Hans Bellmer, 1937
Odalécio Sepúlveda
Apesar do nome, Odalécio Sepúlveda Calógeras era um ser humano normal.
Soltava pipas. Jogava bola e bila. Comia mariolas. Dançava São João, fartos bigodes e costeletas pintados. Nadava no rio; depois, na piscina. Brincava de roda. Andava de bicicleta. Soltava peões. E ouvia muitas histórias.
Era moderadamente querido pelos amigos. Achavam-no um pouco avoado. Mas nada que comprometesse.
Na escola, era mais para bom. Estava longe de ser cdf. Mas passava de ano. Às vezes, até fazia bonito.
Odalécio tinha uma queda por coisas que giram. Chegava a não completar frases, via o passarinho verde quando se deparava com um jipe passando na rua, rodas resvalando sobre o calçamento áspero: rumor de volume e borracha. Ou, então, uma colher-de-pau mexendo a massa do bolo:
-Acorda, Odalécio!
De pequeno, parava diante do prato do toca-discos. E não por causa de Vanuza cantando sobre a chegada do carteiro. Quando a vizinha brincava de bambolê, ela ganhava o aplauso do mundo. Mas sobretudo de Odalécio.
Ainda bebê, seu troço preferido: um chocalhinho de três esferas. A mãe já sabia. Se ele desandava a chorar, bastava vibrar o chocalhinho. Se aquietava. Mirava o objeto, cismado, reverente:
-Cadê o nenêm?
Quando o pai saía para a Sucam em sua bicicleta sem marchas, Odalécio, imóvel na soleira, via-o atravessar o quarteirão que não tinha mais fim, e perder-se atrás da esquina:
-É um apego com esse pai!
Tinha os sonhos que todo mundo tem: jogador de futebol, presidente do Brasil, surfista, cantor de iê-iê-iê. (Os sonhos que todo mundo tem sofrem apenas pequenos retoques de tempos em tempos: astro de futebol, presidente da União Européia, Rafa Nadal, DJ). E adorava marchar no Sete de Setembro. Pular na matinê de carnaval. Torcer pelo Ceará Sporting.
Outro sonho de Odalécio era ser inventor.
Porém este sonho ele não contava pra ninguém, porque lhe era muito tentador. Ah, o Professor Pardal! Que delícia seria estagiar em sua oficina, e construir todas as máquinas que a imaginação ditava. Máquinas de voar, navegar, namorar.
Um dia, Odalécio teve uma idéia. A de uma máquina que valesse por mil. Por todas.
Passou a semana polindo o conceito. Apelidou-a de correcionômetro. Já podia vê-la, chassi resplandecente, repleta de alavancas, bilotos, luzes piscantes e bizarras engrenagens.
Sua serventia seria uma e uma só: corrigir o mundo.
Por exemplo, fazer a colher de pau mover a massa do bolo sem as mãos da mãe – e, ainda assim, continuar sendo colher de pau. A bicicleta seguir em marcha sem as pedaladas do pai – e, a seu modo, não ser uma moto.
Também coisas mais simples ela poderia fazer. Dar dinheiro aos pobres. Nutrir os que tem fome. Remediar os irremediados. Extinguir a matemática. Criar cinemas sem ingressos. Reflorestar a Amazônia. Desradiotivizar Hisohima. Tirar a roupa da vizinha sem ela perceber. E, ao cabo de tudo, enforcar o Professor Pardal depois de uma semana de torturas crudelíssimas.
O que há de errado com o mundo?
ResponderExcluirBeijos.
o que você acha, cris?
ResponderExcluirbjs.
Que as pessoas estão equivocadas. Talvez precisem de uma chance para fazer o bolo só com a colher de pau.
ResponderExcluirBeijos.
ok, v. acha assim. mas v. acha assim só pqe. é uma alma boa, cris.
ResponderExcluir[rs]. basta ver a seleção de poemas q. v. posta no 'crisblogando'. ou então, os textos q. seleciona para o 'morenocris'.
instigante e desafiadora sua leitura, porque este texto, para mim, não é exatamente sobre mudar ou não o mundo (o q. ele até pode ser TAMBÉM). mas, de início pensei em escreve algo sobre matar o pai. matar o pai na acepção religiosa. no sentido do pai espiritual: o prof. pardal do relato. e, aqui, sem apelar para o modelo da psicanálise. apenas percebendo essa violenta pulsão q. temos para emular quem nos ensina, orienta, etc. especialmente numa época selvagemente iconoclasta -- no pior sentido -- como a nossa, cuja dinâmica se baseia na concorrência a todo custo.
bom. mas vou parar, antes q. eu escreva um tratado maior do q. o texto. no fundo, o texto quer dizer - um tanto lançando mão de humor, humor meio negro (ou negro e meio) - q. podemos ser bem violentos.
de qualquer modo, cada leitor faz do texto o q. quiser. e eu lhe agradeço demais por essa leitura.
bjs.
Acho que não é pelo 'negro' que devemos caminhar, mas pelo 'branco'. Se não, tudo ficará 'negro', será escuridão. Às vezes fico louca também com tanta loucura no mundo. Mas ele é só uma parte. Somos maioria. Tudo precisa de carinho, é a única saída. E ela está na sabedoria, mas nem todos são sábios. Somos todos inteligentes, mas não sábios. As palavras precisam de carinho também. E tudo inicia com elas, porque pensamos também com palavras. E você as conhece muito bem. Palavras que se chocam são palavras mal interpretadas, daí, a deformação do mundo. Palavras trazem lágrimas como também nos faz mostrar todos os dentes. Palavras nos tiram o pior e o melhor de todos nós. Devemos selecionar as palavras. Abolir o matar. Aceitar o amar. Sem resistência. Precisamos 'mundar' o mundo de palavras novas, como "baladas" em vez de balas, "beijar" no lugar de brigar, "caminhar", em vez de atropelar...veja, não são palavras novas em pronúncia, mas são em pensamento. Redescobrir a nossa natureza de pessoa humana. Redescobrir aqui não é de voltar, mas de renascer, que não é de nascer novamente. Podemos ser sem ter que voltar, porque ir é o comando.
ResponderExcluirBeijos.