domingo, 27 de julho de 2008

Uma fábula não de Esopo



Eva Zeisel, 1945








O Camelo e o Dromedário

Camelos e dromedários têm olhos tristes. Se vistos com vagar, atrás dos longos cílios, existe também a necessidade de zombar. Sonsice pressentida. O tipo da coisa que não se encontra naqueles viralatas do interior. Nestes há só uma amabilidade que não se tempera de qualquer sarcasmo. Uma doçura humilde, desamparada, de dar ganas de levar pra casa.

Só ganas. No fundo, ninguém leva. E o inferno prossegue abarrotando-se de boas intenções, algum turismo. Além disso, diante deles as meninas fazem beiçinho e dizem - Ôôôô, bichim! de um jeito tão compungido que dá vontade de botá-las no colo junto com os viralatas. Todas elas. E, ainda mais, vontade de levá-las pra casa. Os viralatas do interior, no entanto e em geral, com aquelas lagoas de bondade no olhar, continuam sarna, couro e ossos pelas estradas poeirentas. Eis um exemplo da contribuição das intenções para o aperfeiçoamento ético da humanidade.

Mas nossa intenção, aqui, é, antes, a de tecer um estudo comparativo entre camelos e dromedários. E dizíamos que uma ínfima parte da doçura de olhar desses viralatas se pode achar nos olhos tanto de ambos quanto de trambos, se incluíssemos nessa história também as lhamas. Outrossim, é que as lhamas já são uma outra conversa. Seja por viverem na América do Sul, seja por possuírem um olhar com certa transcendência blasée. Agora, quando reparamos bem, é uma coisa de nada essa faísca de doçura triste nos olhos das duas alimárias do deserto. Bem menor que à primeira vista. Na verdade, há muita ironia nos olhos tanto dos camelos, quanto, principalmente, dos dromedários. As aparências enganam, mas, enfim, aparecem, ao contrário de outras coisas que, vamos e venhamos, nem tanto.

Exemplo disso? De coisas que não se declaram? Que tal os extraterrestres e suas engenhocas voadoras? É típico do ser humano que os ET's tenham aparecido mais de uns tempos pra cá. E fazendo uso de máquinas voadoras em forma de disco. Eles não poderiam se locomover de outra forma? Menos decalcada do sonho humano de voar? Não poderiam ser invisíveis? E por que essas máquinas têm a forma de um disco? "Porque o fonógrafo estava em moda quando se 'viu' o primeiro disco voador", me garante um amigo. Ora, isso é ao menos uma das hipóteses a se levar em conta. Uma que, talvez, a ufologia ainda não levou. Quer dizer, com milhares de anos de história, e jamais um relato de disco voador feito por um patriarca hebreu ou glosado por um goliardo. Ou, digamos, uma tela cheia de voadores discos pintada por um perspectivista imitador de Leonardo ou um nobre francês do sec. XVIII. Os discos voadores deixaram para surgir, na forma rotunda como surgiram, justo quando o homem começou a ganhar a vida fazendo coisas parecidas com a dos ET's: dando suas voltinhas pelo espaço. Umm! Isso soa um pouco suspeito.

Mas, falar em voltinhas, é preciso dizer que camelos e dromedários são grandes amigos. E já pelo menos desde a arca de Noé. Costumavam passear juntos pelo convés da embarcação a discutir a previsão do tempo, tergiversar sobre a cotação das ações da Canaãbrás, resmungar contra os serviços de bordo. Aos poucos, os assuntos desses passeios pelo convés, extremamente protocolares, foram se estendendo a uma defesa mais ou menos filosófica das virtudes de se ter uma ou duas corcovas.

O dromedário, muito polido, de início até concedeu certa oposição aos argumentos do camelo. Percebendo a puerilidade deles, os foi engolindo em seco e frequentemente. O camelo falava um bocado. Mas o dromedário sabia que alfafa boa se comia fria. Já o camelo seguia gabando-se de possuir aquele sinal de beleza, à semelhança do compadre dromedário, só que em dose dupla. Sim, porque para o camelo, nada mais sem graça do que o dorso de um cavalo: plano, sem corcova alguma. Que peça o Criador pregara no eqüino.

