expulsar o leitor, em sua intrusividade. E fechar o caso. Lima sabe o quanto um leitor pode ser abelhudo. Viver metendo o nariz onde não é chamado. Embora, em certas passagens, conceda ainda mais de pessoal ao leitor do que manda a prudência. Sua sensibilidade é a de um narrador à antiga, posto à prova de novidades nem sempre alvissareiras. Capaz de depurar um acervo coletivo de sabedorias. Ele nos conta de um pescador paralítico, de uma rendeira que era uma espécie de geômetra intuitiva, de uma cozinheira que conheceu a cidade grande (Recife) graças a uma mordida de cachorro. Seu reino é o das anedotas. Seu exílio, o da nostalgia que surge não como depressão mas remendo.
Mesmo um leitor desatento, no entanto, pode perceber a fixação que Lima tem pelo pai. O carinho pelas filhas. A reticência com que fala da mãe e da esposa. A obsessão com que diz da graça das "caboclinhas" -- filhas de pescadores das proximidades do sítio ou sertanejas que viu passar, enquanto feitor de uma estrada de rodagem, ligando o Aracati ao sertão do Jaguaribe. Algo do que também vai expresso em seu primeiro livro de contos, Tigipió. E, embora sua visão dos tipos cearenses -- vaqueiros, jangadeiros, rendeiras, personagens que fazem parte da mitologia do Centro de Fortaleza -- retenha algum estereotipia, há também coisas de um observador para lá de atento. Coisas que não podem ser vendidas em separado.
O noves fora é sairmos mais conscientes do espaço. Das inflexões passadas pelo espaço no correr dos anos. Esse filtro do espaço através do tempo é extremamente bem cristalizado. E o resultado é uma fina coleção de cristais. Ou uma pilha de roupas brancas, bem engomadas, depois de estendidas no quaradouro e batidas à quartzo e luz.
Por uma espécie de proustianismo muito próprio, Lima quer remontar o passado em um outro lugar. Sob outras circunstâncias. Ao menos uma vez recomposto. Para o prazer dos sentidos. Ou então, carregá-lo consigo. E seguir sendo fiel às boas promessas que não se realizaram.
É de uma visita ao Aracati, com impressões de beira de estrada bastante bem compostas, que sai o trecho abaixo, onde se nota, ainda uma vez, a necessidade de sequestrar o passado para outro lugar. Para perto do coração:
"Três vezes, subo e desço, no correr do dia a rua longa, parando aqui e ali na contemplação de algum daqueles sobrados de azulejos, todos de quadradinhos azuis e brancos, polidos ao sol, e que dão na gente a vontade maluca de carregar inteirinhos de avião, para morar no Rio..."
[Fortaleza, 31.07.08]
Nota - Esta resenha segue dentro de um gesto mais amplo que chamo de contra-resenha. Ou seja, resenhar livros que 1. não foram recém-lançados, mas mereceriam pelo menos serem relançados, dada a sua importância; 2. não fazem parte de qualquer interesse pessoal imediato de quem resenha (ou seja, no caso, de uma coleção que eu estou editando ou que um amigo meu está editando, o que um amigo de um amigo... etc.); 3. que apenas seja um bom livro, embora esteja passando despercebido porque, entre outras, foge à categoria imediatamente anterior. Outro dia, tentei pesquisar algo sobre Herman Lima na rede. Ora, não há sequer um verbete sobre ele na Wikipédia. E olha que Lima, entre outras, foi um dos grandes -- senão o maior -- estudioso da caricatura no Brasil.
É claro que ele não consegue. E é também em parte por essa não consecução que sua obra de memorialista se estabelece em toda sua dimensão e humanidade. Não sendo a narração o forte de Lima, ele se especializou em captar atmosferas e anedotas -- quase todas coadas num filtro doméstico. É um perito em paisagens, climas, texturas, gestos coletivos, lentas artesanias intuitivas, cores, coisas apreendidas pelos sentidos. É bem mais efetivo -- mas não menos coletivo -- quando se afasta do épico, debruçando-se sobre o concreto dos pequenos afazeres que tomam tempos longos. Seus livros celebram um espécie de etnologia poética. Sua escritura é colorida e solar. Sinestésica. De cortes rápidos, descontínuos. Essencialmente visual. Muita atenta ao digníssimo reino dos detalhes. Às polainas dos dias.
Imagens do Ceará não está sequer na primeira linha da obra de Lima. Não tem o volume e a distância de Poeira do Tempo. Não é difícil perceber no livro inadequações, descontinuidades, falhas. E, no entanto, bem presente assoma essa marca amorosa do colecionador. Esse desejo, impossível, de retorno a tempos e lugares. Ou a vontade de legar para adiante uma cidade e um tempo irremissivelmente desmontados. Um proustianismo. Escrita feita expressamente desde experiência e testemunho.
O Ceará das imagens de Lima é Fortaleza e, quando muito (um único capítulo), deriva para os sertões jaguaribanos com o Aracati na foz. É só isso.
É só isso mas está lá, repleto de sensações. Está lá propiciatório. No sentido de nos inclinar para o resgate de dimensões históricas que estariam perdidas para sempre. De distendê-las, dimensioná-las com vasto senso de inscrição no fluxo do tempo. Um dos capítulos começa com uma definição da cidade de Nossa Senhora da Assunção que é quase um hai-kai: "Fortaleza é um tabuleiro de xadrez colorido, em que o sol dá xeque-mate à tristeza o dia todo".
Pode ser. Pode ser assim, solar. Mas o centro desse espaço é o sítio da família, no Meireles. Para onde tudo converge. Para onde Lima está sempre voltando de férias. É isso mesmo. Chega a ser engraçado, porque hoje o Meireles é um dos bairros mais verticalizados de Fortaleza. Mas, em meados do século passado, quando Lima vinha do Rio em férias, o sítio -- chegando cada vez mais perto da cidade -- ainda estava lá, em sua plenitude de quinta portuguesa, nos arrabaldes. Isso aí pelos anos 50.
Do sítio se sente tudo, até os cheiros. Estão lá os cajueiros, as guabirabas, mofumbas, pinhões bravos, jatobás, o alpendre com redes de varanda armadas, a aragem do mar quebrando ao largo, o ponto de passagem para o Mucuripe, o farol velho piscando lá, acima das dunas, as lagoas que encorpam nos invernos mais caudalosos, os três caminhos de acesso a Fortaleza. O que seguia para a Aldeota, então, atingia a cidade pelo Castelo do Plácido -- hoje, cruzamento da Santos Dumont com Monsenhor Bruno. Herman Lima é uma leitura que Miguel Angelo Azevedo (Nirez) deve fazer com um prazer tanto especular quanto labiríntico.
A marca amorosa do colecionador é patrimônio de ambos. É o eixo da escritura de Lima assim como das coleções de Nirez. Neles não há sistema, mas modos de sentir. Tempos e lugares escaneados pelos sentidos. No caso de Lima, que vive num exílio compensado por retornos esporádicos, o excesso de apego quase neurastênico às coisas passadas ronda o livro à cada página. Em certos trechos, tamanhos apego e sentimentalidade ameaçam amarrar de vez as páginas entre as capas. Expulsar o leitor, em sua intrusividade. E fechar o caso. Lima sabe o quanto um leitor pode ser abelhudo. Viver metendo o nariz onde não é chamado. Embora, em certas passagens, conceda ainda mais de pessoal ao leitor do que manda a prudência. Sua sensibilidade é a de um narrador à antiga, posto à prova de novidades nem sempre alvissareiras. Capaz de depurar um acervo coletivo de sabedorias. Ele nos conta de um pescador paralítico, de uma rendeira que era uma espécie de geômetra intuitiva, de uma cozinheira que conheceu a cidade grande (Recife) graças a uma mordida de cachorro. Seu reino é o das anedotas. Seu exílio, o da nostalgia que surge não como depressão mas remendo.
Mesmo um leitor desatento, no entanto, pode perceber a fixação que Lima tem pelo pai. O carinho pelas filhas. A reticência com que fala da mãe e da esposa. A obsessão com que diz da graça das "caboclinhas" -- filhas de pescadores das proximidades do sítio ou sertanejas que viu passar, enquanto feitor de uma estrada de rodagem, ligando o Aracati ao sertão do Jaguaribe. Algo do que também vai expresso em seu primeiro livro de contos, Tigipió. E, embora sua visão dos tipos cearenses -- vaqueiros, jangadeiros, rendeiras, personagens que fazem parte da mitologia do Centro de Fortaleza -- retenha algum estereotipia, há também coisas de um observador para lá de atento. Coisas que não podem ser vendidas em separado.
O noves fora é sairmos mais conscientes do espaço. Das inflexões passadas pelo espaço no correr dos anos. Esse filtro do espaço através do tempo é extremamente bem cristalizado. E o resultado é uma fina coleção de cristais. Ou uma pilha de roupas brancas, bem engomadas, depois de estendidas no quaradouro e batidas à quartzo e luz.
Por uma espécie de proustianismo muito próprio, Lima quer remontar o passado em um outro lugar. Sob outras circunstâncias. Ao menos uma vez recomposto. Para o prazer dos sentidos. Ou então, carregá-lo consigo. E seguir sendo fiel às boas promessas que não se realizaram.
É de uma visita ao Aracati, com impressões de beira de estrada bastante bem compostas, que sai o trecho abaixo, onde se nota, ainda uma vez, a necessidade de sequestrar o passado para outro lugar. Para perto do coração:
"Três vezes, subo e desço, no correr do dia a rua longa, parando aqui e ali na contemplação de algum daqueles sobrados de azulejos, todos de quadradinhos azuis e brancos, polidos ao sol, e que dão na gente a vontade maluca de carregar inteirinhos de avião, para morar no Rio..."
[Fortaleza, 31.07.08]
Nota - Esta resenha segue dentro de um gesto mais amplo que chamo de contra-resenha. Ou seja, resenhar livros que 1. não foram recém-lançados, mas mereceriam pelo menos serem relançados, dada a sua importância; 2. não fazem parte de qualquer interesse pessoal imediato de quem resenha (ou seja, no caso, de uma coleção que eu estou editando ou que um amigo meu está editando, o que um amigo de um amigo... etc.); 3. que apenas seja um bom livro, embora esteja passando despercebido porque, entre outras, foge à categoria imediatamente anterior. Outro dia, tentei pesquisar algo sobre Herman Lima na rede. Ora, não há sequer um verbete sobre ele na Wikipédia. E olha que Lima, entre outras, foi um dos grandes -- senão o maior -- estudioso da caricatura no Brasil.
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