Também apregoava o camelo que seu nome convertera-se em nome genérico. E que os dromedários eram, por igual, conhecidos como camelos. E que isso se dava pelo fato de eles, os de duas, serem mais recentes e belos do que os de uma. Serem a culminância do gênero, os verdadeiros camelos. Que os de uma haviam sido feitos prematuramente. Eram incompletos. E, por outro lado, como não havia um de três, eles eram os maiorais:

-A última palavra em termos de design para quadrúpedes no deserto! - arrotava o camelo. Eles, bactrianos, duas bossas nas costas, eram os donos do pedaço.

O dromedário contestava tímido. Disse que os outros o chamavam de camelo, porque era mais fácil dizer camelo do que dromedário. Dromedário era uma palavra difícil, grega, parecia nome de filósofo. E as pessoas tinham medo de errar a pronúnica. Mas o camelo riu-se da hipótese de seu camarada de corcova e conversa. Agora, quase indignou-se quando o dromedário ousou afirmar que, se o nome do camelo era mais difundido, a imagem dos de uma corcova era a mais lembrada pelo mundo afora. E, quem sabe, só a foto de Che Guevara era mais difundida que a imagem do dromedário, carregado de presentes, junto aos Reis Magos:

--Ora, ora, meu amigo, largue disso. Que falácia! Lembre-se que isso só ocorre no Natal. E, ainda que fosse verdade, o caso se daria apenas pela preguiça mental das pessoas. Elas pensam em camelos, mas os reduzem a dromedários. Elas simplificam as imagens lembradas. Assim, para economizar neurônios, acabam fabulando o mais simples de desenhar: vocês, de uma corcova. A memória, quando lembra a matéria, prega peças -- concluiu o camelo, que nas horas vagas, andava lendo filosofia. E acontecia de haver um excesso de horas vagas para todos naquele insólito cruzeiro.

Muitas ouviu o dromedário. E, se tanto, pigarreava. Torcia imperceptivelmente o pescoço. Enrugava de leve o cenho. Balançava, de pouco, o rabinho em forma de pincel. O dromedário era uma fleuma só.

Mas eis que houve grande falta d'água na arca. A água diluviana, amaldiçoada, era intragável de salobre. Veio o racionamento. E tanto o camelo quanto o dromedário, famosos que eram por passar sem água e ração, muito sofriam com a fama antes de se deitarem na cama. Se recolhiam extenuados e sedentos, noite após noite:

--Mas antes haver se afogado do que passar por essa provação - dizia o camelo. O dromedário ruminava nos dois sentidos: digerindo seu pouco de alfafa, mas também avalizando os disparates do camelo. Volta e meia, pensava na morte da bezerra. Uma bezerra que, à vez, falecera ruminando seu capim. E tratava de se empenhar em coisas menos abstratas, como ajudar a tapar o vazamento no compartimento dos ornitorrincos.

No correr dos dias, a desidratação castigava. E, logo, ambos mal tinham ânimo de subir ao convés para tomar a fresca e se inteirar das novas. A carência de água era tanta que as corcovas começaram a murchar. E pendiam flácidas a cada mínimo passo. Papel de parede descascando. Um desalinho. O resto da bicharada os via com um misto de dó e olhares cavilosos. Nos olhares parecia haver um cartaz semelhante aos desses torcedores de voleibol: “eu já sabia”. Parece que a gabolice sem peias do camelo não lhe rendera muitos amigos.

Certa feita, ele e o dromedário passaram junto ao cavalo, que, sem corcova alguma, trotava (desengonçado, segundo o camelo), satisfeito de beber mais água do que eles. E disse o velho droma:

--É, compadre camelo, o problema de ter duas corcovas - ao invés de nenhuma, como o cavalo; ou de uma só, como este amigo que vos fala -, é vê-las assim murchas, batendo como chicote duplo sobre as costas cansadas.







Nenhum comentário:

Postar um comentário